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Condutas vedadas e a política assistencialista de emergência

A legislação busca inibir não a instituição do assistencialismo de emergência e sim o seu desvirtuamento, o uso promocional em favor de candidatos e consequente deturpação.

22/5/2020

A crise sanitária resultante da pandemia mundial de coronavírus expõe de uma forma aguda uma série de condutas dos gestores públicos em ano eleitoral que podem culminar na imposição de severas sanções, tais como multas e cassação do mandato.

Porém, devemos fazer a seguinte ponderação, a crise resultante do covid-19 pode ser comparada às diversas emergências já enfrentadas no Brasil e que muitas vezes resultam em excessos por parte dos administradores públicos?

A emergência infecciosa por coronavírus segue no plano nacional os ditames da lei Federal 13.979/2020 e da portaria MS 188/2020 que declarou emergência em saúde pública de abordagem nacional por conta da infecção de coronavírus.

Tais dispositivos federais possibilitaram aos estados e aos municípios a decretação constitucional de estado de emergência em suas circunscrições, ato necessário ao combate à atual infecção de coronavírus e que, como entes públicos, devem se ater ao formalismo legal no que pertine aos gastos estatais com o viés protetivo.

Importante destacar que a MP 926/2020 incorporou ao texto da lei 13.979/2020 uma série de mitigações ao processo licitatório comum, tais como dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Admite também a apresentação de termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado nas contratações para aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência e reduz pela metade os prazos dos procedimentos licitatórios nos casos de licitação na modalidade pregão, eletrônico ou presencial, cujo objeto seja a aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência.

Na esteira dos atos legislativos federais, os estados e municípios passaram a editar normas de decretação de estado de emergência em saúde pública como forma de enquadramento nos ditames legais federais.

Nesse contexto, o primeiro questionamento se coloca necessário, quais os limites do caráter assistencialista do estado em relação aos cidadãos impactados pela crise sanitária, econômica e social do novo coronavírus?

Parece-me claro, e isso não se trataria de uma análise meramente superficial, que a atual crise em saúde pública causada pelo coronavírus supera em larga escala qualquer referencial de estado de emergência já enfrentado pelos poderes públicos federal, estadual e municipal, mais que uma enchente, uma seca prolongada, um deslizamento de terras, todos calamidades com amplo impacto na população. A pandemia por covid-19 vem causando danos ainda impossíveis de ser calculados.

Os números de desemprego e paralisia econômica, aliados ao colapso no atendimento em saúde por conta do número crescente de enfermos criou uma contingência sem precedentes na história nacional, acompanhando o contexto de paralisia mundial e da sucumbência de nações em todos os continentes.

Deste modo, a estratégia de atuação dos poderes públicos deve ser imediata e voltada ao combate efetivo da pandemia, seja na estruturação dos planos de saúde pública, construção de unidades de atendimento, unidades de tratamento intensivo, compra de insumos, criação de campanhas de conscientização, constituição de bolsas específicas às populações mais atingidas social e economicamente, proteção ao trabalhador, dentre outras atitudes estatais em prol da população nacional.

Ocorre que, a esperada ação imediata dos governos em prol da população atingida pela pandemia, com efeitos práticos que exigem uma menor burocracia e um maior grau de eficiência na tomada de decisões deve se coadunar com o respeito às leis e probidade administrativa, sendo defeso que o aspecto emergencial do período que passamos seja entendido como uma carta branca aos gestores públicos, muito menos servir como bandeira eleitoral em favor de pré-candidaturas, angariando a simpatia do povo pelo uso eleitoreiro das ações de combate ao vírus.

A legislação nacional, mais especificamente os arts. 73 a 78 da lei 9.504/1997 possuem regramento específico contra os abusos no uso da coisa pública em prol de candidaturas, com uma série de proibições aos agentes do estado de modo a impedir o desequilíbrio nas campanhas e a manutenção da moralidade e legitimidade dos gastos e ações estatais no ano de eleição.

O art. 73, §10 da lei 9.504/1997, por exemplo, proíbe a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, de modo a resguardar a lisura do pleito vindouro, buscando desvincular do eleitorado a velha prática assistencialista às vésperas das eleições.

Sucede que, tal protetivo pode e deve ser relativizado em casos de emergência declarada, no que se insere o atual contexto de pandemia internacional causada pelo novo coronavírus.

