Migalhas de Peso

O curioso caso do drawback interno como exemplo a não ser seguido

O regime aduaneiro especial de drawback é, desde sua instituição (pelo decreto lei 37/66), um mecanismo de fomento às exportações brasileiras.

12/5/2020

No recente julgamento do REsp 1.715.820/RJ, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da ministra Regina Helena Costa, proferiu uma importante decisão numa discussão envolvendo a aplicação de uma das modalidades do regime aduaneiro especial de drawback, num caso que merece ser examinado não só pela discussão jurídica ora finalizada, mas especialmente sob a perspectiva da importância da previsibilidade tributária (como corolário da segurança jurídica) aos grandes projetos de investimento e infraestrutura dos quais o país ainda carece.

Como se sabe, o regime aduaneiro especial de drawback é, desde sua instituição (pelo decreto lei 37/66), um mecanismo de fomento às exportações brasileiras, já que reduz os custos de produção de produtos exportáveis, tornando-os mais competitivos no mercado internacional. Inicialmente, o regime estava circunscrito à suspensão ou eliminação de tributos incidentes sobre insumos importados para utilização em produto exportado. Porém, sua utilização foi sendo aprimorada ao longo dos anos, tanto assim que hoje em dia é também permitida a suspensão da tributação inclusive em aquisições no mercado interno - desde que, obviamente, destinada ao emprego na industrialização de produtos exportados.

Uma das inovações implementadas no âmbito do regime foi a instituição, pelo artigo 5º da lei 8.032/90, do chamado “Drawback para fornecimento no mercado interno” (“Drawback interno”), definido atualmente pelo artigo 115 da portaria SECEX 23/11 como a “Operação especial concedida para importação de matérias-primas, produtos intermediários e componentes destinados à fabricação no País de máquinas e equipamentos a serem fornecidos, no mercado interno, em decorrência de licitação internacional, contra pagamento em moeda conversível proveniente de financiamento concedido por instituição financeira internacional, da qual o Brasil participe, ou por entidade governamental estrangeira, ou ainda, pelo BNDES, com recursos captados no exterior, de acordo com as disposições constantes do art. 5º da Lei nº 8.032, de 1990, com a redação dada pelo art. 5º da Lei nº 10.184, de 2001, e do Decreto nº 6.702, de 18 de dezembro de 2008.”

O racional por trás de tal benefício é atrair grandes inversões de capital ao País (necessárias para a instalação de grandes empreendimentos industriais, tais como os da área de siderurgia, petroquímica e de infraestrutura, que foram os que se valeram do Drawback em questão) por meio da desoneração das importações em questão. E embora não se exija a exportação física das máquinas e equipamentos – que serão fornecidas no mercado interno justamente para os grandes empreendimentos industriais em questão -, houve a expressa preocupação do legislador com a entrada no Brasil de divisas em moedas conversíveis, que é, à toda evidência, o resultado prático almejado com o fomento às transações de exportação. 

Sob o recorte da perspectiva histórica, vale notar que a legislação depois passou a disciplinar as hipóteses nas quais se reconhece a “exportação ficta” (artigo 6º da lei 9.826/99), garantindo a fruição de todos os efeitos fiscais e cambiais das exportações físicas, quando o pagamento for efetivado em moeda nacional ou estrangeira de livre conversibilidade, sendo tal mecanismo base para outros regimes aduaneiros especiais, tais como o REPETRO e o Depósito Alfandegado Certificado (DAC).

Assim, por mais que o Drawback interno não se operacionalize da mesma maneira que o “drawback clássico”, não se pode negar que os objetivos pretendidos por tal modalidade envolvem a entrada de dividas no país e, além disso, representam uma indução do legislador e do Governo à realização de investimentos industriais de grande porte no Brasil.

Pois bem. Diante da previsão legal em relação ao Drawback interno, várias empresas tiveram concedidas suas habilitações a tal modalidade e, acreditando estarem legalmente amparadas para tanto, conduziram diversas transações de importações que gozaram da suspensão da tributação que, de outro modo, incidiria sobre importações “normais”.

Passados vários anos da concessão do benefício e da realização das transações de importação, qual não foi a surpresa dos beneficiários do referido regime quando as autoridades de comércio exterior (MDIC/SECEX), atendendo a uma determinação do Ministério Público Federal (MPF), revogaram, com efeitos ex tunc, diversos atos concessórios de Drawback interno.

