Entrou em vigor, no dia 03 de janeiro de 2020, a lei 13.869/191, popularmente chamada de “Lei de Abuso de Autoridade” ou “Lei Contra o Abuso de Autoridade”, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, definindo as condutas criminosas, os sujeitos ativos, bem como as penalidades e os efeitos de eventual condenação.
A lei 13.869/19 revogou a lei 4.898/65, que regulava o Direito de Representação e o processo de Responsabilidade Administrativa Civil e Penal, nos casos de abuso de autoridade, porém de exclusividade do âmbito do Poder Executivo, de modo que a nova lei, além de expandir as condutas outrora descritas como abusivas, estabelece que seus dispositivos se aplicam a servidores públicos e autoridades, civis e militares, dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), e também ao Ministério Público e Tribunais ou Conselhos de Contas.
A lei define como crime de abuso de autoridade o total de 45 (quarenta e cinco) condutas, puníveis com reclusão de até 04 (quatro) anos, prestação de serviços ou penas restritivas de direitos, além de medidas administrativas, como a perda ou afastamento do cargo, e penalidades cíveis, de cunho indenizatório.
No entanto, cumpre esclarecer que, e nos termos do artigo 1º, §1º e §2º da lei 13.869/19, só caracteriza abuso de autoridade o ato praticado pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, de modo que a mera divergência interpretativa de fatos e normas legais não configurará, por si só, conduta criminosa.
Dentre as condutas definidas como abuso de autoridade, está a prevista no artigo 36 da lei, qual seja, “decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la”, cuja pena prevista é de detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
O artigo 8352, inciso I e §1º do Código de Processo Civil estabelece uma ordem preferencial de bens corpóreos e incorpóreos para fins de penhora, sendo o dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira, aquele cuja constrição é preferencial e prioritária, precedendo aos demais.
Isto porque, é a penhora em dinheiro a modalidade de constrição mais célere e efetiva, bem como a de menor custo.
O artigo 8543 do CPC, estabelece o procedimento da chamada penhora online, que será realizada a requerimento do credor, sem que seja dada ciência prévia do ato ao executado, determinando-se a consulta aos ativos financeiras em nome do devedor, com a posterior decretação de indisponibilidade dos valores eventualmente encontrados, a fim de que os mesmos sejam transferidos à conta judicial, que serão objeto de depósito judicial, vinculado ao juízo e ao processo em que a medida foi determinada, e cujo mandado de pagamento será expedido em nome do credor/exequente, nos próprios autos da demanda.
O BacenJud é o sistema que interliga a Justiça ao Banco Central e às instituições bancárias, para agilizar a solicitação de informações e o envio de ordens judiciais ao Sistema Financeiro Nacional, via internet4, sendo o método mais utilizado quando se pretende a constrição em dinheiro.
Segundo o CNJ, em notícia veiculada em seu portal no dia 27 de dezembro de 20185, no ano de 2005, quando foi implementado o sistema BacenJud, os bloqueios realizados totalizavam o montante de R$ 196 milhões, enquanto que, já no ano de 2018, até o mês de novembro, os bloqueios correspondiam ao valor de R$ 47 bilhões, ou seja, os créditos recuperados judicialmente foram quase 250 vezes mais que aqueles indicados no início da operação da ferramenta.
Todavia, o que já se verifica, e sem grande dificuldade, é a perda da efetividade, além de um retrocesso nos processos de execução, incompatível com os tempos atuais, à medida que, antes mesmo de a lei 13.869/19 entrar em vigor, muitos juízes já não mais estavam deferindo pedidos de penhora online, sob o receio de incorrer na conduta do artigo 36 da Lei de Abuso de Autoridade.
Em decisão proferida em 09 de setembro de 2019, pelo juiz Carlos Fernando Fecchio dos Santos, da 2ª Vara de Execução de Títulos Extrajudiciais e Conflitos Arbitrais de Brasília, negou-se provimento ao pedido de penhora via BacenJud, por vislumbrar possibilidade de incorrer na conduta típica do artigo 36 da Lei de Abuso de Autoridade6.
Tal receio, contudo, carece de razoabilidade, tendo em vista que a própria lei processual civil já prevê a possibilidade de a indisponibilidade de ativos financeiros se dar em quantia superior à executada, hipótese em que o excesso de bloqueio deverá ser corrigido de ofício, nos termos do §1º do artigo 854, ou a requerimento do executado, nos termos do § 3º, inciso II.
Conclui-se, portanto, que o artigo 36 da Lei de Abuso de Autoridade não pretende a criminalização de atos legítimos da autoridade judiciária, praticados em conformidade com a legislação processual em vigor, mas sim, daqueles praticados com a finalidade específica de obter benefício próprio ou para outrem, pelo que se observa do contido no §1°, do artigo 1º da lei 13.869/19.
Tornando ainda mais penosa as ações de execução, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), diante do atual cenário de crise econômica mundial, causada pela pandemia do novo coronavírus (covid-19), emitiu a recomendação 63, em 31 de março de 20207, com vistas a orientar os Juízos com competência para o julgamento de ações de recuperação empresarial e falência, no sentido de sugerir a adoção de medidas com vistas a reduzir o impacto decorrente das providências tomadas para fins de combate à pandemia.
Nesse sentido, tem-se que o objetivo primordial da recomendação 63 do CNJ é conferir maior previsibilidade e segurança jurídica às decisões judiciais proferidas enquanto perdurar o cenário de crise gerado pela covid-19, à medida que pretende uniformizar o tratamento aplicado aos procedimentos de recuperação judicial e falência, além de manter a atividade empresarial e, consequentemente, a circulação de bens, produtos e serviços, bem como dos postos de trabalho.
