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Esclarecimento público: O mercado segurador e a pandemia covid-19

“Se me fosse possível, escreveria a palavra seguro no umbral de cada porta, na fronte de cada homem, tão convencido que estou de que o seguro pode, mediante um desembolso módico, livrar as famílias de catástrofes irreparáveis” Winston Churchill

7/5/2020

Antes de tudo, esclareço que este não é um artigo jurídico, embora contenha alguns elementos de Direito do Seguro e Direito Contratual. Também não é um escrito técnico sobre o negócio de seguro. Trata-se apenas de um comentário em tom de desabafo, um despretensioso ensaio cujo objetivo é tão apenas expor uma situação importante e a respeito dela sugerir uma reflexão.

Soube que corre na imprensa a notícia de muita gente pedindo a que não se declare seu familiar como morto por covid-19. Motivo: receber indenizações de seguro de vida. Segundo se comenta, as seguradoras estariam se recusando a indenizar mortes causadas por coronavírus.

Mais uma vez o negócio de seguro é vítima do estereótipo. Não é que as seguradoras não querem pagar: elas simplesmente não podem.

Morte por pandemia ou não é risco efetivamente coberto ou é risco expressamente excluído. Não se trata de má-fé, muito menos de insensibilidade.

Seguradoras não podem pagar indenizações em razão de atos ou fatos não previstos na apólice. O pagamento indevido prejudica interesses de todo o colégio de segurados (vocês e eu) e, indiretamente, os da sociedade em geral, tendo em vista a função social de que se reveste o seguro.

No que for possível, o mercado segurador não deixa de cumprir seus deveres legais e morais também nesta crise pandêmica, como sempre os cumpriu, presente e atuante nas grandes catástrofes. Apenas não lhe é dado pagar o que não deve ou o que não pode.

Feito este esclarecimento sobre a dinâmica do negócio de seguro, contudo, como me disse Sérgio Luiz Hoeflich, meu padrinho na Academia Nacional de Seguros e Previdência, a maior parte do mercado pagará indenizações de seguros de vida, buscando ajustar os clausulados das apólices ao momento. É o mercado de seguros atuando pelo bem comum.

Com certeza não se tratará de pagamento indevido, ex gratia, mas de um ajuste à vista da necessidade extraordinária a envolver a situação.

O mercado segurador sensibiliza-se com os desafios e problemas do momento. Mostra-se solidário e compreensivo; e vai além dos princípios normais de boa-fé objetiva e da função social das obrigações. Em meio à desordem do mundo, marcado pelo erro e pelo relativismo moral, é realmente gratificante ver que instituições tradicionais, como as seguradoras, têm se mantido firmes, atenciosas, solidárias, presentes na vida das pessoas e ajudando a manter a paz e a ordem social.

Sem as seguradoras Londres e Chicago, por exemplo, não teriam se reerguido dos incêndios que as devastaram; Lisboa não teria se recuperado do terremoto que séculos atrás a engoliu; o Japão não se teria levantado das últimas catástrofes que o atingiram.

As seguradoras não são imunes ao erro. Nem são instituições de caridade. Estão porém sempre presentes na vida das pessoas, mantendo o vigor intacto a despeito da ruína. É um segmento da economia incompreendido e injustiçado.

Nenhum oferece tanto retorno ao seio social e, mesmo assim, se vê tão cercado pela surdez dos lugares-comuns, pela cegueira do estereótipo que se arraigou na imaginação coletiva.

Pois bem, desfeita a injustiça propagada pelo noticiário, é certo que, se a apólice de algum seguro contiver previsão para pandemia, o benefício será pago efetivamente. Isso não se põe em dúvida.

A exemplo invoco a organização do mais famoso torneio de Tênis do mundo, Wimbledon. A organização por anos a fio pagou o prêmio adicional por pandemias. Gastou quase três milhões de libras por essa cobertura, nunca antes usada. Até que chegou o dia; e por uma quantia relativamente módica, decantada em anos, receberá quase 130 milhões de libras hoje. A previdência socorreu Wimbledon. Escancarou ao mundo a importância de não poupar recursos ao lidar com a segurança. É a cultura do seguro por excelência.