A fundamentação do MPF para tal determinação estava essencialmente fundada nos seguintes argumentos: (I) a interpretação segundo a qual o termo licitação internacional (previsto no artigo 5º da lei 8.032/90) só seria aplicável a licitações públicas e, portanto, a licitação do projeto que veio a ser beneficiado com o drawback só seria válida se tivesse sido realizada por órgãos públicos e sob a égide do regramento previsto na lei 8.666/93; e (II)  à Administração Pública é sempre dado o poder de rever seus próprios atos.

Não bastasse a revogação com efeitos retroativos de atos administrativos que haviam sido legitimamente produzidos e que tinham irradiado os efeitos previstos pelo legislador (já que os projetos industriais foram viabilizados e estavam instalados pelo país e em funcionamento), a RFB passou também a lavrar Autos de Infração contra os outrora beneficiários do Drawback interno, exigindo deles o recolhimento dos tributos que estavam suspensos, em uma situação de evidente violação ao chamado princípio da confiança legítima do contribuinte, que é chancelado pela jurisprudência do STJ1.

Vale lembrar que ao lado da confiança legítima, o sistema tributário nacional contempla também os princípios da legalidade, anterioridade, irretroatividade como veículos da segurança jurídica que deve ser conferida aos jurisdicionados, mais precisamente na condição de contribuintes. E não poderia ser de outra forma, já que a alocação do capital em uma determinada atividade depende fundamentalmente de planejamento e estratégia, pois só por meio delas é que se pode estabelecer uma previsão de retorno do investimento a ser feito.

É precisamente o caso dos projetos que foram beneficiados com o Drawback interno, já que o custo tributário da importação é sabidamente alto e a diferença entre gozar ou não do referido regime especial poderia ser determinante para a viabilização do projeto de investimento induzido pelo Governo. Por absolutamente oportuno, valemo-nos do seguinte trecho da doutrina de Alberto Xavier2 sobre o assunto:

Com efeito, a livre iniciativa exerce-se através de planos econômicos elaborados pelos empresários para um dado período e nos quais se realizou uma previsão, mais ou menos empírica, dos custos de produção, do volume de investimentos adequados à obtenção de dado produto e da capacidade de absorção do mercado. Tal previsão não pode deixar de assentar na presunção de um mínimo de condições de estabilidade, dentro do que a normal margem de riscos e incertezas razoavelmente comporte para o horizonte de planejamento a que respeita. O planejamento empresarial, por que a iniciativa privada se concretiza, supõe assim uma possibilidade de previsão objetiva e esta exige, por seu turno, uma segurança quanto aos elementos que a afetem.”

Levando-se em consideração o exposto acima, a situação envolvendo a revogação dos atos concessórios de Drawback Interno torna-se ainda mais polêmica quando pensamos que tal revogação se deu com efeitos retroativos com base numa (bastante questionável) interpretação legislativa, em clara afronta ao disposto no artigo 2º, inciso XIII, da lei 9.784/993 e também ao artigo 146 do Código Tributário Nacional4.

Foi então sob este pano de fundo que os beneficiários dos atos concessórios de Drawback Interno começaram (nos idos de 2007) a bater às portas do Poder Judiciário com ações que visavam a anulação dos atos administrativos de revogação dos atos concessórios de Drawback Interno.

Interessante ainda notar que no curso de tais discussões foi promulgada a lei 11.637/08, cujo artigo 3º5 tratou de explicitar a principal linha de argumentação das referidas ações anulatórias ao dispor que “Para efeito de interpretação do art. 5o da Lei nº 8.032, de 12 de abril de 1990, licitação internacional é aquela promovida tanto por pessoas jurídicas de direito público como por pessoas jurídicas de direito privado do setor público e do setor privado”.

E foi com base em tal cenário fático e jurídico que se deu o julgamento do REsp 1.715.820 – RJ, no qual a Primeira Turma do STJ, por unanimidade, reafirmou que a natureza do regime aduaneiro de drawback é de incentivo à exportação (com a desoneração do processo de produção, para tornar a mercadoria nacional mais competitiva no mercado global), ao mesmo tempo em que reconheceu que o conceito de licitação internacional trazido pelo artigo 5º da lei 8.032/90 é mais amplo que o conceito de licitação pública previsto no artigo 42 da lei 8.666/93 e engloba as licitações públicas e também os certames promovidos pelo setor privado, já que a interpretação restritiva lançada pelo MPF representaria, na prática, que apenas empresas do setor público poderiam se beneficiar do Drawback interno, o que violaria o disposto no artigo 173, § 2º da CF/88 – que expressamente determina que “as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado”. Ademais, também restou reconhecido o caráter interpretativo do artigo 3º da lei 11.732/08, com sua aplicação retroativa à discussão em tela.

