“Embora já tenhamos enfrentado desafios antes, este é diferente. Desta vez, nos unimos a todas as nações do mundo em um esforço comum, usando os grandes avanços da ciência e nossa compaixão instintiva para curar. Teremos sucesso - e esse sucesso pertencerá a todos nós” (Rainha Elizabeth – pronunciamento público de 5 de abril de 2020)
O final da Segunda Guerra Mundial e os horrores vivenciados naquela ocasião fizeram com que todos os povos se unissem em torno da ideia de estabelecer princípios, direitos e regras que pudessem ser adotados universalmente; uma plataforma comum acerca dos direitos humanos para viabilizar o diálogo entre distintas nações e culturas. É o que Norberto Bobbio chamou de “A Era dos Direitos”. Para Bobbio “a Declaração Universal representa um fato novo na história, na medida em que, pela primeira vez, um sistema de princípios fundamentais da conduta humana foi livre e expressamente aceito, através de seus respectivos governos, pela maioria dos homens que vive na Terra.” (BOBBIO, Norbert. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1992, p. 27-28).
O caminho então trilhado pelas Nações Unidas tem sido marcado pelo enfrentamento de distintos e árduos desafios, como a guerra-fria; ditaduras; a ameaça nuclear; a instabilidade no oriente-médio; o terrorismo; o racismo; a economia; a questão climática e, tampouco constitui novidade, as ameaças biológicas e virais. A diferença entre os períodos anterior e posterior à Segunda Guerra Mundial, diante de tantas e graves ameaças à estabilidade mundial, repousa exatamente sobre a concepção global e comunitária que passou a influenciar o diálogo e o modo de enfrentamento de problemas de proporções regionais e internacionais. Doravante, organizações como a União Européia, OTAN, OMS, OMC, G7, G20, Banco Mundial, Mercosul etc., dentre outras, passavam a buscar soluções conjuntas e integradas, inspiradas pelos princípios estabelecidos na Carta das Nações Unidas, dentre os quais a cooperação global entre Estados soberanos.
A questão que se coloca impõe a reflexão sobre a viabilidade de resolução dos desafios contemporâneos por meio de uma ação conjunta e coordenada das nações soberanas e unidas. A resposta a tal questão certamente determinará o futuro do processo de globalização e universalização dos meios de enfrentamento das questões comuns nas relações internacionais: assim, por exemplo, a crise gerada pela pandemia covid-19 tem apontado em ambas as direções; ora, equipamentos médicos de combate ao vírus são desviados para novos destinos devido à interferência de países em contratos já firmados; ora, países abrem suas fronteiras para receber vítimas doentes de nações vizinhas, como no caso da Alemanha que vem recebendo doentes franceses e italianos. No que tange à corrida da ciência para o desenvolvimento de vacinas e medicamentos seguros e aptos ao combate ao vírus da covid-19, contudo, a união entre as nações é conditio sine qua non para a preservação de vidas, constatação que tem obrigado os governantes a unir-se em torno de um ideal único e a adotar medidas rápidas com efeitos importantes sobre a vida cotidiana e econômica dos seus cidadãos.
Fato é que, apesar de a soberania traduzir a qualidade de um poder que impõe o relacionamento entre Estados soberanos em situação de igualdade no âmbito internacional e que não reconhece outro poder acima do soberano no plano interno, a atual interpretação vigente flexibiliza o conceito tradicional de soberania. Eis que grande parte dos desafios e problemas enfrentados pelas nações no plano global tem o condão de impactar todo o planeta.
Daí porque o ideal de Estados com autonomia e soberania intocáveis é atualmente utópica, diante das complexas relações estabelecidas por países e organizações transnacionais, acentuadamente interdependentes, consciência que ganha corpo após 1945. A idéia de soberania apresentada por Jean Bodin em sua obra Les Six Livres de la République (provavelmente publicada em 1576 (Ver DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, p.83. São Paulo: Saraiva, 2011), passa por novas interpretações, embora mantenha em sua essência o elemento consistente na independência do Estado assim reconhecido pela comunidade internacional.
