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Uma análise jurídica do conceito de atividades essenciais

Seguramente o conceito de essencialidade não foi ressignificado com o advento da MP 966/2020.

27/5/2020

Com o aumento da quantidade de infectados e mortos pelo covid-19, percebemos também a intensificação tanto das iniciativas de combate ao avanço da doença, quanto dos debates sobre a retomada das atividades econômicas, o que tem trazido algumas perplexidades na interpretação de dispositivos legais. Percebemos essa situação com o tratamento dispensado as atividades essenciais, as quais têm sido abordados de maneira confusa pelas autoridades públicas, razão pela qual trazemos alguns esclarecimentos.

Discorreremos nestas linhas sobre alguns aspectos jurídicos das atividades essenciais, considerando suas características no direito brasileiro e o tratamento específico conferido pela lei 13.979/20 (lei de combate ao novo coronavírus).

Inicialmente temos que nosso ordenamento possui poucas disposições anteriores ao advento da covid-19 tratando das atividades essenciais. A Constituição Federal ao versar sobre o direito de greve em seu art. 9, parágrafos primeiro e segundo, afirma que "lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade (...) e os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei". Por sua vez, a lei 7.783/1989, que dispõe sobre o exercício do direito de greve, traz uma lista de atividades que reputa como essenciais, inadiáveis da comunidade, nos incisos de seu art. 10,com destaque para (i) tratamento e abastecimento de água; (ii) produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; (iii)  assistência médica e hospitalar; (iv) - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; (v) serviços funerários; (vi) transporte coletivo; (vii) - captação e tratamento de esgoto e lixo; (viii) – telecomunicações; (ix) compensação bancária, dentre outras.

A leitura do elenco de atividades acima nos mostra que em comum, todas possuem um traço de imprescindibilidade ligado ao atendimento das necessidades básicas da coletividade. Não podemos vislumbrar uma sociedade que não disponha de abastecimento de água, coleta de esgoto e lixo, fornecimento de energia, transporte coletivo, meios de comunicação, ou seja, todas as utilidades primordiais ao modo de vida globalizado e contemporâneo. Portanto, sob este viés, atividades essenciais são aquelas cuja interrupção é impensável para a continuidade do funcionamento da vida coletiva e cuja ausência pode levar ao colapso e ao rompimento da tessitura social.

Na lei de enfrentamento a covid-19, todavia, temos um processo de definição burocrática de atividades essenciais que obedece a critérios políticos oriundos do Poder Público, no caso, o Poder Executivo federal.

O Art. 3º § 8º da lei 13.979/2020 afirma que as autoridades públicas, com vista a enfrentar o alastramento do covid-19, podem tomar medidas como isolamento, quarentena e restrições de locomoção, devendo resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais. A MP 926/2020, por sua vez, acrescentou o parágrafo nono ao art. 3 da lei, para afirmar que "Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º".

No regime jurídico da lei 13.979/2020, em se tratando de combate ao covid-19 atividades essenciais são aquelas que assim sejam indicadas pelo Poder Executivo federal de maneira aparentemente discricionária. Ou seja, técnico-burocraticamente é serviço essencial o que o Poder Executivo estipula por meio de decreto, situação que nos leva a algumas reflexões.

Podemos encarar a essencialidade de uma atividade tendo em vista os próprios traços da coletividade na qual a referida prática se insere, bem como a conjuntura envolvida. Por óbvio os serviços de fornecimento de água, energia e transportes público são indispensáveis, mas e a compensação bancária e o acesso a internet? Certamente na sociedade contemporânea tais utilidades adquiriram status de indispensáveis.

Considerando ainda a indisponibilidade como régua da essencialidade, a comercialização de conveniências para animais domésticos (petshop) e serviços de embelezamento estético possuem esta característica? Apesar de intuitivamente ser inviável alegar a indisponibilidade dessas atividades, um outro critério pode ser aventado, ou seja, a régua da economia.

A escola da Análise Econômica do Direito (law and economics), que possui como destaques estudiosos como Coase e Posner dentre vários outros, rejeita a autonomia absoluta da ciência jurídica em face da realidade social, bem como busca utilizar ideias e metodologias de outras disciplinas com ênfase em uma leitura interdisciplinar permeável sobretudo, à economia e à política.

Sob a régua da indisponibilidade o petshop e os salões de beleza não são atividades essenciais, mas em uma leitura conjuntural e interdisciplinar os pequenos e médios estabelecimentos talvez carreguem um cunho de indisponibilidade em uma abordagem sistêmica de caráter sócio econômico.

Seguramente o conceito de essencialidade não foi ressignificado com o advento da MP 966/2020. O critério de indispensabilidade para a vida em sociedade não ganha um novo conteúdo a cada decreto que é expedido pelo Poder Executivo federal, o que é percebido pela baixa efetividade destas medidas nos níveis estadual e municipal.

No fim das contas temos que atividade essencial é um conceito jurídico indeterminado, ao qual o legislador não conferiu delimitação precisa a exemplo de termos como interesse público, bons costumes e boa-fé, os quais devem ser extraídos caso a caso por meio de uma interpretação que leve em conta parâmetros de razoabilidade.

Em grande parte das questões controvertidas temos situações apresentadas em um contexto de falso dilema, onde a manutenção da saúde e da vida são antagonizadas com a preservação da economia e de postos de trabalho, o que é uma visão limitada do assunto.

Não há, desta forma, uma resposta pronta, direta e objetiva sobre o conceito de atividade essencial. Entendemos, todavia, que o quadro de combate ao covid-19 e as orientações das autoridades sanitárias devem ser uma das réguas de aferição e objeto de especial atenção em cotejo com as especificidades de cada segmento da economia, tendo como pano de fundo vetores de razoabilidade e o interesse público.    

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*Marcus Vinicius Macedo Pessanha é sócio responsável pelas áreas de Direito Administrativo, Regulatório e Infraestrutura do Nelson Wilians & Advogados Associados.

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