Dada a importante decisão recentemente proferida pelo STJ na discussão jurídica exposta acima (não sem antes 13 anos de incerteza sobre o possível desfecho das ações judiciais e de custos com sua manutenção), cumpre ressaltar que a intenção do presente artigo não é narrar uma história triste que teve final feliz, mas sim chamar a atenção para a importância da chamada previsibilidade tributária – que, de acordo com um relatório elaborado conjuntamente pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI)6, diz respeito à criação e manutenção de estruturas de regulação e política fiscal estáveis para a administração tributária e os contribuintes. Tem por objetivo, portanto, a estabilização de expectativas de ambos os lados da relação.

Trata-se de um assunto que tem ganhado importância no cenário internacional, tanto assim que, a pedido dos líderes do G20, virou objeto de estudo e do relatório conjunto da OCDE e do FMI mencionado logo acima, pois há um aparente consenso de que esforços para aumentar a previsibilidade tributária podem trazer reflexos positivos ao comércio, investimento e crescimento econômico. Desnecessário dizer que atração de investimentos e crescimento econômico são necessidades prementes para o Brasil, especialmente considerando o cenário de insegurança em relação à atividade econômica mundial pós pandemia da covid-19.

E embora no presente momento pandêmico não se tenha falado muito no assunto, não é demais lembrar que está em curso o pleito brasileiro de adesão à OCDE, o que demandará do país esforços em termos de adaptação de políticas públicas (inclusive as fiscais) e atuação coordenada de órgãos governamentais para garantir um ambiente de segurança jurídica capaz de trazer os resultados positivos que se almeja com tal adesão. Dentro de todo esse contexto, a ilustrativa decisão do STJ no REsp 1.715.820/RJ se revela como um verdadeiro exemplo de como o Governo deve pautar sua atuação no tocante aos benefícios fiscais e normas indutoras por ele mesmo editados e que desempenham papel relevante para o fomento de investimentos e crescimento da economia nacional.

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1 AgInt na suspensão de liminar e sentença 2.161-DF, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJe in 06.12.16 – “A revogação do Programa de Inclusão Digital, sem dúvida, arranha o princípio da confiança, que deve ser preservado no sistema tributário. Em outras palavras, o contribuinte tem expectativas que devem ser conservadas”.

2 XAVIER, Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1978, p. 44

3 “Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: (...)

XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.”

4 Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.

5 Art. 3º  Para efeito de interpretação do art. 5° da lei 8.032, de 12 de abril de 1990, licitação internacional é aquela promovida tanto por pessoas jurídicas de direito público como por pessoas jurídicas de direito privado do setor público e do setor privado. (Vide)

§ 1º  Na licitação internacional de que trata o caput deste artigo, as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado do setor público deverão observar as normas e procedimentos previstos na legislação específica, e as pessoas jurídicas de direito privado do setor privado, as normas e procedimentos das entidades financiadoras.

§ 2º  (VETADO)

§ 3º  Na ausência de normas e procedimentos específicos das entidades financiadoras, as pessoas jurídicas de direito privado do setor privado observarão aqueles previstos na legislação brasileira, no que couber.

§ 4º  (VETADO)

§ 5º  O Poder Executivo regulamentará, por Decreto, no prazo de 60 (sessenta) dias contados da entrada em vigor da Medida Provisória no 418, de 14 de fevereiro de 2008, as normas e procedimentos específicos a serem observados nas licitações internacionais promovidas por pessoas jurídicas de direito privado do setor privado a partir de 1o de maio de 2008, nos termos do caput e parágrafos deste artigo, sem prejuízo da validade das licitações internacionais promovidas por pessoas jurídicas de direito privado até esta data.

6 OCDE. Tax Certainty. IMF/OECD Report for the G20 Finance Ministers. 2017. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 03.05.20

_________

*Eduardo Carvalho Caiuby é sócio da área tributária de Pinheiro Neto Advogados.

*Luiz Fernando D. L. Machado é associado sênior da área tributária de Pinheiro Neto Advogados.

 

 

 

*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. 

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