Em muitos outros casos, sem deformar a essência do seguro, as seguradoras agirão, como têm agido, com dignidade e respeito aos interesses de segurados e/ou beneficiários. No Brasil, optaram por algo não ortodoxo. Mas nem um pouco errado.

Segundo me disseram profissionais do setor, a maioria das seguradoras, por liberalidade e solidariedade, acabou indenizando beneficiários de seguros de vida, mesmo diante de risco explicitamente excluído da maior parte das apólices [morte por pandemia].

Diante da questão extraordinária, o mercado ofereceu resposta também extraordinária, demasiado humana, ligada a princípios, antes de se deixar guiar pelo que seria jurídica e economicamente possível e viável. Uma decisão não ortodoxa. Mas não errada.

Mesmo assim, muita gente anda a espalhar constatações desacertadas sobre seguradoras e contratos de seguro. Para meu desgosto, ao conversar com dois dos principais profissionais do segmento, soube então que tem muita gente (pessoas naturais e jurídicas) abusando dessa boa-fé, invocando coberturas contratuais onde elas simplesmente não existem.

E isso só no Brasil. Em outros mercados, mais sólidos, a exclusão do risco pandemia do clausulado das apólices sequer é posta em discussão. Nenhum pagamento se faz por isso.

No Brasil, o segurador opta por abrir o coração aos segurados, indo além dos deveres, e, em vez de reconhecimento e prestígio, padece em meio a pleitos aventureiros, imorais, sem cabimento. Eis um exemplo do brasileiro a querer levar vantagem em tudo.

Também é  importante fazer  algumas observações  sobre a teoria da imprevisão.

Falemos então sobre ela.

Em primeiro lugar, a teoria não é um balaio de gatos em que se aceita tudo. É importantíssima, positivada em muitos ordenamentos jurídicos pelo mundo, presente especialmente nos sistema de Civil Law, a servir ao Direito das Obrigações de mecanismo de calibragem.

Exatamente pela importância que a envolve e pela filosofia do Justo que a embasa, não pode ser invocada para favorecer o torto, em ofensa frontal ao Direito, sem a atenção dos mais importantes princípios: proporcionalidade, razoabilidade, dignidade, boa-fé, isonomia, equidade, não surpresa, entre outros.

Gosto, sempre que possível, lembrar das palavras do grande professor espanhol Eugenio Llamas Pombo, catedrático de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca, ditas em aulas da pós-graduação em Derecho del Seguro e de Contratos y Daños: “Contrariamente a la creencia popular, las aseguradoras no reclaman pagar indemnizaciones. No se niegan a pagar. Solo quieren saber qué y cuánto pagarán. Solo quieren conocer sus riesgos y la seguridad de pagar lo que es justo.”

De fato as seguradoras não se negam a pagar quando devem. Apenas têm de saber o que vão pagar, a quem vão pagar e o valor em que devem fazê-lo.

Quando abrem exceção, pela extraordinariedade das circunstâncias, fazem-no ancoradas em práticas salutares de mercado, na fidelidade jurídica, ainda que principiológica, na boa ordem moral e segundo o senso de beneficiar o colégio de segurados.

Já que mencionei um jurisconsulto espanhol, invoco as ideia de José Ortega y Gasset, um dos grandes filósofos que aquele belo país deu ao mundo: o poder das circunstâncias.

Há sempre uma importância formidável em levar em conta as circunstâncias e as perspectivas que abrem a cada frêmito de vida. Cada circunstância obedece a uma formatação irrepetível, que se abre ao agente que a deve reabsorver ou ser por ela vencido. As diferentes circunstâncias, as mais anômalas, demandam esse olhar renovado, essa abertura às novidades boas ruins e, em função delas, às ações compatíveis com o que o presente exige.

Dói ver esse brasileiro tapa na mão que o mercado segurador estendeu ao bem comum.

Quem busca vantagem indevida neste momento tão doloroso, abusando da boa-fé das seguradoras e enxergando na solidariedade um precedente para o abuso, terá em algum momento de ocupar-se dos portões de fogo em que Dante Alighieri viu a arder a mais desoladora inscrição: “O tu che entri, abbandona ogni speranza”[Ó, vós que entrais, abandonai toda esperança].

