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MP do Contrato de Trabalho Verde e Amarelo - Efeitos jurídicos da revogação da MP 905/19 pela MP 955/20

De acordo com a jurisprudência do STF, não seria constitucionalmente válida a eventual edição de medida provisória que estabeleça a mesma disciplina jurídica para os temas da MP 905/2019.

6/5/2020

O presidente da República editou, em 11/11/2019, a Medida Provisória 905/19, que pretendeu instituir regime específico de contratação que denominou de Contrato de Trabalho Verde e Amarelo. O texto não se limitou a esse tema, mas tratou de numerosas outras questões, não só de direito do trabalho, como de vários outros ramos.

Para dimensionar a extensão da MP, refira-se que, além de estabelecer uma disciplina especial para o primeiro emprego de  trabalhadores com idades entre 18 e 29 anos, inseriu ou alterou 150 dispositivos na CLT, revogou 37 de seus artigos e interferiu em nada menos do que 46 outros diplomas.

Considerando as regras dos arts. 57 e 62, §§ 3º, 4º e 7º, da Constituição Federal, o Congresso Nacional deveria apreciar a MP 905/19 até o dia 20 de abril de 2020, sob pena de sobrevir sua caducidade.

A Câmara dos Deputados avaliou a MP e aprovou projeto de conversão em lei, em sessão concluída na madrugada de 15 de abril. O tempo disponível para o subsequente exame do texto pelo Senado era, contudo, especialmente exíguo. O  presidente da Casa Alta aconselhou o Chefe do Poder Executivo a revogar a medida provisória e editar uma nova acerca dos mesmos temas. E, efetivamente, a presidência da República, no dia em que se encerraria o prazo de avaliação parlamentar, adveio a MP 955/20, cujo artigo primeiro estabelece, simplesmente, que "Fica revogada a Medida Provisória 905, de 11 de novembro de 2019".  

Ao noticiar a revogação da MP 905/2019, a Agência Câmara de Notícias referiu:

"A Medida Provisória 955/20, publicada pelo Diário Oficial da União na segunda-feira (20), revoga a MP 905/19, que instituiu o Contrato Verde e Amarelo, programa do governo voltado para a criação de postos de trabalho entre jovens. O presidente Jair Bolsonaro informou que deverá reeditar a MP.

A revogação ocorreu no último dia de vigência da MP 905, após entendimentos entre Bolsonaro e o senador Davi Alcolumbre, presidente do Senado, onde a MP aguardava deliberação"1.

O presente texto, a partir do cenário descrito, irá enfrentar quatro perguntas:

(a) É válida a reedição, na mesma sessão legislativa, de MP revogada?

(b) É relevante a MP 905/2019 ter sido editada em 2019?

(c) O que se considera reedição de MP para os fins do art. 62, § 10, da Constituição?

(d) O que acontecerá com as relações jurídicas havidas com base na MP 905?

Na forma do artigo 62, § 10, da Constituição da República, "É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa2, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo". A proibição foi introduzida pela Emenda Constitucional 32/2001, com o objetivo de por cobro à reedição sucessiva de MPs.

Uma interpretação estritamente literal da norma antes referida poderia dar a entender que, no caso concreto, não havendo ocorrido rejeição ou caducidade da MP, o envio de uma nova medida provisória seria possível ainda no curso deste exercício. Segundo essa linha de entendimento, havendo sido revogada a MP 905/19, não haveria impedimento para sua reedição.

Acontece que a compreensão adequada do regime constitucional das medidas provisórias e o conhecimento da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria conduzem inexoravelmente à conclusão de que seria constitucionalmente inócua qualquer tentativa de editar, por meio de nova MP, neste exercício, normas substancialmente similares às que compunham a MP 905/19.

O STF apreciou em várias oportunidades a questão da possibilidade da revogação de uma MP por intermédio de uma outra norma da mesma natureza, afirmando-se a viabilidade constitucional da conduta. A primeira dessas decisões foi proferida na ADI 221, na já distante data de 29 de março de 1990, sob a relatoria do Ministro Moreira Alves. No essencial, as linhas mestras daquela decisão pioneira foram mantidas, invariavelmente, em todas as manifestações do STF acerca do tema.

Nessas diversas ocasiões3, além de se discutir a possibilidade da edição da norma revogatória, foram tratadas em profundidade várias das possíveis consequências desse ato, inclusive sob as perspectivas do processo legislativo, da validade de tratamento do tema em MP diversa e da regulação das relações jurídicas objeto da norma revogada.

