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Os crimes (não) cometidos pelo presidente da República

Para contribuir com a análise sobre os crimes que possam ter sido praticados especificamente pelo presidente da República, apresentam-se breves considerações sobre a eventual configuração dos tipos previstos nos arts. 344, 321, 319, do CP, e no art. 2º, § 1º, da lei 12.850/13.

27/5/2020

Inquérito 4.831 – aberto no STF apara investigar os fatos noticiados pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, na coletiva de imprensa em que anunciou sua saída do governo, no último dia 24 de abril – vislumbra em tese a tipificação dos seguintes delitos: 1) falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal), 2) coação no curso do processo (art. 344 do CP), 3) advocacia administrativa (art. 321 do CP), 4) prevaricação (art. 319 do CP), 5) obstrução de Justiça (art. 1º, § 2º, da lei 12.850/13), 6) corrupção passiva privilegiada (art. 317, § 2º, do CP) ou  mesmo 7) denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal), além de 8) crimes contra a honra (arts. 138 a 140 do CP).

Para contribuir com a análise sobre os crimes que possam ter sido praticados especificamente pelo presidente da República (aqui não serão analisados os crimes em que possam ter incorrido os demais participantes da reunião), apresentam-se breves considerações sobre a eventual configuração dos tipos previstos nos arts. 344, 321, 319, do CP, e no art. 2º, § 1º, da lei 12.850/13.

Coação no curso do processo

A conduta criminalizada é a de “usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral”. A conduta é punida com reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência (art. 344 do CP).

Analisando-se a gravação, contudo, observa-se que a fala do presidente da República não se dirige a partes (autor ou réu) ou pessoas que intervenham em processo (como peritos, escrivães, oficiais de justiça, jurados, etc.). E, entre as demais autoridades ali presentes na reunião cujas gravações foram reveladas, não estavam juízes, promotores, delegados de polícia ou defensores públicos, responsáveis por algum processo (judicial, policial, administrativo ou arbitral).

No caso, a única ameaça praticada pelo presidente da República foi a dirigida ao seu então ministro subordinado, e de modo velado, embora facilmente percebida. No entanto, a admoestação não se caracteriza como grave: embora no delito de coação no curso do processo, em tese, o mal não seja necessariamente injusto, como no crime de ameaça (art. 147 do CP), a exoneração, para um ministro de Estado – em especial quando notórias suas capacidades profissionais e seu reconhecimento público – não é capaz de incutir severo temor, a ponto de lhe retirar a liberdade psíquica. Falta-lhe, portanto, a gravidade na ameaça de mal justo (no sentido de possível, nos termos do art. 84, inciso I, da CF, pelo qual compete privativamente ao presidente da República nomear e exonerar os ministros de Estado).

Além disso, a conduta do próprio ministro, que requereu exoneração poucos dias depois da reunião, afasta cabalmente a potencialidade lesiva da ameaça-advertência do presidente da República.

Ademais, a finalidade que transparece das transcrições não seria a de favorecer interesse próprio ou alheio quanto a qualquer processo – até o momento incógnito –, mas a de conformar o posicionamento político da Pasta Ministerial àquele defendido pelo presidente da República.

Pela descrição do tipo penal e dos fatos da reunião, portanto, o presidente não incorreu nesse crime.

Advocacia administrativa

O art. 321 do CP prevê como crime a conduta de “patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário”, punindo-a com pena de detenção, de um a três meses, ou multa. Para a ocorrência desse crime, é necessário que o funcionário público atue como um advogado ou procurador de terceiro, cuidando e fazendo a defesa de interesse privado perante a administração.

Contudo, a rigor, a revelação do desejo de obter informações por parte da Polícia Federal nem pode ser caracterizada como um interesse privado, nem se trata de mera influência sobre ato de terceiro, já que o presidente da República ostenta ascendência funcional sobre os hipotéticos sujeitos passivos e é legitimado a requisitar informações de quaisquer órgãos da Administração Pública, especialmente nos termos do decreto 4.376/02.