Dentre as recomendações emitidas, o artigo 6º8 traz a orientação referente a adoção de atos executivos de natureza patrimonial, que visem a constrição de bens de empresas e demais agentes econômicos em ações judiciais que tenham como um de seus objetos obrigações inadimplidas durante o período de vigência do estado de calamidade pública no Brasil, declarado no decreto legislativo 6 de 20 de março de 20209.
Em que pese a referida recomendação não ter efeito vinculante ao Poder Judiciário, é possível verificar que algumas dessas orientações já estão sendo adotadas, inclusive em ações que não versam sobre matéria de recuperação empresarial e falência, e ainda que as decisões não mencionem expressamente o entendimento do CNJ como fundamento para a deliberação.
No Estado do Rio de Janeiro, a juíza Juliana Leal de Melo, da 38ª Vara Cível da Comarca da Capital, em decisão proferida no dia 26 de março de 2020, indeferiu, de ofício, pedido de penhora online, utilizando como argumento a “pandemia do coronavírus reconhecida pela OMS” e “a possibilidade de decretação de estado de emergência e crise econômica em nosso país”. Além disso, a referida decisão acrescenta que “as condições de trabalho estabelecidas pelos governantes neste período”, por óbvio, dificultam o direito de defesa pela parte adversa.
“Por ora, INDEFIRO a realização do procedimento de penhora on line, ante a pandemia do coronavírus reconhecida pela OMS e a possibilidade de decretação de estado de emergência e crise econômica em nosso país. Acrescente-se, ainda, a evidente dificuldade na defesa da parte adversa ante as condições de trabalho estabelecidas pelos governantes.
Intime-se a parte exequente para dizer como pretende prosseguir com a execução.”
(Proc. 0261352-40.2018.8.19.0001 - 38ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro – Proferido em 26.03.20)
Veja-se que, embora não haja, na referida decisão judicial, menção expressa ao artigo 6º da Resolução 63 do CNJ, é certo que se trata de exato mesmo entendimento, à medida que proferida em um cenário o qual a todo instante surgem novas orientações e novos comandos por parte do Governo Federal e do Governo Estadual, que demandam do Poder Judiciário a devida adequação, de modo a encaixar-se na atual realidade.
Em 16 de abril de 2020, também no Estado do Rio de Janeiro, o juiz Paulo Roberto Correa, da 8ª Vara Cível da Comarca da Capital, em ação de execução de título executivo extrajudicial, após requerimento pelo exequente de consulta de bens do executado, via INFOJUD e RENAJUD, proferiu despacho determinando o retorno dos autos para conclusão após ultrapassada a fase crítica da pandemia, “considerando a Recomendação n 63 do CNJ, art. 6”.
“Considerando a Recomendação n 63 do CNJ, art. 6, volvam-me conclusos os autos ultrapassada a fase crítica da pandemia.”
(Proc. 0347980-81.2008.8.19.0001 - 8ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro – Proferido em 16.04.2020)
Analisando as decisões, verifica-se que ambas pretendem mitigar, ou ao menos estancar, os efeitos que a pandemia provocada pelo novo coronavírus tem causado na economia do Brasil e do mundo, não apenas no que diz respeito a doença em si, mas também no que tange aos efeitos decorrentes das medidas de combate à contaminação pela covid-19, adotadas por representantes da política nacional.
Desse modo, o Poder Judiciário não pode se manter alheio às alterações que vêm acontecendo no país, e que afetam significativamente tanto a vida do empresário brasileiro, quanto do trabalhador, formal e informal, bem como do desempregado.
É de se esperar, portanto, que embora a resolução 63 do CNJ não tenha efeito vinculante ao Judiciário, e em que pese tratar-se de orientação a ações que versam sobre matéria de recuperação empresarial e falência, seja esta utilizada como fundamento de inúmeras decisões judiciais, enquanto perdurar a atual situação de crise econômica causada pela pandemia da covid-19, atingindo, consideravelmente, as ações de execução e de cumprimento de sentença.
Diante do exposto, observa-se que as últimas alterações político-sociais no país trouxeram grandes e relevantes impactos nas decisões judiciais proferidas em sede de execução de título executivo judicial e título executivo extrajudicial.
_________
1 Disponível em: Clique aqui Acesso em 22.04.20.
2 Art. 835. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:
I - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;
§ 1º - É prioritária a penhora em dinheiro, podendo o juiz, nas demais hipóteses, alterar a ordem prevista no caput de acordo com as circunstâncias do caso concreto.
3 Art. 854. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exequente, sem dar ciência prévia do ato ao executado, determinará às instituições financeiras, por meio de sistema eletrônico gerido pela autoridade supervisora do sistema financeiro nacional, que torne indisponíveis ativos financeiros existentes em nome do executado, limitando-se a indisponibilidade ao valor indicado na execução.
4 Disponível em: Clique aqui Acesso em 22.04.20.
5 Disponível em: Clique aqui Acesso em 29.04.20.
6 TJDFT. 2ª Vara de Execução de Títulos Extrajudiciais e Conflitos Arbitrais de Brasília. Processo 0733449-40.2017.8.07.0001.
7 Disponível em: Clique aqui Acesso em 24.04.20.
8 Art. 6º. Recomendar, como medida de prevenção à crise econômica decorrente das medidas de distanciamento social implementadas em todo o território nacional, que os Juízos avaliem com especial cautela o deferimento de medidas de urgência, decretação de despejo por falta de pagamento e a realização de atos executivos de natureza patrimonial em desfavor de empresas e demais agentes econômicos em ações judiciais que demandem obrigações inadimplidas durante o período de vigência do Decreto Legislativo 6 de 20 de março de 2020, que declara a existência de estado de calamidade pública no Brasil em razão da pandemia do novo coronavírus covid-19.
9 Disponível em: Clique aqui Acesso em 24.04.20.
_________