Pela clareza e pertinência da decisão e pelo fato de ali ter havido a primeira manifestação do STF acerca do tema da possibilidade de revogação de uma medida provisória por outra sob a disciplina da EC 32, ainda hoje vigente, tem especial relevância o julgamento da ADI 29844.

Sob a relatoria da ministra Ellen Gracie, ali se assentou, conforme ementa do respectivo acórdão, que (1) "a partir de sua publicação, a Medida Provisória não pode ser 'retirada' pelo Presidente da República à apreciação do Congresso Nacional", que (2) "a Medida Provisória é passível de ab-rogação mediante diploma de igual ou superior hierarquia", que (3) a revogação "apenas suspende a eficácia da norma ab-rogada, que voltará a vigorar pelo tempo que lhe reste para apreciação, caso caduque ou seja rejeitada a MP ab-rogante" e, finalmente, que (4) "[o] sistema instituído pela ED nº 32 leva à impossibilidade – sob pena de fraude à Constituição – de reedição da MP revogada5, cuja matéria somente poderá voltar a ser tratada por meio de projeto de lei".

A questão dos efeitos da revogação da MP sobre a possibilidade de reedição, na mesma sessão legislativa, de norma de igual natureza e mesmo conteúdo substancial foi tratada em vários dos votos então proferidos, ainda que não fosse esse o cerne da discussão encetada na ADI 2984.

É interessante referir, por todos, o arguto voto do ministro Sepúlveda Pertente, em que, tratando especificamente da regra do parágrafo 10 do artigo 62 da Constituição e do argumento de que a norma não trataria especificamente da hipótese de revogação, anotou:

"A letra desse parágrafo, efetivamente, não abrangeria a hipótese de ser a medida provisória revogada no curso de sua apreciação, donde, concluem os requerentes, estaria aberto o espaço para o Governo do jogo de ‘gato e rato’:  revogava-se a medida provisória, aprovava-se aquilo que a sua pendência estaria a obstruir e, logo em seguida, editava-se nova medida provisória, com o mesmo conteúdo da revogada. 

Creio, Sr. Presidente, que isso seria possível, mas tenho fé que o será enquanto existir do Supremo Tribunal Federal – parafraseando Holmes -, porque o que  a Constituição proíbe obter diretamente, não se pode obter por meios transversos, que configuraria hipótese clássica de fraude à Constituição. 

Assim, não tenho dúvida – como o eminente Relatora da ação direta também o expressou –, de que seria inválida a reedição substancial da medida provisória revogada na mesma sessão legislativa, tanto quanto o seria a reedição de medida provisória rejeitada ou caduca".

Recentemente, nos autos da ADI 5709, o STF voltou a tratar do tema, ocasião em que, em votação unânime no particular, fixou a seguinte tese: "É inconstitucional medida provisória ou lei decorrente de conversão de medida provisória cujo conteúdo normativo caracterize a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória anterior rejeitada, de eficácia exaurida por decurso do prazo ou que ainda não tenha sido apreciada pelo Congresso Nacional dentro do prazo estabelecido pela Constituição Federal".

O STF julgava, então, arguições de inconstitucionalidade que originariamente atacavam os termos da MP 782/17, convertida na lei 13.502/2017. O pedido foi julgado procedente, declarando-se a integral inconstitucionalidade da lei, especificamente em razão da infringência ao art. 62, § 10, da Constituição Federal. 

Da ementa do acórdão em causa, publicado em 28/6/2019, extrai-se o trecho seguinte, cuja clareza dispensa comentários adicionais:

5. Impossibilidade de reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória revogada, nos termos do prescreve o art. 62, §§2º e 3º. Interpretação jurídica em sentido contrário, importaria violação do princípio da Separação de Poderes. Isso porque o Presidente da República teria o controle e comando da pauta do Congresso Nacional, por conseguinte, das prioridades do processo legislativo, em detrimento do próprio Poder Legislativo. Matéria de competência privativa das duas Casas Legislativas (inciso IV do art. 51 e inciso XIII do art. 52, ambos da Constituição Federal). 6. O alcance normativo do § 10 do art. 62, instituído com a Emenda Constitucional n. 32 de 2001, foi definido no julgamento das ADI 2.984 e ADI 3.964, precedentes judiciais a serem observados no processo decisório, uma vez que não se verificam hipóteses que justifiquem sua revogação. 7. Qualquer solução jurídica a ser dada na atividade interpretativa do art. 62 da Constituição Federal deve ser restritiva, como forma de assegurar a funcionalidade das instituições e da democracia. Nesse contexto, imperioso assinalar o papel da medida provisória como técnica normativa residual que está à serviço do Poder Executivo, para atuações legiferantes excepcionais, marcadas pela urgência e relevância, uma vez que não faz parte do núcleo funcional desse Poder a atividade legislativa. 8. É vedada reedição de medida provisória que tenha sido revogada, perdido sua eficácia ou rejeitada pelo Presidente da República na mesma sessão legislativa. Interpretação do §10 do art. 62 da Constituição Federal.