Ao reconhecer normas que prevalecem na esfera global, o Estado aceita mudanças na legislação interna, admite uma cooperação horizontal e, acima de tudo, reconhece a existência de um patrimônio legal universal que deve ser harmonizado com a legislação doméstica de cada país. As diferenças locais são admitidas e reconhecidas, mas, simultaneamente, são estabelecidas redes de relacionamento entre os países a partir de conceitos e valores universalmente aceitos.
A globalização, ainda mais nos tempos atuais, marcados pela necessidade do enfrentamento a um inimigo comum, faz nascer uma nova estrutura, muito menos formal, de governança global, formada por governos e entidades da sociedade civil, além de coligações internacionais, todos voltados a promover políticas públicas voltadas a uma cidadania global. Tudo isso por meio de consensos e padrões.
Tal realidade nos leva a refletir sobre a importância de se estabelecer novos parâmetros para o direito administrativo que envolvam as seguintes realidades: (i) estreitamento do relacionamento entre Estado e sociedade; (ii) atenção ao cenário sociopolítico e econômico; (iii) abertura para conexões científicas interdisciplinares; (iv) influência da globalização e das orientações advindas dos organismos internacionais; e (v) maior relevância dos elementos econômicos.
A este respeito, Ricardo Lewandowski descreve o conceito de “soberania operacional”, pelo qual, dentro de um cenário de polaridades o Estado emerge com uma perspectiva organizadora e conciliadora. Assim, buscando “compartilhar” a sua soberania, o Estado conseguiria superar as dificuldades nascidas com o processo de globalização. Assim, o momento atual tem obrigado os governos e povos do mundo a repensar sua estrutura organizacional, uma vez que passaram a receber profundas influências advindas da globalização, das relações estabelecidas entre Estados e das novas regras econômicas, sociais e sanitárias, mediante a assunção de novas responsabilidades pela busca de harmonização e garantia da saúde pública, da vida econômica e dos interesses dos diversos setores sociais.
Os dados foram lançados: a opção deverá ser entre o retrocesso a velhos paradigmas, ineficazes para os desafios contemporâneos; ou, no sentido da percepção de que, efetivamente, iniciamos agora o século XXI essencialmente sob o signo da interdependência e da necessidade de fortalecimento da cidadania global participativa. Para tanto, transparência e governança são lançadas à posição de maior evidência quanto à sua necessidade, diante do desafio do COVID19. Sem governança, transparência, cidadania participativa e cooperação global, futuros e desconhecidos desafios poderão não ser sobrepujados. Como escreveu Harari (HARARI, Yuval Noah. Uma Breve História da Humanidade, p.424. Porto Alegre: R&PM, 2017), “...a história nos ensina que o que parece estar depois da esquina pode jamais se materializar devido a barreiras imprevistas e que outros cenários não imaginados acontecerão de fato...”.
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Referências:
BOBBIO, Norbert. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1992.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2011.
HACHEN, Daniel Wunden. Administração pública inclusiva, igualdade e desenvolvimento: o direito administrativo brasileiro rumo à atuação estatal para além do mínimo existencial. In: (org.) MARRARA, Thiago. Direito administrativo: transformações e tendências. Coimbra: Almedina, 2014, p. 429-460.
HARARI, Yuval Noah. Uma Breve História da Humanidade. Porto Alegre: R&PM, 2017.
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Globalização, regionalização e soberania. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 261.
MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 3. ed. Brasília: Gazeta Jurídica, 2017, p. 385-413.
OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Contrato de gestão. São Paulo: RT, 2008, p. 23-42.
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*Flávio de Leão Bastos Pereira é doutor e mestre em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Professor de Direito Constitucional e Direitos Humanos na UPM. Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Escola Superior da Advocacia da OAB/SP. Professor convidado da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo e do Ministério Público da União. Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra (Instituto Ius Gentium Conimbrigae/IGC) e IBCCRIM. Membro do rol de especialistas da Academia Internacional dos Princípios de Nuremberg (Alemanha).
*Gabriella Fregni é sócia do escritório Fregni Advogados. Mestre em Direito Civil Comparado pela Faculdade de Direito da PUC-SP. Doutora em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Relatora do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP