Muitas dúvidas surgiram em virtude da recente decisão do STF, proferida no último dia 29/4/2020, que suspendeu a eficácia de dois artigos da MP 927/2020, dentre eles o art. 29, permitindo, por consequência, a análise de eventual enquadramento da contaminação pela Covid-19, como doença ocupacional.
A Medida Provisória 927/2020 previa em seu artigo 29 que a contaminação do trabalhador por Covid-19 não seria considerada doença ocupacional, exceto mediante a comprovação do nexo causal, conforme abaixo.
Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal;
Assim consta no dispositivo da decisão do STF:
Decisão: O Tribunal, por maioria, negou referendo ao indeferimento da medida cautelar tão somente em relação aos artigos 29 e 31 da Medida Provisória 927/2020 e, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão, suspendeu a eficácia desses artigos, vencidos, em maior extensão, os Ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, nos termos de seus votos, e os Ministros Marco Aurélio (Relator), Dias Toffoli (Presidente) e Gilmar Mendes, que referendavam integralmente o indeferimento da medida cautelar. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Plenário, 29.04.2020 (Sessão realizada inteiramente por videoconferência - Resolução 672/2020/STF).
Os artigos suspensos têm a seguinte redação:
Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal;
Art. 31. Durante o período de cento e oitenta dias, contado da data de entrada em vigor desta Medida Provisória, os Auditores Fiscais do Trabalho do Ministério da Economia atuarão de maneira orientadora, exceto quanto às seguintes irregularidades:
I – falta de registro de empregado, a partir de denúncias;
II – situações de grave e iminente risco, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas à configuração da situação;
III – ocorrência de acidente de trabalho fatal apurado por meio de procedimento fiscal de análise de acidente, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas às causas do acidente; e
IV – trabalho em condições análogas às de escravo ou trabalho infantil.
O efeito da decisão reflete diretamente no fato de que uma vez definida a contaminação pela Covid-19 como doença ocupacional, via de consequência o trabalhador acometido passa a ter assegurado o auxílio doença acidentário, beneficiando-se do recebimento do valor do benefício, do recolhimento do FGTS e da estabilidade provisória no emprego após a alta médica e retorno ao posto de trabalho. Além disso, é possível uma eventual indenização em caso de morte ou dano permanente a ser pleiteada em face de seu empregador, caso seja comprovado o nexo causal.
O STF ao proferir a decisão entendeu que “dar ao empregado o ônus de comprovar que sua doença é relacionada ao trabalho é, por vezes, impossível.”
Em verdade o fato é que não há como comprovar o momento exato da contaminação pela Covid-19. Uma pessoa em regime de teletrabalho, por exemplo, tem grandes chances de se contaminar com a doença por meio de um contato direto com um parente no âmbito de seu domicilio, sem que necessariamente esteja durante o seu labor. O caso se torna diferente quando o ambiente de trabalho é o foco de contágio, como um hospital, por exemplo. Tratam-se de situações diametralmente distintas.
Inobstante a decisão do STF, o fato da Corte Suprema ter liminarmente suspendido o artigo 29 da MP que não enquadrava os casos de contaminação pela Covid-19 como doença ocupacional, entendemos que não necessariamente se deve considerar a contaminação pela Covid-19 uma doença ocupacional. A interpretação pode se dar em sentido contrário, a depender da análise individual do caso concreto.
Os casos devem ser examinados individualmente, cada circunstância isoladamente. A legislação que trata do tema e estabelece uma série de requisitos para caracterização de doença como ocupacional continua vigente e será a norma balizadora para a análise desses casos.
Do teor da decisão o que se extrai é que fica imputado ao empregador, em eventual discussão futura sobre a sua responsabilidade, demonstrar os cuidados e medidas adotadas na prevenção e proteção da saúde de seus trabalhadores, com a identificação dos eventuais riscos, adoção do regime de trabalho em home office, divisão da equipe em escalas de trabalho, rodízio de trabalhadores, orientação e fiscalização sobre as medidas preventivas relacionadas à saúde e segurança, sobretudo a forma correta de higienização, entrega de equipamentos de proteção individual (EPI’s), máscaras, distanciamento, dentre outras medidas recomendadas pelas autoridades competentes.
