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STF nega a substituição do depósito em dinheiro por seguro garantia: O acerto da decisão e a ponderação dos interesses em conflito

Temos visto grandes empresas pleiteando indiscriminadamente substituições de depósitos judiciais, por seguro garantia, em detrimento do interesse da coletividade, de pessoas físicas e pequenas empresas.

20/5/2020

O ministro Luiz Fux negou pedido de devedor para substituir o depósito judicial de valores, por seguro garantia, nos autos da tutela provisória incidental, no recurso extraordinário 1.239.911/SP. A decisão foi prolatada em 13.05.20 e levou em consideração os interesses em conflito no momento da pandemia do covid-19.

Sopesando os interesses em conflito, se de um lado o devedor argumentava que, em vista da situação emergencial decorrente de pandemia oficialmente declarada, há perigo de dano configurado na ausência de liquidez da instituição financeira, desprovida do capital constrito em demanda judicial; de outro lado, toda a sociedade pode ser prejudicada, porque esses valores existentes nas contas judiciais fazem parte do orçamento da União, que por sua vez estão sendo utilizados para o combate a pandemia. 

A Fazenda Nacional informou no RE 1.239.911/SP que, segundo dados da Receita Federal do Brasil, o impacto, se houvesse o levantamento de todos os valores que atualmente estão depositados em juízo, giraria em torno de R$ 167,5 bilhões.

O min. Luiz Fux entendeu que “o cotejo entre o interesse público e o privado sinaliza para que o perigo de dano esteja mais associado aos interesses da sociedade do que do particular neste caso específico”.

No STJ, a ministra Assusete Magalhães, (no TutPrv, no recurso especial 1.805.157/SP) já havia negado liminar perseguida pelo Banco Santander, por esses mesmos fundamentos utilizados pelo min. Luiz Fux e por outros que serão tratados adiante.

A decisão do STF, por ser a Corte Suprema e ter sido amplamente divulgada, abre um importante debate sobre a tentativa indiscriminada de substituições de depósitos judiciais por seguros garantia.

A pandemia atinge a todos, não apenas os devedores

A pandemia atinge negativamente todas as pessoas e a maioria das empresas1. Desta forma é defensável que os devedores de processos judiciais aleguem que a pandemia retirou capital de giro e que estão em dificuldade financeira.

Contudo, não apenas os devedores dos processos judiciais sofrem os efeitos negativos da pandemia na economia, mas também os credores desses mesmos processos.

Bem vistas às coisas, o credor foi prejudicado duplamente: primeiro pela inadimplência do devedor fazendo com que tivesse que suportar todo o custo do tempo de um processo judicial; segundo, por conta da própria pandemia.

Assim, o fato de o devedor ter perdido capital de giro durante a pandemia, por si só, não é fundamento suficiente para substituição do depósito em dinheiro pelo seguro garantia. Além disso, deve haver apresentação da contabilidade da empresa e o último balanço para que se possa aferir se a alegação está lastreada em prova, para que se evite uma corrida indiscriminada de substituições de depósitos judiciais por seguros garantia, em detrimento dos credores e da coletividade.

Alguns casos inusitados fundamentados na pandemia

O banco Santander recentemente pleiteou perante o STJ a substituição do depósito judicial por seguro garantia em uma execução de R$ 5 milhões (TutPrv, no recurso especial 1.805.157/SP). Fundamentou que “a superveniência da pandemia da COVID-19 – Coronavirus Disease 2019 – alterou o contexto de suas operações econômicas2. Contudo, o lucro líquido do Banco Santander no Brasil em 2019 foi de R$ 14,5 bilhões, 17,4% superior a 2018.

No referido caso, a Fazenda Nacional manifestou-se alegando que o banco requerente “atua de forma contraditória (venire contra factum proprium), pois as razões apresentadas pelo requerente – reforço de liquidez – não encontram ressonância com a realidade vivenciada pelo banco, uma vez que a deliberação dos gestores da instituição de distribuir R$ 890.000.000,00 (oitocentos e noventa milhões de reais) aos seus acionistas, valor quase 180 vezes o valor do depósito judicial, é totalmente contrária a alegada necessidade de reforço de liquidez, evidenciando uma afronta ao dever de boa- fé objetiva".

