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Teoria da imprevisão e a MP 948: Um viés consumerista

É fato objetivo que o equilíbrio econômico-financeiro, que uma vez justificou o concerto das obrigações, pode deixar de persistir e justificar a revisão contratual.

4/5/2020

É sabido que os contratos são regidos pelo princípio da obrigatoriedade de cumprimento de suas prestações – correspondente ao brocardo latino pacta sunt servanda –, que busca conferir segurança ao exercício da liberdade de pactuar. A experiência brasileira, inclusive, dirige para a excepcionalidade da revisão contratual, em que pese a opção legislativa de proteção da liberdade econômica, em especial após o advento da Lei de Liberdade Econômica (lei 13.874/19), no acréscimo do parágrafo único do artigo 421, ipsis litteris:

Art. 421. (omissis)

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

Não obstante, é fato objetivo que o equilíbrio econômico-financeiro, que uma vez justificou o concerto das obrigações, pode deixar de persistir e justificar a revisão contratual. A esse respeito, o Código Civil dispõe pela resolução do contrato ou pela possibilidade de sua revisão, na sequência dos artigos 478 e 479, in verbis:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.

Trata-se da aplicação da Teoria da Imprevisão, a cláusula rebus sic standibus, que impõe a revisão contratual em face de acontecimentos ulteriores, estranhos ao contrato, que desequilibrem sobremaneira a relação jurídica obrigacional. O instituto, contudo, deve ser analisado com cautela, e em virtude de acontecimentos absolutamente imprevisíveis e dotados de mínima generalidade, sob pena de deturpar a função social do contrato.

Se é verdade que não é toda imprevisão que justifica a revisão contratual, fato é que grande parte das relações jurídicas obrigacionais sofreram alterações em razão da pandemia do novo coronavírus (covid-19). É o caso do setor de aviação, especialmente o turístico, com impactos a serem suportados até 2023, como indica o estudo realizado pela consultoria Bain & Company, veiculado pelo jornal Estado de São Paulo.

À luz dessa realidade, o governo federal editou a medida provisória 948, que dispõe sobre o cancelamento de serviços dos setores de turismo, em razão da calamidade pública reconhecida pelo decreto legislativo 6. Em seu artigo 2º, a MP desobriga o reembolso dos valores pagos, desde que o prestador do serviço assegure as hipóteses discriminadas em seu inciso. Veja-se, a esse propósito:

Art. 2 º (omissis)

I - A remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados;

II - A disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou

III - Outro acordo a ser formalizado com o consumidor.

Essa disposição não pode significar a alteração do contrato de prestação de serviços de passagens áereas, a ser exercida unilateralmente pelas companhias, em uma espécie de novação contratual a ser aderida pelo consumidor, em virtude da natureza da relação contratual que se acerta.

Em que pesem os esforços da medida provisória 948 para mitigar os efeitos ocasionados pela pandemia do covid-19, a determinação não foi sensível em promover a mesma proteção aos consumidores. De forma específica, buscou-se com a medida resguardar as empresas de prejuízos econômicos, sem, contudo, propor ações que tutelem o direito dos consumidores.

Afirma-se isso por duas razões específicas. Em primeiro lugar, como previamente antecipado, a medida permite que haja uma novação unilateral do contrato de compra e venda por parte das empresas que, em muitas vezes, acabará sendo prejudicial ao consumidor.

Convém, de plano, para melhor entendimento sobre o tema, ilustrar a hipótese prevista no art 2º, III, da medida provisória 948. O referido dispositivo, trata da possibilidade de firmar outro acordo com o consumidor para que a empresa seja desobrigada de ressarcir os valores pagos.

A hipótese em análise é, via de regra, sensível e prejudicial ao consumidor. Isso se dá porque não há entre o contratante e contratado condições equânimes para negociação do novo contrato. É certo, à luz da análise econômica do direito, a necessidade de condições minimamente equivalentes para haja um ponto ideal na barganha.

Os requisitos, portanto, para que isso ocorra são: (I) uma alocação inicial de renda e riqueza, (II) uma alocação definida dos direitos de propriedade, (III) custos de transação nulos, (IV) as informações disponíveis sejam completas. É, precisamente, no último ponto que se encontra a possibilidade de prejuízo ao consumidor. De forma objetiva, o descompasso informacional entre as empresas e consumidores induz a essa prejudicialidade.

Em segundo lugar, a medida provisória não trouxe qualquer previsão de ressarcimento dos valores pagos, em razão de grave prejuízo econômico ao contratante. Ao oposto, sob o pretexto de resguardar esses mercados de uma perda ainda maior, desobrigou o ressarcimento dos valores aos consumidores, encurralando-os a adimplir a uma das hipóteses enumeradas nos incisos susolançados.

É sabido, no entanto, que a pandemia da covid-19 não trará efeitos lesivos restritos às grandes empresas áreas, mas, também a diversas outras e aos empregados de maneira geral. É justamente, nesse ponto, que reside a controvérsia em exame, pois, as únicas previsões de aplicação da medida provisória são devidas a impossibilidade de cumprimento da obrigação pela empresa e não pelo consumidor.

Ao lado da crise sanitária convive a crise econômica, com impactos severos nos índices de desemprego estrutural em massa, como demonstra a experiência norte-americana1. Nesse sentido, cabe destacar que os danos serão suportados tanto pelo consumidor, quanto pelo fornecedor, em uma alteração global das relações obrigacionais concertadas

Com efeito, diante da indissociabilidade entre a crise econômica e a crise sanitária proporcionada pelo novo coronavírus, casos como esse devem ser analisados à luz das hipótese de caso fortuito ou força maior, e a teoria da imprevisão, sob risco de desvirtuar a aplicação da cláusula rebus sic standibus. Deve-se, assim, procurar estabelecer soluções capazes de resguardar também os consumidores.

A questão é que se há uma flexibilização das normas de proteção ao consumidor para salvar o mercado aéreo brasileiro, a MP deveria prever, ao menos de forma subsidiária, possibilidades de ressarcimento dos valores em função dos prejuízos à situação econômica do contratante, que procede não reguardado por qualquer diploma legal emergencial.

Por fim, é imprescindível admitir que muito dificilmente surgirão soluções perfeitas e eficientes, dado o cenário caótico proporcionado pela pandemia. Contudo, sob qualquer prisma de análise da medida provisória 948, constata-se uma clara opção política de proteção das grandes empresas do mercado de turismo, em detrimento do elo mais fraco da relação obrigacional – o consumidor.

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*Tiago Barbosa Reis é estagiário no Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados, fundador do CONEDIR e bacharelando direito na Universidade de Brasília.

*Guilherme Mazarello N. de Santana é estagiário no Amaury Nunes Advogados e Associados e bacharelando direito na Universidade de Brasília.

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