Em situação análoga, antes da edição da MP 927/2020, a Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei nº 8.213/91) já previa, em seu art. 20, §1º, “d”, que a doença endêmica está excluída do conceito de doença do trabalho como regra geral. A Lei considera como doença do trabalho apenas se for comprovado que a contaminação resultou de exposição ou contato direto determinado pela natureza do labor.
Veja:
A definição de acidente de trabalho, que inclui a doença ocupacional e a doença do trabalho, está definida nos artigos 19, 20 e 21 da Lei n. 8.213/1991:
Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. (Redação dada pela Lei Complementar nº 150, de 2015)
§ 1º A empresa é responsável pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador.
§ 2º Constitui contravenção penal, punível com multa, deixar a empresa de cumprir as normas de segurança e higiene do trabalho.
§ 3º É dever da empresa prestar informações pormenorizadas sobre os riscos da operação a executar e do produto a manipular.
§ 4º O Ministério do Trabalho e da Previdência Social fiscalizará e os sindicatos e entidades representativas de classe acompanharão o fiel cumprimento do disposto nos parágrafos anteriores, conforme dispuser o Regulamento.
Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:
I - doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social;
II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.
(...)
Art. 21. Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta Lei:
I - o acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única, haja contribuído diretamente para a morte do segurado, para redução ou perda da sua capacidade para o trabalho, ou produzido lesão que exija atenção médica para a sua recuperação;
II - o acidente sofrido pelo segurado no local e no horário do trabalho, em conseqüência de:
a) ato de agressão, sabotagem ou terrorismo praticado por terceiro ou companheiro de trabalho;
b) ofensa física intencional, inclusive de terceiro, por motivo de disputa relacionada ao trabalho;
c) ato de imprudência, de negligência ou de imperícia de terceiro ou de companheiro de trabalho;
d) ato de pessoa privada do uso da razão;
e) desabamento, inundação, incêndio e outros casos fortuitos ou decorrentes de força maior;
III - a doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade;
IV - o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho:
a) na execução de ordem ou na realização de serviço sob a autoridade da empresa;
b) na prestação espontânea de qualquer serviço à empresa para lhe evitar prejuízo ou proporcionar proveito;
c) em viagem a serviço da empresa, inclusive para estudo quando financiada por esta dentro de seus planos para melhor capacitação da mão-de-obra, independentemente do meio de locomoção utilizado, inclusive veículo de propriedade do segurado;
d) no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado.
§ 1º Nos períodos destinados a refeição ou descanso, ou por ocasião da satisfação de outras necessidades fisiológicas, no local do trabalho ou durante este, o empregado é considerado no exercício do trabalho.
§ 2º Não é considerada agravação ou complicação de acidente do trabalho a lesão que, resultante de acidente de outra origem, se associe ou se superponha às consequências do anterior.
No artigo 21 acima citado, consta que se equiparam também ao acidente do trabalho, a doença proveniente de contaminação acidental do trabalhador no exercício de sua atividade.
Entretanto, no artigo 20 da mesma lei e também acima citado, especificamente no seu §1º, consta a excepcionalidade, trazendo a relação de doenças não consideradas acidente de trabalho, incluindo em seu rol a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.
Art. 20. (...)
§ 1º Não são consideradas como doença do trabalho:
a) a doença degenerativa;
b) a inerente a grupo etário;
c) a que não produza incapacidade laborativa;
d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.
§ 2º Em caso excepcional, constatando-se que a doença não incluída na relação prevista nos incisos I e II deste artigo resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho.
Observe ainda, que de uma análise mais aprofundada, consta expressamente uma situação de exceção a esta regra, quanto à comprovação de que a contaminação é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.
Cabe, ainda, atentar para o que consta no art. 21-A que atribui à perícia médica do INSS a decisão de determinar a natureza acidentária da incapacidade para efeitos de concessão do benefício, devendo averiguar o nexo causal:
Art. 21-A. A perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) considerará caracterizada a natureza acidentária da incapacidade quando constatar ocorrência de nexo técnico epidemiológico entre o trabalho e o agravo, decorrente da relação entre a atividade da empresa ou do empregado doméstico e a entidade mórbida motivadora da incapacidade elencada na Classificação Internacional de Doenças (CID), em conformidade com o que dispuser o regulamento.
§ 1º A perícia médica do INSS deixará de aplicar o disposto neste artigo quando demonstrada a inexistência do nexo de que trata o caput deste artigo.
