A pandemia do covid-19 trouxe graves incertezas sociais e econômicas, entre elas, o aumento substancial da volatilidade das ações das companhias listadas que, na sua maioria, assistiram a uma queda das cotações das suas ações. Mesmo companhias economicamente saudáveis e líderes em seus setores, perderam valor de mercado.
Como em toda época de crise, companhias abertas começaram a adotar medidas preventivas como preservação do caixa, corte de gastos, captação de novos recursos, postergação do pagamento de dividendos, ou até mesmo a sua não aprovação, constituindo reservas. Tais medidas visam garantir a sobrevivência operacional da empresa, mas não evitam a desvalorização do preço das suas ações na bolsa, nem mitigam os riscos que nascem com isso, ao menos não completamente.
Com a crise, algumas companhias de capital pulverizado ou de controle minoritário se tornam mais vulneráveis a uma potencial aquisição hostil do seu controle (hostile takeovers). Afinal, para toda companhia que perdeu consideravelmente seu valor de mercado, existem investidores institucionais com grande potencial de caixa, ávidos por uma boa oportunidade. Alguns preocupados com a função social e econômica da empresa e boas práticas ambientais e de governança, mas outros nem tanto.
Assim, uma alternativa que está sendo muito discutida nos EUA e que pode ser tropicalizada e adaptada para algumas companhias brasileiras é a adoção de uma cláusula de poison pill com duração limitada, que possa combater aquisições oportunistas durante a atual fase de instabilidade e falta de perspectiva trazida pelo Coronavírus.
Para isso, a administração da companhia deve propor à assembleia de acionistas a inclusão, no estatuto social, de uma cláusula de poison pill temporária, de modo a estabelecer determinados limites de aquisições de ações que disparam a necessidade do potencial acionista adquirente promover uma oferta pública de aquisição de ações (OPA) direcionada aos demais acionistas.
No Brasil, a depender da estrutura de capital da companhia, as cláusulas de poison pill adotadas geralmente estabelecem um trigger (gatilho) que gira em torno de 10% a 30% do capital social para disparar a OPA, e muitas delas estabelecem um prêmio a ser pago em relação ao preço das ações na bolsa. De qualquer modo, os termos específicos de uma cláusula de poison pill (duração, percentual para disparar a oferta pública de aquisição de ações, hipóteses de exceções, etc.) dependem das circunstâncias particulares de cada companhia e devem ser determinados caso a caso.
Ressalta-se que os proxy advisors internacionais (que também atuam nas recomendações de voto nas companhias brasileiras e que são seguidos por diversos investidores – especialmente os institucionais estrangeiros) geralmente se opõem quando uma companhia decide adotar o mecanismo de poison pill, pois esse tipo de previsão limita substancialmente as oportunidades de aquisições e prejudicam a liquidez dos acionistas. Em um cenário de normalidade econômico-financeira, a tendência é que essas instituições recomendem a rejeição de tal matéria, pois tais entidades entendem que a adoção de uma poison pill pode prejudicar a governança e pode dar uma proteção indevida à administração, que pode usar tal cláusula como uma blindagem para uma má atuação.
No entanto, é importante mencionar que as duas principais empresas que atuam como proxy advisors no mundo (ISS e Glass Lewis) já emitiram manifestação de que considerariam sugerir o voto favorável à adoção de poison pills temporárias, com prazo de duração igual ou inferior a um ano e justificadas. Além disso, essas instituições sugerem que a comunicação da companhia com o mercado deve enfatizar a sua intenção de impedir uma aquisição hostil, e não de impedir que qualquer investidor ativista acumule uma determinada participação.
Assim, em situações reais de potencial ameaça de aquisição hostil decorrente de uma desvalorização de curto prazo do preço da ação e relacionada a um fator externo à companhia, exatamente como a ocasionada pela atual pandemia do covid-19, e considerando a justificativa divulgada pela companhia para a adoção da poison pill e outros fatores relevantes (como o compromisso de colocar qualquer renovação futura da poison pill para votação em assembleia de acionistas), os proxy advisors estão abertos a recomendar a aprovação das poison pills com curto prazo de duração, avaliando a situação caso a caso.