Em 05.05.20, A ministra Assusete Magalhães indeferiu a liminar porque a substituição comprometeria a coletividade (fundamento também utilizado posteriormente pelo min. Luiz Fux), como também, pontuou que o banco estava distribuindo aos acionistas R$ 890 milhões em juros sobre capital próprio.

Até grandes seguradoras como a Sul América Companhia Nacional de Seguros, que teve lucro líquido de R$1,2 bilhão em 2019, está pleiteando nos cumprimentos de sentenças substituição do depósito judicial de valores, por seguro garantia, conforme requereu no AREsp 1.281.694/SC3.

A seguradora pretendia compelir o credor a aceitar o seguro garantia ofertado em cumprimento de sentença, originário de ação de seguro em que a Sul América havia sido condenada, após 12 anos de tramitação da ação securitária. Para o juiz da causa “chega a ser irônico o oferecimento de apólice de seguro em garantia no caso dos autos, em que a parte exequente já tenta obter o valor de apólice de seguro da executada (seguradora) desde 2005”.

Não parece legítimo a seguradora adotar uma cadeia de transferência sucessiva de responsabilidades, apresentando no cumprimento de sentença um seguro garantia emitido por outra seguradora, como uma espécie anômala de ressegurador. Deve ser avaliado também se quem busca ofertar o seguro garantia (Sul América) possui capacidade financeira muito maior do que a empresa seguradora que está emitindo a apólice de seguro garantia. Aqui vale a máxima: o mais forte protege o mais fraco, nunca o contrário.

No caso envolvendo a Sul América Companhia Nacional de Seguros, a 3ª Turma do STJ, negou, à unanimidade, o pedido da seguradora. O ministro Raul Araújo consignou em seu voto que “a substituição da penhora em dinheiro por seguro garantia não pode ser imposta ao credor pelo devedor”, bem como, a substituição deve ser admitida apenas em hipóteses excepcionais afim de evitar danos, e por fim, não se revelando como direito absoluto do devedor, devendo prevalecer, em princípio, a ordem legal de preferência estabelecida no art. 835 do CPC/20154.

A ponderação dos interesses em conflito revelará o caminho a ser trilhado, para evitar abusos. Nos três casos tratados nesse artigo (STF TutPrv no RE 1.239.911/SP; STJ TutPrv no REsp 1.805.157/SP e AREsp 1.281.694/SC) havia na verdade evidente dano reverso à toda sociedade e a credores hipossuficientes.

Conclusão

Temos visto grandes empresas pleiteando indiscriminadamente substituições de depósitos judiciais, por seguro garantia, em detrimento do interesse da coletividade, de pessoas físicas e pequenas empresas.

O pedido de substituição do depósito judicial por seguro garantia não pode ser imposto pelo devedor ao credor, porque não se configura como um direito absoluto do devedor. Trata-se de uma exceção.

O pedido sempre deve vir instruído com documentos contábeis que comprovem a situação financeira atual, bem como, o balanço financeiro do último ano, para que se possa comprovar a real situação de quem pleiteia a substituição do depósito judicial em seguro garantia.

A pandemia e o seguro garantia (art. 835, §2º, CPC) não podem ser utilizados como um “cheque em branco” e “sem fundos” em benefício de devedores, sob pena de comprometer a efetividade das decisões judiciais.

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1 Algumas empresas aumentaram seu faturamento e valor no mercado durante a pandemia, dentre elas: a) empresas de ensino à distância; b) comércio online; c) serviços relacionados à saúde e suprimentos hospitalares; d) empresas de streaming (Spotfy, Netflix, dentre outras); e) empresa de reuniões online (Zoom, Skype, dentre outras); f) empresas de redes sociais (TikTok, Instagran, dentre outras. Informação disponível clicando aqui, bem como, aqui.

2 Decisão do STJ disponível em clicando aqui.

3 Decisão na íntegra disponível em:  clicando aqui.

4 Decisão na íntegra disponível em: clicando aqui.

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*Guilherme Veiga Chaves é advogado e sócio do escritório Gamborgi, Bruno & Camisão Advogados Associados.

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