Reflexões sobre os rumos da política antitruste no Brasil em tempos de pandemia
Segundo Homero, “leve é a tarefa em que muitos compartilham o trabalho”. Apesar de não se poder verificar a autoria da frase atribuída ao poeta grego, cuja própria existência é contestável, a citação mencionada serve ao seu propósito: tempos difíceis implicam, na maioria das vezes, esforços simultâneos e atuação conjunta para superação do obstáculo que se assoma.
Dentre as condutas empresariais que poderão ser praticadas durante este período, com o propósito de encontrar soluções para o combate do vírus ou para a redução das drásticas consequências no campo econômico, está a troca de informações sensíveis entre concorrentes.
Acontece que, nas vezes em que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - Cade teve a oportunidade de analisar tal conduta, esta prática foi rechaçada e punida porque, naquelas ocasiões, constituiu infração à ordem econômica.
Segundo o entendimento do Cade, seguindo o posicionamento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, a troca de informações concorrencialmente sensíveis envolve o compartilhamento de informações ligadas às atividades-fim dos agentes econômicos e não implica, necessariamente, em prejuízos ao mercado, podendo produzir efeitos positivos ou negativos1.
Nos casos em que os efeitos líquidos são pró-competitivos, tende a ocorrer a diminuição da assimetria informacional, o aumento de eficiência e, consequentemente, de competição. Por outro lado, os possíveis efeitos anticompetitivos residem no fato de que este câmbio de informações levaria à colusão tácita ou estimularia o abuso de posição dominante, na medida em que implicaria em práticas exclusionárias.
Em um julgamento específico, por exemplo, o Conselheiro Relator João Paulo Resende entendeu que ainda que a troca de informações sensíveis não se confunda com o cartel, algumas trocas têm o mesmo efeito prático, visto que almejam manipular o mercado2.
A grande questão é que “informações concorrencialmente sensíveis” é um conceito jurídico indeterminado e que pode ensejar a aplicação de sanções pelo Cade. Desta forma, há uma vagueza ontológica ao tipo, o que implica em um estado permanente de incerteza acerca de quais trocas são lícitas e quais não.
Apenas a título de exemplo, o Cade entende que são informações concorrencialmente sensíveis dados que, em suma, não estejam disponíveis ao público, tais como, mas não só, aqueles relacionados a estratégias competitivas, a estratégias de marketing, a questões operacionais e a informações sobre P&D3.
Ocorre que situações extraordinárias demandam respostas adequadas e proporcionais à situação atípica. Para além dos “olhos que condenam”, não é desarrazoado concluir que o CADE deve ter um olhar mais sensível em relação aos casos desta natureza que estiverem sob seu escrutínio e que decorram de condutas praticadas no lapso temporal em que perdurem os efeitos da pandemia.
Em primeiro lugar, a própria inexatidão no que diz respeito aos limites da licitude da troca de informações, o que, por si só, denota o caráter retórico da escolha do ilícito já é mais do que suficiente para pressupor cautela e flexibilização quando da análise do ato. Aliás, esta é a forma como diversas agências antitruste ao redor do mundo vêm enfrentando a covid-19 na seara concorrencial.
Recentemente, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ) e o Federal Trade Commission, agência americana responsável pela aplicação da lei antitruste em solo americano, publicaram um guia conjunto estabelecendo diretrizes que deverão ser observadas por empresas para o combate à pandemia.
Dentre elas, o guia estabelece que a troca de informações sensíveis relacionadas ao know-how da companhia podem sem toleradas e, dado o contexto, são consideradas razoáveis, desde que não envolvam versem sobre preços ou custos da operação. Entendem, portanto, os órgãos governamentais estadunidenses que o câmbio de informações pode ser essencial para a alcançar benefícios competitivos em certas colaborações4.
Na mesma linha, no Reino Unido, foi anunciado o relaxamento das normas antitruste. No final de março, em caráter emergencial, entendeu-se pela alteração nas leis de concorrência, a fim de possibilitar certos acordos de compartilhamento de informações, no setor de assistência médica e alimentício, permitindo a troca de dados relacionados, por exemplo, a questões logísticas e operacionais, de modo a manter estes setores em funcionamento durante a pandemia5. Do mesmo modo que nos Estados Unidos, qualquer troca de informações sensíveis relacionada a custos ou preços está expressamente vedada.
Até o presente momento, não houve manifestação formal da autoridade antitruste brasileira sobre eventual flexibilização de regras concorrenciais. Todavia, a expectativa é que isto ocorra em breve6, acompanhando uma tendência global.
É claro que o CADE deve estar atento às subversões e oportunismos daqueles que, ao revés de atuar sinergicamente para garantir a prestação de um serviço justo e de qualidade, atendendo ao interesse coletivo, utilizam de seu poder para prejudicar concorrentes e o mercado.
Todavia, ao que me parece, no que diz respeito à troca de informações concorrencialmente sensíveis, o olhar mais cauteloso e flexível, atende a um propósito maior. Isso porque, parto do princípio de que a concorrência, que é um ramo do Direito Econômico, não serve apenas para combater os efeitos autodestrutíveis do mercado. A questão nuclear é a de que a concorrência não é um fim em si mesmo, mas um meio do qual se vale o Estado garantir a consecução de políticas públicas7.
Este é, justamente, o fundamento para a flexibilização desta conduta. Entender que o momento atual pode demandar medidas extraordinárias, atende aos objetivos fundamentais da República. Não se trata, por certo, de salvo conduto. É necessário que balizas objetivas e suficientemente claras sejam estabelecidas, tal qual o fizeram outras nações.
Neste contexto de intervenção estatal na vida social, é preciso que se entenda que as normas antitruste podem ser sacrificadas diante de objetivos específicos e imediatos.
Não é crível, portanto, no atual contexto, que informações vinculadas à pesquisa e desenvolvimento ou aos aspectos logísticos, por exemplo, visando à continuidade de um serviço ou desenvolvimento de uma vacina constituam infração à ordem econômica, ainda que se tratem de informações atuais, complexas, detalhadas, não compartilhada em outros foros e que não envolvam todos os agentes econômicos do mercado relevante.
Ao fim e ao cabo, diante da inexistência de parâmetros suficientemente claros quanto ao enquadramento da conduta como violadora da ordem econômica, somado ao contexto peculiar decorrente da pandemia, cabe ao CADE um olhar mais sensível no que tange ao compartilhamento de informações, quer para aquelas condutas já tidas pelo órgão como sensíveis – desde que, sugere-se, não envolvam custos ou preços – quer para aquelas que ainda não se afiguram no horizonte de possibilidades da agência antitruste.
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1 NOTA TÉCNICA 13/2019/CGAA7/SGA2/SG/CADE
2 PA 08012.001395/2011-00
3 Conselho Administrativo de Defesa Econômica. GUIA PARA ANÁLISE DA CONSUMAÇÃO PRÉVIA DE ATOS DE CONCENTRAÇÃO ECONÔMICA
7 A tese da “concorrência-instrumento”, isto é, o antitruste como meio para atingir determinada finalidade é exposto com precisão pela prof.ª Paula Forgioni ao pontuar que as normas regulatórias que pretendem disciplinar a atuação dos agentes no mercado constituem uma técnica, de modo que o antitruste não é visto como um valor em si, mas como meio para concretizar políticas públicas [In: FORGIONI, Paula. Os Fundamentos do Antitruste. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo. Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 87 – 92]
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