Um precedente recente nos EUA foi da The Williams Companies, Inc., no qual a proposta da administração para a assembleia de acionistas da companhia previa a adoção de poison pill com um trigger de 5% das ações e um prazo de duração determinado de um ano, além das devidas justificativas de sua implementação que giram em torno dos impactos do covid-19 no mercado e na deterioração do valor das ações da companhia.
De um lado, a Glass Lewis recomendou a aprovação da poison pill, visto se tratar de uma exceção e considerando o seu prazo e a justificativa fornecida para sua implementação, além de ter deixado claro que monitorará essa questão. Por outro lado, a ISS recomendou a rejeição do plano, pois, apesar de estar em linha com a sua política, que determina o prazo máximo de duração de um ano, o gatilho de 5% foi considerado como um potencial dano à liquidez das ações da companhia no mercado no cenário pós crise.
De toda sorte, sem prejuízo de considerarem outras alternativas disponíveis, a poison pill pode ser eficaz para determinadas companhias brasileiras à luz das condições atuais do mercado. Com isso, é importante ter em mente que a companhia, ao adotar essa medida preventiva, deve ter uma justificativa válida (nesse caso, a contenção da crise e seus efeitos econômicos), com a administração tomando uma decisão fundada e transparente nesse sentido, e personalizar seu plano de acordo com as circunstâncias atuais e de acordo com o seu setor de atuação (pois alguns sofreram mais e demorarão mais para se reerguer do que outros).
Com efeito, listamos resumidamente abaixo os principais pontos de atenção que a companhia deverá observar em uma possível adoção da poison pill como uma medida preventiva às potenciais ameaças de aquisições hostis em um cenário econômico adverso, em linha com as recomendações de votação das proxies internacionais:
• Atender a certas condições e ter um objetivo determinado, como o gerenciamento de uma ameaça de aquisição hostil clara e presente, ocasionada por uma queda acentuada no preço das ações em bolsa devido a uma forte desaceleração do mercado (a crise econômica advinda com o covid-19 é um contexto plausível e razoável);
• Prazo de duração determinado e limitado a um ano ou menos;
• Triggers razoáveis em resposta a ameaças ativas de aquisições hostis (os gatilhos deverão ser analisados caso a caso para as companhias, de acordo com a sua estrutura societária e demais fatores determinantes);
• A administração, em conjunto com seus assessores, deve discutir adequadamente e avaliar, jurídica e economicamente, os termos da estrutura a ser proposta, com todas as suas características atinentes, à luz da potencial ameaça a ser tratada;
• A poison pill deve ser objeto de alteração estatutária (e, portanto, objeto de assembleia de acionistas), bem como suas alterações e renovações, conforme o caso; e
• Divulgação transparente e justificada aos acionistas e ao mercado da escolha feita pela administração.
Enfim, em tempos de covid-19, a poison pill pode deixar de ser o vilão da história, para ser uma medida preventiva ideal para essa época de desvalorização severa das ações de uma empresa listada, afinal, o que diferencia um remédio de um veneno muitas vezes, é justamente o uso da dose certa. Basta que a administração da empresa esteja engajada com os acionistas, tenha um plano objetivo e personalizado para as necessidades da companhia e faça uma divulgação transparente das medidas ao mercado – que são conceitos básicos existentes muito antes do coronavírus: accountability e transparência.
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*Paula Magalhães é sócia da área de companhias abertas do Lobo de Rizzo Advogados.
*Luiz Felipe Eustaquio é associado da área de companhias abertas do Lobo de Rizzo Advogados.
*Victor Porfirio é associado da área de companhias abertas do Lobo de Rizzo Advogados.