E a lei já prevê tal possibilidade, bem como as formalidades legais que permitem o afastamento provisório da proibição, delimitando a exceção de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.

Podemos observar que tal prerrogativa já está sendo utilizada pelos governos federal, estaduais e municipais, através de auxílios emergenciais, descontos solidários em conta de energia, redução de tarifas, distribuição de cestas básicas, dentre outros. E isso é proibido? Não, contanto que se alinhe ao que está previsto na lei 9.504/1997 e que se afastem os abusos dos poderes político e econômico.

Requisitos práticos como efetivo acompanhamento do Ministério Público, delimitação objetiva do público-alvo da ação assistencialista, assim como a correta correlação entre valores, bens e serviços entregues gratuitamente e as necessidades dos atingidos pela emergência ou calamidade. Imprescindível também que todo o processo albergado pela escusa legal obtenha respaldo legislativo pela esfera de poder responsável pela política assistencialista.

Não menos importante que a vedação disposta no §10, mostra-se a conduta vedada do inciso IV, do reportado art. 73, da lei 9.504/1997, que proíbe que tais programas de caráter assistencialista sejam usadas com a finalidade promocional de candidatos, partidos ou coligações. Deste modo a atuação do gestor público diante da distribuição assistencialista deve ser a mais transparente e institucional possível.

Não cabe ao candidato ou ao partido político, a pretexto de um estado de emergência em saúde pública, usar de uma política assistencialista para criar uma nefasta vinculação do produto ou do serviço distribuído com a entidade política que concorrerá nas eleições futuras, maculando com isso a igualdade de oportunidades entre os candidatos com o uso da máquina estatal em prol de candidaturas.

Com intenção de que se mantenha a paridade de armas entre os que almejam um êxito eleitoral, principalmente aos que estão gerindo a máquina pública, a lei pune de forma exemplar o uso propagandístico dos atos de amparo à população, já que tais atitudes poderão servir de desequilíbrio no processo eleitoral, incutindo falsamente na população que tais dádivas foram proporcionadas pelo agente público e não pela instituição que ele representa. O que se objetiva não é a paralisia das ações sociais, mas sim sua despersonificarão.

Para a configuração da conduta vedada prevista no inciso IV, acima referenciado, deve estar presente o caráter eleitoreiro da distribuição de bens, valores e serviços, de modo que o ato assistencialista se transforme em ato de pré-campanha em prol de partido, candidato ou coligação. Importante ressaltar que na vedação constante do §10 basta a sua violação, para que seja passível de sanção pelo Poder Judiciário, não se exigindo a finalidade eleitoral da distribuição gratuita de bens, serviços e valores.

Importa ressaltar, em um contexto tão grave de recessão econômica resultante das medidas restritivas dos órgãos sanitários, que o caráter assistencialista do estado é essencial para a subsistência de boa parte da população. Não se nega aqui o nobre objetivo dos diversos projetos humanitários e sociais implementados pelos gestores das unidades da federação. A legislação busca inibir não a instituição do assistencialismo de emergência e sim o seu desvirtuamento, o uso promocional em favor de candidatos e consequente deturpação.

Por todos esses motivos elencados, o gestor público deve primar pela objetividade quando da escolha do público-alvo de uma possível distribuição de bens, serviços e valores de modo gratuito, evitando generalizar a entrega de insumos, criando parâmetros vinculados ao estado de emergência ou à calamidade, os quais demonstrem claramente que a distribuição buscou atingir exatamente as pessoas e as famílias mais golpeadas pela crise.

A correlação direta entre o dano causado e a dádiva distribuída deve ser sempre buscada quando das calamidades. A participação efetiva do Ministério Público na logística de distribuição demonstra-se mais uma prova de boa-fé e incontestável lisura do processo.

As reprimendas pelo uso desmedido da máquina pública são graves, a condenação por condutas vedadas pode cominar desde multas até a cassação do registro ou diploma do gestor público implicado na conduta vedada, mas o verdadeiramente censurável é que alguns gestores públicos aproveitem da situação de absoluta calamidade pública e emergência sanitária, para uso dos recursos públicos em prol de suas candidaturas.

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*Caio Silva Guimarães é bacharel em Direito e Especialista em Direito Constitucional. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP. Assessor jurídico da presidência – TRE-CE.

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