Migalhas de Peso

A (não) tributação do deságio obtido nas recuperações judiciais

Embora seja natural que os credores prefiram receber seus créditos em sua integralidade e independentemente da saúde financeira da empresa devedora, por outro lado, também sob seu prisma, a superação da crise financeira da empresa aumenta as perspectivas de recuperação dos créditos concedidos.

19/5/2020

Em decorrência da alarmante situação econômica desencadeada pela pandemia do coronavírus (covid-19), determinados temas jurídicos têm recebido maior notoriedade por estarem associados à mitigação dos impactos da crise.

Um assunto em especial tem gerado grande repercussão prática e suscitado importantes debates: o aumento de demanda por recuperações judiciais.

No presente artigo, pretende-se explorar um desdobramento fiscal decorrente das recuperações judiciais, qual seja, a tributação dos deságios decorrentes da renegociação de passivos. A questão que se coloca é: seriam tributáveis os descontos (haircuts) obtidos pela empresa recuperanda?

O legislador estabeleceu com clareza no artigo 47 da Lei de Recuperação de Empresas e Falências (lei 11.101/05) os vetores que irradiam na interpretação do instituto jurídico da recuperação judicial, sendo claro o reconhecimento de que a empresa é uma das fontes geradoras de bem-estar social e que, na cadeia produtiva, o desaparecimento de qualquer dos elos pode afetar a oferta de bens e serviços, assim como a de empregos, por conta do efeito multiplicador na economia1.

Embora seja natural que os credores prefiram receber seus créditos em sua integralidade e independentemente da saúde financeira da empresa devedora, por outro lado, também sob seu prisma, a superação da crise financeira da empresa aumenta as perspectivas de recuperação dos créditos concedidos, assim como a manutenção e mesmo a realização de novos negócios2.

Nesse contexto, a recuperação judicial contempla a possibilidade de “concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas” (artigo 50, I da lei 11.101/05). Trata-se da possibilidade de renegociação de passivos, seja por meio do alongamento do prazo de pagamento, seja pelo perdão parcial da dívida, a qual pode ser extinta mediante pagamento inferior ao seu valor original.

Pois bem, sendo o patrimônio um conjunto de direitos e obrigações, é evidente que a redução de um passivo altera positivamente o valor em referência. Do ponto de vista contábil, conforme previsto na resolução do Conselho Federal de Contabilidade 1.374/11, deve ser reconhecida receita no caso de diminuição de passivo originada do perdão de dívida.

É nesse ponto que surge o questionamento: o perdão de dívida constitui fato gerador do imposto de renda?

Nos parece que, não sendo o ingresso patrimonial decorrente do perdão um produto do capital ou do trabalho (ou seja, não estando inserido na materialidade prevista no inciso I do artigo 43 do CTN – “renda-produto”), cabe investigar se estaria albergado na materialidade do inciso II, do artigo 43 do CTN, qual seja, o proventos de qualquer natureza (“renda-acréscimo patrimonial”), que tem como ponto de partida a comparação da situação patrimonial do contribuinte em dois momentos distintos3.

A esse respeito, em contraposição a uma interpretação ilimitada do que venha a ser acréscimo patrimonial, pondera Ricardo Mariz de Oliveira a possibilidade de haver ingressos de novos direitos em determinado patrimônio, os quais, contudo, não têm a natureza jurídica de renda ou provento, de receita ou de rendimento, por não possuírem as propriedades que caracterizam as rendas em sentido lato4.

Nesse sentido, não estariam inseridas na hipótese de incidência do imposto de renda as “transferências patrimoniais”, compreendidas como os acréscimos provenientes de elemento externo ao patrimônio, decorrentes de atos não onerosos, em linha com o conceito constitucional de renda adotado pelo STF no RE 117.887/SP, de relatoria do min. Carlos Velloso.

Em consonância com este entendimento, vale citar a clássica doutrina de José Luiz Bulhões Pedreira, segundo o qual “o conceito constitucional de renda não permite à lei ordinária sujeitar ao imposto sobre a renda as doações, as heranças e quaisquer outras modalidades de transferência de capital5. De outro lado, pode-se citar Alcides Jorge Costa6, segundo o qual a tributação da renda, a princípio, poderia contemplar inclusive heranças e doações, se não estivessem constitucionalmente submetidas especificamente à materialidade do ITCMD.

Especificamente em relação ao perdão de dívida, afirma Ricardo Mariz de Oliveira que “se se constatar que a redução do passivo é decorrente de uma gratuidade, é possível que o perdão de dívida assuma a característica de doação e, neste caso, não será receita porque se confundirá com as transferências patrimoniais, além de que faltará o caráter contraprestacional e remuneratório que caracteriza toda receita, aquele de algo que vem de fora mas que é produzido de dentro pelo patrimônio da pessoa jurídica”7.