Além disso, de forma especial, sequer se falou na reunião ministerial do dia 22 de abril de processos de interesse pessoal ou familiar do presidente da República sob investigação da Polícia Federal, sendo certo que, em seus depoimentos, o antigo diretor-geral da PF e o ex-ministro da Justiça negaram a ocorrência de solicitação de informações sobre quaisquer processos específicos pelo presidente da República.

Neste caso, portanto, e supondo a eventual ocorrência do fato – não comprovada pelos elementos atualmente tornados públicos –  haveria apenas ato próprio, de ofício, no sentido de exigir determinada providência administrativa de subordinado – o que afasta a tipicidade objetiva deste delito. Tampouco há que se falar em interesse ilegítimo, o que atrairia a figura qualificada.

Do mesmo modo, o interesse de substituir determinado agente público na esfera de supervisão do então ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública se insere no espectro das atribuições constitucionais do presidente, notadamente no exercício da direção superior da administração federal, nos termos do art. 84, inciso II, da CF, pelo qual compete privativamente ao presidente da República exercer, com o auxílio dos ministros de Estado, a direção superior da administração federal). Assim, não há enquadramento típico à ideia do patrocínio de interesse alheio.

Prevaricação

Por seu turno, a prevaricação prevista no art. 319 do CP consiste em “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, sendo punida com a pena de detenção, de três meses a um ano, e multa.

O traço marcante do tipo consiste no uso de suas atribuições funcionais de modo indevido com a especial finalidade de satisfazer interesse ou sentimento pessoal do agente. O interesse pode ser de ordem patrimonial, material ou mesmo moral, ao passo que o sentimento diz respeito à satisfação da afeição, ódio, benevolência, etc. nutridos pelo agente. Sem a presença desse dolo específico, a conduta torna-se atípica.

No entanto, não se pode confundir o crime de prevaricação com o grau de liberdade que o presidente da República detém para gerir o governo e tomar as decisões pertinentes. A margem de atuação do Chefe do Poder Executivo é ampla e, se a conduta foi praticada dentro dela, sem contrariar disposição expressa de lei, não é possível reputar sua ação como delituosa.

Os fatos sob exame – a pressão para substituição do então diretor-geral da Polícia Federal, enfim consumada a pedido do titular da função –, porque destituídos de elementos que demonstrem minimamente eventual finalidade espúria da aludida substituição, não podem ser qualificados como contrários a disposição literal de lei. A isso se soma o fato de que tal ato se insere na expressa competência do presidente da República (art. 84, incisos II e XIV, da CF) – o que afasta a tipicidade objetiva quanto ao requisito de contrariedade a “disposição expressa de lei”.

Obstrução de Justiça

Já o art. 2º, § 1º, da lei 12.850/13, define que pratica obstrução da justiça quem “impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa”, culminando pena de reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. Note-se que se trata de crime material, que exige o efetivo embaraço ou impedimento de investigação em concreto.

Ora, os fatos claramente não se subsumem à hipótese normativa. A requisição ou a prática de ato de ofício de substituição de autoridades públicas que não façam parte, diretamente, de eventual investigação, não tem o condão de conduzir ao impedimento ou embaraço de quaisquer investigações.

Em outras palavras, a mera substituição do diretor-geral, ou mesmo de superintendentes regionais, não conduziria a nenhum obstáculo imediato a eventual investigação em curso, porque essas autoridades não são diretamente encarregadas de presidir inquéritos.

Posteriormente, se o novo ocupante do cargo viesse a praticar atos de embaraço ou impedimento (como, por exemplo, a remoção de agentes públicos ou a redução dos recursos disponíveis para determinada investigação de interesse pessoal do nomeante), somente aí haveria a prática do delito – o que, no entanto, não ocorre no presente – e mesmo nesse caso o crime não seria imputável ao presidente da República.

A questão do animus

Um último aspecto sensível diz respeito à intenção do presidente da República no contexto dos fatos em apuração no Inquérito n. 4.831. Esse ponto parece ser de suma relevância, porque é nele que se sustentaria a ilicitude da conduta do chefe do Governo.