§ 2º A empresa ou o empregador doméstico poderão requerer a não aplicação do nexo técnico epidemiológico, de cuja decisão caberá recurso, com efeito suspensivo, da empresa, do empregador doméstico ou do segurado ao Conselho de Recursos da Previdência Social.
Fazendo análise dos dispositivos acima citados, podemos concluir que a Covid-19, em épocas de pandemia, não pode ser tratada, como via de regra, uma doença do trabalho, conforme o teor do artigo 20 da Lei 8.213/91, exceto se houver a demonstração de que a doença foi adquirida em função das condições de que o trabalho é realizado e que tenha relação direta com ele. Em todos os casos há a necessidade de se comprovar o nexo causal.
Vê-se que não há uma presunção absoluta de estabelecimento de nexo causal com labor em razão de pandemia. Pelo contrário, existe uma exclusão legal, prevista nos casos de doenças endêmicas, conforme preconiza o art. 20, “d” da Lei 8.213/1991.
Assim, em relação à Covid-19 e a situação de pandemia já declarada, baseado nos dispositivos de lei citados, impende afastar a conjectura de que a doença seja imediatamente considerada ocupacional, podendo o trabalhador acometido pela enfermidade e, havendo o nexo causal com o seu labor, ser considerado como doente ocupacional, todavia, neste caso, invertendo-se o ônus da prova.
No cenário atual temos, de um lado os dispositivos de lei já mencionados acima, plenamente vigentes, que afastam a caracterização da contaminação pela Covid-19 como doença ocupacional e, do outro lado, uma decisão do STF em que afastou o art. 29 da MP 927/2020, com teor similar aos dispositivos de lei vigentes, que entendeu que “dar ao empregado o ônus de comprovar que sua doença é relacionada ao trabalho e, por vezes, impossível. ”
Da melhor interpretação, confrontando os dispositivos de lei e a recente decisão do STF, entendemos que, para afastar o enquadramento da Covid-19 como doença ocupacional ou doença do trabalho, deve o empregador fazer cumprir e exigir que seus trabalhadores também cumpram todas as normas de segurança e medicina do trabalho, instruir os seus trabalhadores por meio de comunicados e treinamentos quanto às precauções que deve tomar para evitar a contaminação da Covid-19, adotar as medidas que lhes sejam determinadas pelos órgãos competentes, fornecer os EPI's, em especial os já indicados pelas autoridades, como as máscaras e o álcool 70%, tudo mediante protocolo de recebimento, dentre outras medidas que se façam necessárias para comprovar a prevenção da contaminação de seus trabalhadores pela Covid-19.
É imperioso ao empregador, além de prestar informações detalhadas sobre as operações executadas, bem como produtos manipulados pelos trabalhadores, orientar sobre todos os riscos aos quais estarão expostos durante o trabalho e as medidas necessárias que devem adotar para se prevenirem.
As condições do local de labor e o regime de trabalho adotado para o trabalhador também são de cruciais relevância quando da análise do caso concreto.
Por último, outro ponto que merece atenção e que não podemos deixar de mencionar, é que o Governo Federal, recentemente, revogou a Medida Provisória 905/19, que havia extinguido o acidente de percurso. Ou seja, o acidente ocasionado na ida e volta do trabalhador ao trabalho, neste caso entenda a eventual contaminação pela Covid-19, voltaram a gerar presunção de nexo causal com as atividades laborais e voltaram a ser considerados acidentes do trabalho, por força de lei. Em outras palavras, caso o trabalhador comprove ter adquirido a contaminação no trajeto de ida ou volta ao trabalho, pode vir a ser caracterizada a contaminação como doença ocupacional. Portanto, também merece acurada atenção do empregador, a locomoção do trabalhador no trajeto casa – local de trabalho – casa.
Com a adoção destas medidas pelo empregador, entendemos que restam mitigados os riscos de eventual enquadramento da contaminação pela Covid-19 como doença ocupacional, implicando, via de consequência, na incidência do art. 20, §1º, “d” da Lei 8.231/1991 ao caso concreto.
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*Antônio Cleto Gomes é sócio de Cleto Gomes – Advogados Associados.
*Nicya Pita Lessa é sócia de Cleto Gomes – Advogados Associados.