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Novo normal na advocacia corporativa

O principal efeito da crise relacionada à Covid-19 foi o isolamento social inédito em termos de proporções e impactos sociais e econômicos.

7/5/2020

Estamos enfrentando uma crise jamais vivida... como aconteceu com todas as crises anteriores, que atingiram a humanidade sem aviso. Por isso, as experiências trazidas de crises passadas têm alcance limitado para sobrevivermos (e crescermos) diante da crise atual. 

O principal efeito da crise relacionada à Covid-19 foi o isolamento social inédito em termos de proporções e impactos sociais e econômicos. Entretanto, há estudo que conclui que algum tipo de distanciamento social seja necessário ainda em mais alguns anos, de maneira intermitente1. Fala-se, então, sobre um “novo normal” a ser estabelecido quando a crise passar2. 

Diante disso, o que seria o novo normal na advocacia corporativa, que seja sustentável na retomada das atividades sociais e econômicas, mesmo com distanciamentos intermitentes? 

Um clichê nunca foi tão verdadeiro: é preciso que nós nos reinventemos. Ser resiliente não é o bastante e não há como insistir para que as coisas voltem ao que eram antes3. Essa crise, então, deve ser vivida efetivamente como oportunidade: quando a mudança é muito grande, a experiência acumulada tende a valer pouco se não adaptada, se não empregada com criatividade. Se é assim, estamos todos indistintamente começando praticamente do zero. O que vale é a analogia (transposição criativa) e não a identidade da questão a ser resolvida. 

Valorização do advogado corporativo 

Com relação à profissão jurídica, o efeito mais relevante da Covid-19 foi a valorização do advogado corporativo, especialmente aquele que atua internamente na organização. Isso se deve, primordialmente, por sua proximidade com a operação, o que o faz conhecedor do “chão de fábrica”, e da sua proximidade com os gestores (decision makers).

O advogado das organizações foi chamado a tomar seu lugar na sala das decisões. Decisões que exigiram velocidade, sendo muitas por dia, às vezes, até por horas e em um contexto fluido – velocidade e fluidez que vieram para ficar. A produção legislativa no período da crise foi intensa, porém, houve um lapso temporal entre o início do isolamento social – e a parada da atividade econômica – e as primeiras enxurradas de documentos legais. Coube ao advogado corporativo sustentar a posição da alta administração, tanto durante a lacuna legal quanto depois, com a extensa produção legislativa.

As funções jurídicas mostraram-se como o que realmente são: ativo das organizações. O departamento jurídico não pode (mais) ser visto como centro de custo; ele é um centro estratégico do desenvolvimento das atividades empresariais. É possível, assim, ousar sustentar que os gastos incorridos com e pelo departamento jurídico devem ser considerados como ativo e não como despesa (inclusive, em termos de demonstrações financeiras: ativo intangível, pois, são recursos imateriais que gerarão benefícios futuros).

Houve também inestimável aprendizado adquirido pelo advogado: adoção (ou reforço) da postura e da linguagem do gestor, motivo pelo qual, as posições jurídicas ficaram mais aderentes à posição da alta administração. O advogado corporativo percebeu que ele deve viabilizar o negócio da organização, buscar a estratégia jurídica na análise do risco e não ver o risco como impedimento do negócio.

A prática da advocacia sofreu fortes impactos, que podem ser classificados em dois tipos: circunstâncias que a crise apenas realçou, isto é, confirmou, porque já eram tendências, e circunstâncias que foram efetivamente criadas pela crise.

Circunstâncias que a crise confirmou

Durante a crise restou indubitável e inegável que o advogado corporativo toma e deve tomar parte da condução da estratégia da organização. A função do advogado corporativo não é reproduzir o que a lei diz; sua função é participar das decisões tomadas, garantindo que a escolha da alta administração considera a melhor forma de gestão de riscos, porque os riscos são inevitáveis.

Além disso, a crise confirmou que é exigida do advogado corporativo uma abordagem multi e interdisciplinar. O advogado que avalia questões como fluxo de caixa, inadimplência de empréstimo, cross default e negociação com fornecedores não se afastou da sua função jurídica, ao contrário, realizou o ofício na sua plenitude.

Diante disso tudo, a interpretação pura e simples do texto legal ficou definitivamente em segundo plano. Importa avaliar juridicamente a qualidade das decisões tomadas à luz das informações disponíveis e conhecidas no momento da tomada dessas decisões.

Circunstâncias que a crise inovou

Um efeito importante da crise está relacionado ao aumento da intervenção estatal, seja na regulação seja na atuação diretamente no desenvolvimento econômico (subsídios à população mais necessitada e concessão de créditos a pessoas jurídicas). Considerando que o Direito é o principal instrumento de atuação estatal, a crise deve aumentar a atuação do advogado, em campos jurídicos conhecidos e campos inéditos (veja-se o exemplo do monitoramento da população pela localização e pelos dados do celular).

No entanto, a maior inovação da crise foi: descobrimos o digital, ou, de maneira particular, o contato remoto. Com isso, criou-se – o que deve ser intensificada – a “teleadvocacia”, ou advocacia remota, à distância. Inúmeras são as transformações na advocacia corporativa. Citam-se alguns exemplos.