A questão se torna ainda mais intrigante e contemporânea quando, de forma análoga, são analisadas as recentes decisões judiciais que têm sido proferidas no âmbito de processos judiciais em que se discute a tributação da receita correspondente à subvenção de investimento (benefícios fiscais de ICMS). Já existe um número significativo de decisões que afastaram a cobrança fiscal não apenas com fundamento na violação do pacto federativo, mas também na própria ausência de configuração da materialidade do IRPJ e CSLL, em consonância com o entendimento da 1ª Seção do STJ (EREsp 1.517.492/PR).

Note-se que, tal como as subvenções de investimento, a redução do passivo em razão da renegociação da dívida no âmbito da recuperação judicial também implica contabilmente o lançamento dos recursos correspondentes à remissão como receita. Todavia, o trânsito contábil em conta de resultado não possui, por si só, o condão de justificar a exação fiscal, que depende necessariamente da efetiva configuração dos elementos da hipótese de incidência tributária.

Além desses elementos que se aplicam genericamente ao perdão de dívida, especificamente no âmbito de uma recuperação judicial ainda é importante ressaltar que a não tributação do deságio obtido na renegociação de passivos se coaduna com o princípio da capacidade contributiva (art.145, §1º da CF), que limita a discricionariedade do legislador, impedindo-o de erigir em fato gerador de tributo comportamentos sociais que não constituem manifestação de riqueza8.

Sob um plano “técnico-econômico”, Regina Helena Costa define como detentor de capacidade contributiva quem possua ou empregue riqueza, seja facilmente identificável e mostre-se em situação de solvência presumidamente suficiente para suportar o tributo9. Ora, a premissa natural daquele que demanda a recuperação judicial é justamente a situação de iminente insolvência.

Sem prejuízo de avanços acadêmicos no estudo do tema ora proposto para reflexão, é importante destacar que alterações legislativas em matéria de Recuperação Judicial certamente seriam salutares para um necessário aperfeiçoamento e esclarecimento das questões tributárias envolvidas.

Nessa linha, alinhada com outros preceitos pendentes de aprimoramento na lei 11.101/05, a questão da tributação do deságio é expressamente tratada no artigo 5-A do projeto de lei 10.220/1810, que acertadamente exclui o haircut da base de cálculo das contribuições ao PIS e Cofins, e, embora considere os valores tributáveis pelo IRPJ e CSLL, permite a compensação de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa de CSLL referentes a anos anteriores sem a limitação da trava de 30%.

Sobretudo na atual conjuntura de crise, a indevida oneração fiscal das recuperações judiciais caminha em largos passos na contramão do necessário estímulo à retomada da economia nacional, da preservação de empregos e, inclusive, da própria capacidade de geração de arrecadação tributária.­­­

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1 Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência: lei 11.101/05 / coordenação Francisco Satiro de Souza Junior, Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p.223.

2 LISBOA, Marcos de Barros; DAMASO, Otávio Ribeiro; SANTOS, Bruno Carrazza dos; COSTA, Ana Carla Agrão. A racionalidade econômica da Nova LEI DE Falências e de Recuperação de Empresa. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (coord.). Direito falimentar e a nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 31-32.

3 SCHOUERI, Luís Eduardo. O Mito do Lucro Real na Passagem da Disponibilidade Jurídica para a Disponibilidade Econômica. In: Controvérsias jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). Coord. Roberto Quiroga Mosquera e Alexsandro Broedel Lopes. São Paulo: Dialética, 2010, p. 243.

4 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. “Estudos de direito processual e tributário em homenagem ao Ministro Teori Zavascki”, Belo Horizonte, 2018, Ed. D’Plácido, p. 1089. Acesso pelo link (13.05.20): clicando aqui.

5 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto de Renda. Rio de Janeiro: APEC, 1969, pp. 2-24

6 COSTA, Alcides Jorge. Conceito de Renda Tributável. In: Ives Gandra de Silva Martins (coord.). Imposto de Renda: conceitos, princípios, comentários. São Paulo: Atlas, 1996, p. 32.

7 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, P. 133.

8 COSTA, Alcides Jorge. Capacidade Contributiva. Revista de Direito Tributário (55/297), ano 15, 1991. p. 4/5.

9 COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 26.

10 “Art. 50-A. Na hipótese de renegociação de dívidas de pessoa jurídica em processo de recuperação judicial:

I - a receita obtida pelo devedor não será computada na apuração da base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social - PIS e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público - Pasep e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - Cofins; e

II - o ganho obtido pelo devedor com a redução da dívida não se sujeita ao limite percentual de que tratam os art. 42 e art. 58 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, na apuração do imposto sobre a renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL.

Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica à hipótese em que a dívida seja:

I - com pessoa jurídica - controladora, controlada, coligada ou interligada; ou

II - com pessoa física - acionista controlador, sócio, titular ou administrador da pessoa jurídica devedora. ”

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*Lucas Martini de Aguiar é sócio da área tributária do escritório Huck Otranto Camargo. Cursa especialização em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).





*Henrique Mellão Cecchi de Oliveira é sócio da área tributária do escritório Huck Otranto Camargo. Mestrando em Direito Tributário Internacional pela Queen Mary University of London. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

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