Com a pandemia da covid-19 a discussão sobre o que é serviço essencial ou não ultrapassou os limites teóricos e passou a ter relevância no nosso dia a dia. Isso porque, é a partir dessa classificação que determinamos quais atividades devem ser suspensas e quais podem continuar. Nesse sentido, o decreto federal 10.282/2020, o qual regulamentou a lei federal 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da crise decorrente do novo coronavírus, estabeleceu quais são os serviços públicos e as atividades essenciais, ao mesmo tempo em que define que seu âmbito de aplicação abrange todos os entes federados (art. 2º).
Assim, com base nesse artigo, muitos decretos estaduais e municipais fazem menção ao decreto federal, orientando-se conforme suas disposições. Entretanto, trata-se de competência concorrente, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 6341. Ou seja, a União, caso emita lei geral, possui primazia sobre normas estaduais e municipais, o que não exclui a competência suplementar dos demais entes federados, consoante art. 24 da Constituição Federal, para preservar as peculiaridades regionais e o interesse local.
Por sua vez, o § 1º do art. 3º do decreto definiu serviços públicos e atividades essenciais como "aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como: (...)".
Merece destaque que, na última terça-feira, o referido decreto foi alterado pelo decreto federal 10.329, incluindo novos itens no rol de serviços públicos e atividades considerados essenciais. Contudo, chama a atenção que foram excluídos do referido rol serviços previstos originalmente no decreto federal 10.282/2020, entre outros o de captação, tratamento e distribuição de água, captação e tratamento de esgoto e lixo e iluminação pública – em total contradição com o conceito de serviço público e atividade essencial definido pelo decreto federal 10.282/2020.
Apesar dos conceitos "essencial", "inadiável" e "perigo" serem conceitos abertos que dependem de interpretação em seu contexto, não há dúvida que os serviços de distribuição de água, captação e tratamento de esgoto e lixo, bem como de iluminação pública não podem ser adiados por dias, nem mesmo horas, porque são essenciais para a sobrevivência, segurança e, principalmente, saúde da população, que pode vivenciar alto risco com suspensões na prestação – isso em tempos de normalidade, imagina em tempos de pandemia. A continuidade da prestação desses serviços está atrelada a garantia da dignidade da pessoa humana, fundamento da república, previsto no inciso III do art. 1º da Constituição Federal.
E mais, tratam-se de serviços públicos e atividades essenciais expressos nos termos da lei federal 7.783, de 1989, lei federal 11.445, de 2007, e do seu decreto regulamentar 7.217, de 2010, que ratificam que os serviços públicos de saneamento básico, possuem natureza essencial, sendo incompreensível a medida do Governo Federal de excluí-los do decreto que dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
A retirada destes serviços do decreto federal foi, claramente, um equívoco da Administração Pública Federal ao interpretar a decisão do STF. Ainda, deixou sem guarida os demais entes, que utilizaram o decreto federal como base para as suas normas locais, em um momento em que a coordenação entre os entes federados é essencial. Resta, aos estados e municípios, complementar as suas normas, caso necessário, para garantir a preservação do interesse local, com base na competência concorrente.
Corremos o risco de, definidos como serviços não essenciais, o saneamento básico, aqui tratado de forma ampla, e a iluminação pública serem interrompidos. Em casos extremos e até de forma preventiva, cabe, principalmente, ao Poder Judiciário, reparar equívocos da Administração e garantir os direitos da população.
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*Rodrigo Bertoccelli é sócio das áreas de Infraestrutura e Saneamento do Felsberg Advogados.
*Fabricio Soler é sócio das áreas Ambiental, Sustentabilidade, Resíduos e Infraestrutura do Felsberg Advogados.
*Amanda De Rolt é associada do escritório Felsberg Advogados.