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Caviar, rapadura, jabuticabas, precatórios em tempos do covid-19 - Pagar, parcelar ou empurrar mais ainda?

Você sabe a semelhança entre a jabuticaba e o precatório?

7/5/2020

Música do sambista Zeca Pagodinho pergunta “Você sabe o que é caviar? Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar”. Poucos já comeram caviar, porque é comida de rico. Esta iguaria de luxo são ovas do peixe chamado esturjão, que vive no Mar Cáspio, nas proximidades da Rússia, e custa entre 6 e 12 mil euros o quilo. Mas muitos já comeram rapadura, que é um derivado da cana de açúcar, acessível a todos os pobres. Por isso, se eu perguntar se você já comeu caviar, poucos irão responder, mas quero intrigar a todos com outra pergunta: você sabe a semelhança entre a jabuticaba e o precatório?

Vou lhes mostrar: precatório é uma invenção tupiniquim. Precatório deriva do latim que significa “deprecare” ou requisitar algo, pedir, implorar, suplicar. Isso mesmo, suplicar. Esse calote hoje existente é coisa antiga.

A semelhança então é que jabuticabas e precatórios só existem no Brasil. Ele surgiu no tempo do Brasil colônia, quando nossa legislação se baseava nas Ordenações. Normas legais editadas pelos reis da época, ou seja, ordenações, ordens.

Em 1582, o rei de Portugal era D. Felipe e uma de suas Ordenações, editadas em julho daquele ano, incluiu o seguinte texto ao Livro II, Título LXXXVI, § 23 das Ordenações Filipinas: (...) os Fidalgos, os Cavalheiros e os desembargadores nos cavalos, armas, livros, vestidos de seus corpos, nem as mulheres dos sobreditos, nem as mulheres fidalgas nos vestidos de seus corpos e camas de suas pessoas, postos que outros bens não forem necessários, se fará a execução, quando não tiverem outros bens móveis, ou de raiz. E isto se não entenda nos roubos e malfeitores, porque portais casos serão penhorados e constrangidos, até que paguem, assim por seus bens, postos que sejam sobreditos, como por prisão de suas pessoas”.

Ou seja, contra os poderosos da época, nada podia ser feito. Eram intocáveis. Vem daí, então, a herança jurídica existente até hoje de que os bens dos órgãos públicos não podem ser penhorados para pagar dívidas. Precisam ser cobrados na forma de precatórios, pedidos, súplicas.

Por isso quando um processo judicial contra um órgão pública termina, o juiz “depreca”, súplica ao devedor, o órgão fazendário, para que inclua aquele valor na lista de pagamentos.

Então foi das Ordenações Filipinas, escritas pelo Rei Felipe, de Portugal, que herdamos esta maldita herança jurídica.

Isso só mudou um pouquinho em 1934, quando a nova Constituição Federal entrou em vigor, trazendo, assim, uma tímida mudança ao determinar em um dos seus artigos que os precatórios deveriam ser pagos na ordem cronológica de sua apresentação pelos tribunais, mediante ofício requisitório na Secretaria da Fazenda. Mas não foi estabelecida nenhuma punição em casa de não pagamento, de modo que, até hoje, vivemos um círculo vicioso onde cada governante que entra joga a culpa em seu antecessor e pendura a dívida.

Dividiram os precatórios em dois tipos: os alimentares, que são aqueles que tem origem na relação trabalhista dos servidores públicos com os entes empregadores, e os não alimentares, aqueles decorrentes de dívidas dos governos com empresas e particulares, tais como asfaltamento de ruas, compras, viagens, combustíveis, desapropriações etc.

Os não alimentares devem ser pagos em 10 parcelas mensais no ano civil seguinte ao da sua inscrição e então, caso o órgão devedor não saldar tais parcelas, o juiz poderá mandar penhorar o valor da dívida nos caixas do órgão devedor, criando-se, assim, uma inversão de valores. Os governantes de plantão pagam as dívidas não alimentares em dia, porque ela tem uma regra punitiva (sequestro) e protelam os alimentares, já que não há punição.