Essa frase deveria nos deveria acompanhar como homenagem perpétua ao dever de retidão.

Aliás, dizia ainda com muita razão o pai da língua italiana: “Com aquela medida que o homem usa para medir a si mesmo, mede as suas coisas”. Pois o incapaz de enxergar a nobreza solidária do próximo é um verdadeiro cego moral; impossibilitado de ver o mundo com as lentes da verdade e da dignidade, tudo medirá conforme o palco sombrio do próprio coração.

O mundo dos negócios não é medido pela frieza que dele se costuma imaginar. Participam do cada ação também valores, princípios, sentimentos. Afinal, são pessoas ali trabalhando. Infelizmente, há quem procure tirar vantagem, forçando paridades estranhas e imprevisões teóricas.

Desde o início da crise tenho dito: não faltará quem gente atirando na conta da covid-19 a própria ineficiência os problemas anteriores.

Sobre isso escrevi e publiquei:

Uma constatação!

Aconteceu no Plano Collor. Acontece agora.

Muita gente coloca no distanciamento social da pandemia COVID-19 a culpa pelo insucesso do seu negócio.

Sim, eu sei que existem empreendedores que de fato sangram por causa do distanciamento social. E sei que muitos trabalhadores perderam empregos. Não sou insensível, muito menos idiota. Só posso lhes hipotecar solidariedade e endereçar orações.

Não é desse grupo que falo. Aos que verdadeiramente sofreram e sofrem efeitos, espero que credores sejam compreensíveis e que o Direito se lhes seja de algum modo favorável, bom remédio, ainda que paliativo.

Falo de outro grupo, talvez não bem intencionado, que culpará a presente crise, extraordinária, para não cumprir obrigações ou não assumir problemas de gestão ruim preexistentes.

Dou um exemplo, até fora do circuito "business": conheço gente de classe média alta, que não passa por problemas financeiros, que demitiu alguns empregados somente para não lhes pagar salários sem as contraprestações funcionais.

Isso, penso, não é bacana e demonstra até falta de grandeza.

Termino enfatizando que não é um comentário político, nem ideológico, mas puramente social, talvez moral.

Não estou a discutir o distanciamento social, seus aspectos positivos e negativos, mas apenas a tratar de um sub-aspecto dentro de todo o contexto.

Particularmente, cinismo e oportunismo vulgar irritam e muito!

De fato, vejo quem não está sofrendo, ou está sofrendo muito pouco os efeitos materiais do distanciamento social, buscar toda sorte de vantagens indevidas ou, pior, a fuga cínica dos deveres e obrigações. A pandemia pode se tornar o pandemônio tão apenas pelas torções que se farão à lei e pelas tentativas de enriquecer à custa da boa-fé do outro. No Brasil, ser generoso é uma dificuldade, a grandeza às vezes parece demérito.

Nunca é demais lembrar que sempre que uma seguradora é obrigada a pagar indenização indevida não é só ela quem perde, mas todos os segurados. E, indiretamente, a sociedade.

Por isso, espero que a situação não escape ao Poder Judiciário no que em breve lhe couber decidir. É preciso separar o joio do trigo. É preciso saber quais casos podem submeter-se à teoria da imprevisão ou a uma forma diferenciada de enxergar direitos e obrigações. Repito então o que escrevi em outro texto:

O Brasil, infelizmente, se notabiliza pela quantidade assustadora de gente que deve e que, se lhe fosse dada a chance, seria capaz entortar a ordem jurídica inteira apenas para continuar devendo. Não é preciso nem perder tempo argumentando sobre a má-fé que por vezes erige monumentos argumentativos enormes para justificar-se. Isto se vê também no negócio de seguro. Segurados que não querem pagar prêmios ou cumprir deveres contratuais supostamente porque prejudicados pelos efeitos materiais da pandemia. É certo: não poucos buscarão na teoria da imprevisão a sua solução de vida. Por isso a necessidade de parcimônia no momento de aplicá-la. Sensibilidade não é escusa para pisotear a visão econômica do Direito ou para abusar da real visão humanística que pode haver nele. Disse isso antes, digo novamente, agora. Direi sempre, aliás.