O discurso-denúncia do então ministro da Justiça e Segurança Pública no dia 24 de abril enfatizava a ideia de que a exoneração do diretor-geral da Polícia Federal deveria ser atribuída à intenção do presidente de ‘interferir politicamente’ na instituição policial.

Ocorre que essa hipótese não foi corroborada pelo material publicado: o único elemento que se pode depreender é a intenção do presidente da República de “obter informações”, sem especificidade. Esse estado subjetivo de insatisfação seria a motivação para eventuais substituições de cargos. Esse conteúdo – justamente porque foi gravado sem finalidade de revelação ao público –  ostenta relevante valor probatório.

Três foram os pontos de maior ênfase nas falas do presidente da República: 1) a alegada omissão [do Ministério] ‘da Justiça’ e de outros ministros em criticar atos de Governadores e Prefeitos que constituiriam, na visão do titular do Poder Executivo Federal, em atentados à liberdade individual, em virtude da quarentena decorrente da pandemia; 2) a necessidade de adesão aos programas políticos pessoais do presidente (expresso em valores como Deus, pátria, família, armamentos etc.); e 3) especificamente quanto à Polícia Federal, suposta omissão na prestação de informações e em deveres não-especificados de segurança, colocados no contexto de suposta perseguição da imprensa contra familiares do presidente.

Quanto aos dois primeiros, trata-se de matéria exclusivamente político-administrativa. Diz respeito à liberdade de organização e de atividade política do chefe do governo, sendo mesmo razoável que o mandatário espere algum nível de adesão de seus auxiliares, na dicção constitucional, à sua proposta política.

Em relação ao terceiro ponto, posteriormente ratificado em manifestação dada perante a imprensa no dia 22 de maio de 2020, nota-se que o presidente da República não manifesta desejo de manipular ou de prevenir ações do órgão policial contra si – versão que ganhou algum espaço nos veículos de comunicação e redes sociais –, mas acusa suposta omissão das informações acerca de supostas ações ilícitas de outras fontes (implícita a acusação contra a Polícia do Estado do Rio de Janeiro e órgãos de imprensa) contra si ou seus familiares.

Em outras palavras, nesse contexto, o ânimo subjetivo do presidente da República – ainda que enganado ou mal informado, porquanto não se possa atribuir credibilidade à ideia de perseguição por parte de órgão policial estadual – não se identificaria àquele necessário para a constituição de qualquer dos crimes em comento, porque a dita intervenção se daria para aprimorar uma atribuição legítima do órgão da Polícia Federal (a de coleta e tratamento de informações de inteligência).

Conclusão

Todos os dias, incontáveis atos de nomeação e exoneração são publicados nos diários oficiais dos entes federados. Em se tratando de cargos ou funções demissíveis ad nutum, as razões concretas e específicas da escolha não são perscrutáveis, pois o elemento da confiança é da essência desses cargos: basta que se saiba que o exonerado já não ostenta a affectio necessária ao exercício de suas atribuições.

Durante a coletiva de imprensa do então ministro Moro, embora não tenha afirmado expressamente que o presidente da República tenha cometido crimes, havia razões a justificar a instauração do inquérito penal. Contudo, colhidos os depoimentos pertinentes e, especialmente, revelado o teor da reunião ministerial de 22 de abril, nota-se que os elementos de informação apontam em sentido oposto à hipótese dos crimes hipoteticamente vislumbrados no primeiro momento.

Nessas condições, em que a gravação e os elementos circundantes revelam a atipicidade das condutas do presidente da República, não se justifica a manutenção das investigações, sob pena de ferir a subsidiariedade e a elevada função de última ratio do direito penal, investigando sem quaisquer elementos indiciário um ato regular de gestão.

_________

*Hugo Souto Kalil é advogado do Senado Federal. Mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

*Roberta Simões Nascimento é advogada do Senado Federal. Doutora em Direito pela Universidade de Alicante. Doutora e mestre em Direito pela Universidade de Brasília.

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