Uma ação judicial contra qualquer órgão pública demora, em média, de 8 a 12 anos. Depois que termina, vai para a fila dos precatórios. No caso do Estado de São Paulo, a fila dos precatórios caminha a passos lentos lá no ano de 2002. Isso mesmo, o Estado mais rico do Brasil pagou o último precatório regular do ano de 2002, 18 anos atrás.

Os idosos e doentes gozam de prioridade nessa fila, mas não recebem o valor integral. O governo paga uma pequena parte e pendura o restante a perder de vista.

Some-se a isso que, em 2019, os deputados estaduais aprovaram um projeto do governador João Dória reduzindo o valor da RPV (Requisição de Pequeno Valor – que não entra na fila dos precatórios), que era de R$ 31, para R$ 11 mil reais, o mesmo valor que é pago judicialmente pela Prefeitura de Ariranha quando ela perde uma ação judicial.

O Estado e a Prefeitura de São Paulo são os campeões das dívidas de precatórios, os quais juntos devem quase 50% dos Precatórios do País, seguidos do Paraná: quase 13 bi; RS 7 bi, Minas Gerais e Distrito Federal.

Em 2019, Dória pagou apenas R$ 2,3 bilhões da dívida de precatórios alimentares, beneficiando apenas 8% dos credores. Segundo dados do TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo), 500 mil servidores esperam na fila dos alimentares, apenas em SP, sendo de 150 já morreram. Uma maioria tem mais de 60 anos e uma grande parte tem 80 anos ou mais.

Estados e municípios brasileiros devem 141 bilhões de precatórios, mas os governos vivem reclamando disso, porém, que culpa o servidor público tem? E por que não pagam? Simples: porque não existe penalidade. Entra governador e sai governador, entra prefeito e sai prefeito, e cada um empurra a dívida com a barriga, porque não são punidos.

Duas emendas constitucionais, a 94 e a 99, mudaram a regra fixando prazo para pagamento final dos atrasados até 2024. Para que isso ocorra, autorizou a utilização dos depósitos judiciais, acordos com descontos e compensações financeiras.

E mesmo assim, os governantes não pagam as dívidas e agora querem suspender o pagamento e prorrogar este prazo. Neste momento de pandemia do covid-19 isso será um passo a maios no caos social, porque, como visto acima, são exatamente os servidores idosos e doentes os mais necessitados.

Os precatórios fazem rodar a economia. Quando uma pessoa recebe o valor, ela compra comida, paga suas dívidas, ajuda um membro da família endividado, constrói um puxadinho, ajuda um filho ou filha a se casar, enfim, este dinheiro não será usado para comprar caviar. Talvez se sobrar, uma rapadura.

Isso é uma grande incoerência que irá penalizar os servidores idosos e doentes neste momento que a solidariedade humana emerge para combater a pandemia do coronavírus.

A saída é que já foi dada: utilização dos depósitos judiciais para amortização da dívida e, segundo dados da Comissão de Precatórios da OABSP, “há R$ 9 bilhões em depósitos judiciais disponíveis para serem exclusivamente utilizados no pagamento das dívidas com os servidores públicos. Se utilizados estes recursos, um terço da dívida total do Estado com precatórios, que hoje é de R$ 27 bilhões, seria liquidada”.

Então, se o TJSP usar estes 9 bilhões, que estão parados no Banco do Brasil rendendo juros, será possível quitar a dívida com milhares de credores de precatórios e, assim, o governo do estado não vai precisar parcelar os precatórios.

Entendeu por que caviar é diferente de rapadura? “Por isso, se alguém vier me perguntar. O que é caviar, só conheço de nome. Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar”.

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*Aparecido Inácio Ferrari de Medeiros é advogado em São Paulo; Conselheiro da AATSP. Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo. Sócio titular de Aparecido Inácio e Pereira Advogados Associados. Membro do SINSA-CESA e do MADECA.

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