No caso da MP 905/19, portanto, se for encaminhada medida provisória que reedite, no todo ou em parte, normas substancialmente idênticas às daquela, haverá clara infringência constitucional.

A resposta à pergunta relacionada à possibilidade de se reeditar medida provisória revogada está fixada pelo STF há nada menos do que TRINTA anos, sem que, ao longo de todo esse tempo, a Corte se tenha desviado do caminho interpretativo adotado à partida.

Também não se pode conceder o benefício do desconhecimento de decisão já um pouco recuada no tempo para relativizar a impropriedade da sugestão ora tratada, de vez que no segundo semestre do ano passado especificamente o STF fez questão6 de fixar tese específica no mesmo sentido do entendimento tradicionalmente afirmado pela Corte.

Houve ainda quem imaginasse que a reedição da MP 905/19, posteriormente à sua revogação por outra medida provisória, seria possível porque, como a MP 905 foi objeto de edição na sessão legislativa de 2019, o encaminhamento de uma nova medida provisória neste ano de 2020 não implicaria a incidência da proibição. Segundo essa linha de compreensão, a vedação apenas alcançaria a medida provisória se em um mesmo exercício ocorressem tanto sua edição quanto sua rejeição ou caducidade.

Essa interpretação carece de mínima razoabilidade, não sendo coerente com a teleologia do art. 62, § 10, da Constituição, com os princípios constitucionais e com o processo legislativo nacional.

Muito feliz a estratégia explicativa que Antônio Augusto de Queiroz e Luiz Alberto dos Santos adotaram para que se evidenciassem o objeto da norma proibitiva e o fato que determinaria a incidência concreta da restrição:

"Para leitores apressados do referido dispositivo constitucional, a interpretação corrente ou do senso comum era de que a reedição só estaria proibida se a rejeição ou perda de eficácia tivesse ocorrido na mesma sessão legislativa (ano legislativo) em que foi editada. 

Contudo, não é essa a melhor interpretação da norma. Nem do ponto de vista da interpretação literal, nem da interpretação teleológica, que consulta ao objetivo da norma firmada na Constituição. 

Basta ver que, no § 10, não se diz que 'É vedada a reedição de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo, na sessão legislativa em que foi editada'. 

O texto constitucional é mais sábio do que isso, e, concretamente, diz que 'É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo'. 

Com tal formulação, o comando que precede todo resto do dispositivo é a vedação de reedição, e a enumeração das hipóteses se dá de forma dependente do marco temporal ‘na mesma sessão legislativa’, dependendo a vedação, portanto, do momento em que cada ato ocorra"7.

O objetivo do legislador constituinte derivado, ao vedar a reedição da MP na mesma sessão legislativa era, claramente, impedir uma prática recorrente à época da Emenda Constitucional 32: a reedição sucessiva de medidas provisórias, que amesquinhava o papel do Poder Legislativo pela maximização da atuação solitária do presidente da República. Por conseguinte, o fato relevante a implicar a restrição de atividade (de reeditar MP) é a sua rejeição ou caducidade (ou ainda sua revogação).

Evidentemente não teria sentido estabelecer, expressamente, o impedimento a uma reedição de medida provisória ainda não apreciada, pelo que considerar a data de sua edição seria uma inutilidade. E seria uma inutilidade porque não haveria ocasião que justificasse concretamente que tal suposta reedição fosse necessária ou válida.

Ultrapassada a questão da possibilidade de reedição pura e simples da MP 905/19, segue-se ao exame da terceira questão proposta.

Apenas haverá a conduta vedada se o texto anterior for repetido? Será constitucionalmente válida essa conduta se apenas uma parte dos temas tratados na MP não convertida em lei for objeto de mesmo tratamento em uma nova MP ou se o tratamento das questões vier acompanhado de temas não veiculados na MP anterior?