A “teleadvocacia”, como o nome denuncia, prescinde do contato físico; em outras palavras, foi eliminada a distância para o exercício da advocacia. Com isso, o advogado deve estar disponível, embora não o tempo todo, como acontece com o cumprimento da jornada de trabalho na sede da organização (isto é, no horário comercial). O tempo e o momento de dedicação à organização passam a ser indeterminados, o que implica alteração na métrica de remuneração: de horas disponíveis para produtividade. Se os efeitos da crise questionaram a eficácia do sistema just-in-time para matéria prima e estoques, no caso dos serviços advocatícios, esse sistema permanece: o advogado é acionado por demanda e deve responder com certa brevidade.

Papel do advogado externo

O processo de valorização do advogado corporativo que atua internamente na organização tende a alterar o papel de atuação do advogado externo, que atua em escritório de suporte à organização.

Talvez, o primeiro efeito seja o volume de trabalho relacionado ao contencioso, que deve aumentar no pós-crise. Aqui, todavia, cabe distinguir contencioso do litigioso: o primeiro diz respeito ao que pode gerar controvérsia (e até conflito), o segundo se relaciona à solução do conflito de maneira litigiosa (judicial ou arbitral). Em outras palavras, o contencioso é litigioso em potencial, mas, não necessariamente de maneira efetiva. Em verdade, já se vislumbra o aumento do contencioso, e, como dito, é provável que siga nesse movimento crescente, no entanto, a sua solução tenderá a ser negociada, mediada, de preferência, por advogados externos à organização, em razão, principalmente, da sua relativa independência e potencial equidistância entre os envolvidos. Nesta função de mediador, também serão exigidos do advogado os conhecimentos multi e interdisciplinar das nuances do negócio e da prática comercial.

Em questões não conflituosas, a consultoria deve dar lugar ao assessoramento. O advogado externo será chamado a estar junto na tomada de decisão, e não tão somente emitir sua opinião, seu parecer. A função mais importante do advogado externo será compartilhar suas experiências no contato com outras organizações e outras atividades (compartilhar “o aprendizado com o erro dos outros”), também com abordagem inter e multidisciplinar, e não se limitar a opinar sobre a interpretação do texto legal ou o posicionamento jurisprudencial mais atual. Para cumprir a sua função de assessoramento, serão exigidos do advogado externo o conhecimento prático (experiência com casos análogos) e o conhecimento teórico (fundamentos e embasamentos universais para a tomada da decisão).

Os escritórios de advocacia também serão remodelados, adotando o parâmetro de comércio local, tão incentivado durante a quarentena: estrutura mais enxuta, contato direto do contratante com o tomador de decisão (decision makers) das bancas, disponibilidade e atendimento just-in-time e equipe qualificada para a assessoria multi e pluridisciplinar.

Papel do advogado especialista

Apesar de a avaliação de riscos e a tomada de decisões serem processos multidisciplinares, ainda haverá espaço para o advogado especialista no novo normal. Na crise sanitária da Covid-19, a atuação especializada de infectologistas e de intensivistas foi fundamental. Portanto, o conhecimento vertical do especialista permanece importante – e, na origem, todo advogado acaba por desenvolver uma especialidade, mesmo que seja por afinidade à matéria.

Conquanto a análise possa ser vertical, focada, as conclusões do advogado especialista não poderão se limitar às fronteiras da sua matéria de atenção. A repercussão da opinião do especialista terá que, necessariamente, abordar implicações com relação a outras matérias jurídicas e não jurídicas – assim como a atuação especializada de infectologistas e intensivistas, fundamental como mencionado, não terá sido a única para debelar o coronavírus. Assim como aconteceu em outros momentos pós-crise, a interpretação literal (que privilegia o texto da lei) cede espaço à interpretação teleológica (que privilegia o valor da lei aplicada ao caso concreto).

Contato pessoal

O isolamento social fomentou o encapsulamento 2.0: as pessoas tenderão a seguir mais tempo dentro de casa, porque terão percebido “formas mais eficazes de trabalhar, aprender e viver as suas vidas”4. Em razão disso e da tecnologia recém descoberta, o contato profissional tende a se concentrar nas reuniões remotas – o que não quer dizer a abolição das reuniões presenciais. Como mencionado, o contato remoto, no geral, garante maior disponibilidade e aproveitamento do tempo de trabalho. Isso quer dizer que tende a aumentar o contato entre os profissionais, porém, por meio dos instrumentos digitais.

O contato presencial será destinado, primordialmente, às relações sociais e filantrópicas, ainda que com pessoas do círculo profissional ou colegas da própria organização. Afinal de contas, paradoxalmente, o contato remoto humanizou as relações, pois abrimos a nossa casa aos nossos companheiros de trabalho. Com isso, abre-se o caminho para a aproximação entre as pessoas que têm relacionamento profissional, além de iniciativas conjuntas de responsabilidade social.

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3 Rodolfo Amstalden, em artigo intitulado “Zeitgeist”, acessível em: clique aqui

4 Relatório “A busca pela nova normalidade”, elaborado pelo Grupo Toolbox, página 66.

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*Edison Carlos Fernandes, doutor em Direito pela PUC/SP, professor da FGV Direito SP e do CEU Law School, sócio fundador do Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados.

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