Exemplo de uma aplicação repleta de excelência humana é a que levou ao ministro do Superior Tribunal de Justiça Paulo Dias Moura Ribeiro a indicação recente para o Prêmio Nobel da Paz (capitalismo humanista). O que as seguradoras fizeram, aqui no Brasil, ao ampliar a cobertura dos seguros de vida e abraçar um risco expressamente excluído, como o de pandemias, nada mais foi do que a aplicação do chamado capitalismo humanista ou, ainda, do que a Igreja fez e faz constar da sua Doutrina Social. Aliás, desde a Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, tem-se a ideia de que é possível o exercício da economia de mercado de forma livre, sem grilhões ideológicos, porém alimentada moralmente pela presença dos valores fundamentais em todos os planos do seu exercício.

Uma má aplicação de tais preceitos, entretanto, afetará a reputação geral das teorias familiares a esta, e aqueles que realmente dela necessitarem podem se deparar com ouvidos já cansados de ouvir aquela mesma história, e que, por essa razão, podem acabar proferindo injustiças. Os desafios dos protagonistas da economia, de empreendedoras e pessoas em geral, naturais ou jurídica, postos sob a assistência dos profissionais de Direito, serão enormes. Extraio esse cuidado da minha especialidade: o Direito do Seguro.

Nenhum negócio jurídico-econômico se reveste mais de função social do que o de seguro. O contrato de seguro encontra-se umbilicalmente ligado ao interesse público. Aliás é aquele que na esfera privada mais se submete ao controle estatal. A saúde econômico-financeira de uma sociedade passa antes pela saúde do seu sistema securitário. Quando litiga em Juízo, uma seguradora não defende apenas os seus direitos e interesses. Por força da mutualidade, do corpo imenso que ela representa, o faz também em defesa dos segurados e da sociedade em geral.

Quando se condena a Seguradora a pagar o que não devia, ou por algum equívoco se lhe nega o ressarcimento em regresso, sofre não apenas ela, mas todo o enorme colégio de segurados. Quando devedores inadimplentes, por vezes eivados de má-fé, são contemplados indevidamente, por força das circunstâncias, com um benefício tão poderoso e necessário como o da teoria da imprevisão, sofre não apenas seus credores, mas toda a sociedade, ainda que não consiga dar conta disso imediatamente.

Da explicação do negócio de seguro sinto-me autorizado a afirmar que a aplicação criteriosa da teoria da imprevisão é questão de ordem pública e de interesse social. Não pende para o campo duvidoso das ideologias, mas segue o caminho da ratio bem definida do Direito. Mais ainda, lembrando do eterno Código de Justiniano, deve-se ter aplicação criteriosa, adequada, da qual dependerá a concretização da “a eterna e constante vontade de dar a cada um o que é seu”.

Economia e Direito são faces duas faces da mesma moeda; e, mais do que nunca, terão de caminhar juntos, entre afagos e choques, sobre as pedras dessa via acidentada, sobre as ruínas do presente.”

Estamos em um momento difícil, desafiador. Exige de nós resiliência, cuidado e boa-fé. Adotei uma frase ao modo de uma jaculatória: se todo mundo perder seu pouco, talvez poucos perderão seu muito. Este é o espírito que deve nos animar durante a crise. Perder o menos possível significa olhar para os outros com zelosa atenção, cumplicidade. No mundo dos negócios, no universo corporativo, o mercado segurador deu bom exemplo e sinalizou caminho. Que ele seja reconhecido, não vilipendiado.

Estamos em um tempo de novas mentalidades, práticas e posturas. Não podemos mais admitir o uso inadequado e abusivo das relações negociais e do Direito. Um tempo propício para transformação, para renovação e, paradoxalmente, para respeitar tradições, como as que fomentam valores. Porque é por meio delas que sabemos quem somos e o que devemos fazer.

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*Paulo Henrique Cremoneze é advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados.

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