Alguém poderia sustentar haver observância do art. 62, § 10, da Constituição, simplesmente se a nova medida provisória não repetisse a disciplina da MP 905/19. Para tanto, seria invocada uma interpretação literal da norma e o argumento de que, como a regra tem feição proibitiva, exigir-se-ia uma sua aplicação restritiva.

Essa compreensão seria equivocada. Na realidade, a edição de uma medida provisória, porque excepciona a regra geral do processo legislativo, apenas é admitida em condições extraordinárias. Por isso, é a norma autorizativa da edição de MPs que reclama uma interpretação restritiva, para determinar um uso absolutamente parcimonioso desse instrumento reservado a situações de manifestas urgência e relevância.

No julgamento da MP 5709, também essa questão foi enfrentada. A ministra Rosa Weber, na ocasião, valeu-se outra vez de anteriores manifestações do STF, para declarar que o impedimento à reedição de MP na mesma sessão legislativa abrangeria qualquer repetição da respectiva substância (e não especificamente da forma), inclusive quando parcial ou quando acompanhando o tratamento de outros temas. Disse, referindo-se à ADI 3964: 

"17. Outro ponto explicitado e solucionado no julgado concentrou-se na extensão e nos limites da reedição da medida provisória, que assim pode ser enunciado: para a caracterização da reedição da medida provisória, faz-se necessária a integral ou parcial repetição? A reedição substancial configura-se quando o texto anterior é replicado, embora outros temas também sejam disciplinados? 

A resposta jurisdicional definida pelo Plenário deste Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que a reedição, ainda que parcial, da medida provisória revogada é suficiente para a incidência da proibição veiculada na norma do art. 62, § 10, da Constituição Federal. A justificativa subjacente para tanto levou em consideração a finalidade da reforma constitucional ocorrida por meio da EC nº 32/2001, bem como a realidade do processo legislativo levado a cabo nos anos antecedentes. 

Nesse ponto, a manifestação do Min. Gilmar Mendes se distingue, ao defender a necessidade de se refutar a chancela da ideia de reedição minimalista que seja, porquanto esse foi o modelo atacado pela Emenda Constitucional nº 32/2001: 

'Mas o quadro, aqui, realmente, é outro, conforme demonstrou o Ministro-Relator. Independentemente da relevância e urgência da matéria, que me parece insofismável, se nós pudéssemos chancelar a ideia de que uma reedição mínima, minimalista ou até uma reedição mediante paráfrases seria aceitável. A rigor, nós poderíamos estar incorrendo, realmente, já na revogação do modelo da Emenda nº 32, que foi tão almejado porque queria se romper com o modelo anterior, especialmente no que diz respeito ao §3º e ao §10 do art. 62. A partir daí, bastaria uma alteração cosmética num dispositivo, para, revogada uma medida provisória, fazer-se a reedição. Não haveria mais mãos a medir. Nós estaríamos regressando ao modelo de reedição de medidas provisórias, o qual, obviamente, a Emenda nº32 procurou coibir. Parece-me ser esse um dado objetivo'". 

Anteriormente se anotou a extraordinária amplitude de temas que foram disciplinados na MP 905/2019 e o fato de que o artigo 1º da MP 955/20 simplesmente estabeleceu que "Fica revogada a Medida Provisória nº 905, de 11 de novembro de 2019".

Inúmeras relações jurídicas foram estabelecidas, alteradas ou por vários modos influenciadas por suas disposições entre 11/11/2019 e 20/4/2020. Contratos foram ajustados, decisões judiciais foram proferidas, autuações administrativas foram lavradas etc. sob o pálio das normas da MP 905/19.

O que ocorrerá com essas relações jurídicas?

Antes de tratar desse aspecto, cabe ressalvar que, a despeito do teor literal do art. 1º da MP 955/20, a MP 905/19 ainda não ‘ficou revogada’, pelo que a resposta ao questionamento será condicional. Claro, porque a revogação apenas se operará se e quando a MP 955/20 for convertida em lei.

A regra geral é a de que a edição de uma MP suspende a eficácia de lei que trate do mesma tema. Essa paralisação dos efeitos da norma precedente terá efeitos permanentes, retroativamente à edição da MP, caso seja ela convertida em lei. Se, ao contrário, a medida provisória vier a ser rejeitada ou caducar, não ocorrerá a revogação do texto legal anterior, que terá sua eficácia restaurada, ressalvada a possibilidade de tratamento de questões específicas em sede de decreto legislativo8.    

Do mesmo modo se dá quanto a uma medida provisória que pretenda revogar uma outra norma de igual natureza, com o acréscimo de que a nova MP será também ela uma norma contingente. Serão paralisados, no caso, a eficácia da norma revoganda e o respectivo processo legislativo.

No caso concreto, a MP 955/2020 suspendeu a eficácia da MP 905/19, paralisando também sua tramitação. Por imperativo lógico, a análise da MP que se pretende revogadora precede à da MP revoganda, em  uma inversão necessária da ordem cronológica usual.

Abrem-se duas alternativas: ou (1) o Congresso, apreciando a MP 955/2020, resolve convertê-la em lei, concretizando a revogação da MP 905/2010; ou (2) apreciando a MP 955/2020 para rejeitá-la ou deixando de apreciá-la no prazo constitucional, nega eficácia à MP 955/2020, fato que implicaria fossem retomadas a eficácia da MP 905/2019 e a respectiva tramitação legislativa pelo tempo que lhe restava (um específico dia).

Registre-se, como exercício especulativo, que um cenário possível seria a superveniência da rejeição da MP 955/20 seguida de apreciação da MP 905/19, durante o dia que lhe restaria de vigência.

Uma eventual aprovação da MP 905/2019 poderia ser objeto de questionamentos do ponto de vista constitucional, considerando o objeto mais do que restrito da MP 955/2020. De fato, além de todas as discussões de mérito que o conteúdo da MP 905/2019 já implicava, é fato que uma aprovação em tais hipotéticas circunstâncias poderia justificar celeuma também de natureza formal, sob o argumento de se haver realizado manobra escusa para contornar o prazode tramitação da MP.

Por tudo isso, parece-me que, se o governo pretende regular as matérias tratadas pela MP 905/20 ainda no corrente ano, melhor seri que se submetesse ao procedimento ordinário, encaminhando projeto de lei ao Congresso Nacional, a bem da segurança jurídica e até mesmo em consideração às circunstâncias político-institucionais.

Excetuada a possibilidade de sobrevirem a rejeição da MP 955/2020 e a aprovação da MP 905/19, o que me parece no mínimo impraticável, cabe discorrer acerca dos possíveis efeitos jurídicos da medida provisória revoganda.

Sabe-se que as medidas provisórias "perderão sua eficácia, desde sua edição, se não forem convertidas em lei" no prazo constitucional, cabendo ao Congresso Nacional "disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes" (CF, art. 62, § 3º).

No julgamento da ADI 2984, o voto do Ministro Gilmar Mendes, afirmando a viabilidade da revogação de medida provisória e a impossibilidade de reedição da norma revogada na mesma sessão legislativa, fez-se fundar em dissertação de mestrado de Ana Cláudia Manso Rodrigues para esclarecer que, em bom rigor, a conversão da medida provisória revogatória em lei tem o efeito de uma desaprovação da MP revogada. Assim o estudo referido:

"Deste modo, na revogação de uma medida provisória por outra não se afigura propriamente uma revogação. Não se pode perder de vista o alcance da força derrogatória do ato normativo governamental com força de lei. A medida provisória revogatória, enquanto pendente de apreciação pelo Poder Legislativo, suspenderá a vigência e a eficácia da medida provisória anterior. E, uma vez convertida em lei, não se confirmará a revogação, já que esta tem efeito ex nunc. Na verdade, a conversão em lei da medida provisória revogatória importará na rejeição da medida provisória revogada, que, em consequência, perderá sua eficácia desde o início. 

Essa compreensão tem o mérito de esclarecer que, por meio da aprovação de uma MP revogadora de outra norma de igual natureza, o Congresso pratica ato de feição dúplice. Haverá, no caso, uma implícita desaprovação da MP revogada (que, assim, aliás não terá sido propriamente subtraída do crivo do Legislativo). Isso [RR1] explica também a razão pela qual, em tal caso, não mais se submeterá a votação a MP revogada.

Caberá ao Congresso, no caso de conversão em lei da MP 955/2020, fixar, por decreto legislativo, os efeitos jurídicos que serão atribuídos à MP 905/19, para o que contará com o prazo de 60 dias. Caso se omita, as relações jurídicas havidas sob o pálio da MP revogada conservar-se-ão regidas por ela.

Em tal hipótese, muitas questões relevantes terão sido regulados pela norma de natureza contingente referida, tais como trabalho aos domingos e feriados, horário de bancários, gorjetas, prêmios, forma de cálculo de débitos judiciais, participação nos lucros, procedimentos de fiscalização trabalhista, entre outras.

Como observado pelo Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento da ADI 221, as medidas provisórias "são peças delicadíssimas, talvez as mais delicadas de todo o mecanismo de interdependência e harmonização dos Poderes da Constituição Federal de 1988". Toda interpretação das regras afetas às medidas provisórias e ao seu processamento deve ter em conta sua excepcionalidade e a necessidade de serem preservados, entre outros, valores de relevância, como a separação de poderes, a segurança jurídica e a deliberação democrática.

Não é nada recomendável que sejam feitas improvisações ou testes por meio de medidas provisórias, muito menos que se utilize delas como um sucedâneo mais expedito do processo legislativo comum.

Sua feição de excepcionalidade e ainda a consideração de que a eficácia temporária de uma medida provisória não convertida em lei tem implicações graves, acrescendo insegurança, instabilidade e zonas de incerteza a um sistema jurídico já enfermado pela complexidade excessiva, impõem que o Governo Federal adote postura cautelosa no manejo do instrumento.

__________

1 Governo revoga MP do Contrato Verde e Amarelo e vai editar novo texto.  Acesso em 28 de abril de 2020, às 21h31.

2 A sessão legislativa transcorre de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro (CF, art. 57).

3 Refiram-se, entre outras, às decisões proferidas nas ADIs 293, 1204, 1370, 1636, 1656, 1659, 1665, 1666, 2984, 3964 e 5709.

4 Oportuno mencionar que a decisão proferida na ADI 2.984 foi expressamente referida na EMI nº 00008/2020 SEGOV/SG-PR, pela qual se sugeriu a revogação da MP 905/2019: "Destacamos que a possibilidade de revogação de medida provisória é questão pacificada no Supremo Tribunal Federal, conforme se extrai de voto proferido pelo eminente Ministro Sepúlveda Pertence(ADI 2984/DF MC, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/2003, DJ 14-05-2004 PP00032 EMENT VOL-02151-01 PP-00070 RTJ VOL-00191-02 PP-00488)".

5 Ressalva-se que a questão poderá voltar a ser tratada por MP, desde que isso ocorra em outra sessão legislativa.

6 Quando se afirma que o STF "ez questão' de tratar do assunto é porque foi especificamente isso o que ocorreu. A discussão subjacente à ADI 5709 poderia ser tida como prejudicada na hipótese de vir a ser convertida em lei a MP que revogara a norma objeto da discussão de constitucionalidade. Considerando, porém, a oportunidade derivada do fato de que a revogação apenas se operaria com a efetiva conversão em lei, até então não ocorrida, a Corte deliberou seguir no julgamento da causa, com o manifesto intuito de estabelecer tese jurídica a ser observada em situações futuras. Na expressão do Ministro Dias Toffoli, seria necessário ultrapassar, nos casos trazidos a julgamento, alguns eventuais aspectos particulares para causa para se objetivar a prestação da jurisdição constitucional: "se nós não objetivarmos as questões, do ponto de vista de Corte Constitucional, se ficarmos nas formalidades processuais, algumas dessas questões jamais serão enfrentadas, por conta do decorrer do tempo".

7 "A revogação e a reedição da MP 905: oportunismo e fraude à Constituição". Revista Consultor Jurídico, 22 de abril de 2020, 12h50. Disponível aqui, conforme acesso em 28 de abril de 2020, às 11h57.

8 CF, art. 62, § 3º.

9 A propósito disse, extrai-se, do texto da proposta de revogação da MP 905/2019, excerto relevante: "Todavia, em face da exiguidade do prazo para o Senado Federal apreciá-la antes da sua respectiva perda de vigência, propõe-se a sua revogação. (...) 3. Portanto, considerada a inexistência de óbice jurídico à proposta e sendo necessário prazo mais adequado para a apreciação do Senado Federal e face à exiguidade, impõe-se, imperiosa e urgentemente, a adoção da proposta de Medida Provisória em anexo".

__________

*César Caúla é sócio do escritório Mello Pimentel Advocacia e procurador do Estado em Pernambuco.

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