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A prorrogação do prazo de vigência da lei geral de proteção de dados pessoais – LGPD e seus impactos no desenvolvimento econômico do Brasil diante da pandemia

A proteção da privacidade, ademais, é requisito essencial para a evolução tecnológica que bate a nossa porta com a Quarta Revolução Industrial.

24/4/2020

A LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - lei 13.709, de 2018 - já vinha sofrendo constantes ameaças de prorrogação de seu prazo de vigência, como se os 24 (vinte e quatro) meses nela previstos não fossem suficientes para a adaptação das pessoas físicas e jurídicas para proporcionarem a proteção dos dados pessoais que estejam tratando ou que venham a tratar.

A situação de pandemia reforçou esse entendimento, quando na verdade deveria ser justamente o contrário, pois nunca, em todo o mundo, os dados pessoais ficaram tão expostos, haja vista que o trabalho remoto, somado a ampla utilização da nuvem e as reuniões virtuais aumentam exponencialmente a possibilidade de incidentes com dados pessoais. Veja-se o exemplo do vazamento de dados pessoais ocorrido na plataforma Zoom.us, cujos dados tratados, ao que parece, estão à venda na darkweb.

Mas, infelizmente, o Brasil está indo no caminho da prorrogação do prazo de vigência da LGPD. O Senado Federal aprovou, no dia 3 de abril (sexta-feira), o PL 1.179/20 que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de direito privado, no período da pandemia causado pela covid-19, cujo o ponto principal do PL é a intenção de postergar a entrada em vigor LGPD, prevista para agosto deste ano.

No âmbito empresarial diversas medidas já vêm sendo adotadas pelo Governo a fim de minimizar os impactos econômicos da pandemia. Nesta seara, o PL 1.179/20, sugeriu prorrogar a vigência da LGPD por mais 18 (dezoito) meses, sob a justificativa de "não onerar as empresas em face das enormes dificuldades técnicas econômicas advindas da pandemia".

Neste passo, o Senado aprovou que a entrada em vigor da LGPD seja postergada para janeiro de 2021, sendo ressalvadas as multas e sanções previstas na LGPD, para que somente entrem em vigor a partir de agosto de 2021.

A LGPD foi publicada em 14 de agosto de 2018 e já estabelecia um prazo de 24 (vinte e quatro) meses para sua entrada em vigor, justamente para que as empresas com maior dificuldade tivessem tempo hábil para se adaptarem às novas práticas e procedimentos a serem implantados internamente, relativo ao tratamento de dados pessoais em linha com os parâmetros internacionais.

Outra justificativa do Governo era - e ainda é - a ausência de instalação da Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD). A ANPD será o órgão fiscalizador e sancionador da LGPD, assim como responsável por realizar estudos, regulamentos, resoluções e diretrizes de proteção de dados, idealmente em articulação com as agências reguladoras e os setores econômico.

Ocorre, no entanto, que as empresas vêm resistindo a se adaptar, afinal de contas, já estamos no final do prazo de adaptação, quando a maior parte já deveria estar avançada nos trabalhos, em fase de finalização e não em fase inicial. Um estudo realizado em agosto de 2019 pela consultoria de recrutamento Robert Half mostrou que 53% das empresas não estavam preparadas para as exigências da lei. Entre as micro e pequenas empresas (MPEs), o percentual é maior, chegando a 58,3%, também foi relatado que 75% das empresas não possuem políticas ou normas internas de segurança implementadas, segundo pesquisa realizada em janeiro de 2020 pela ICTS Protiviti.

Esta resistência das empresas, muitas vezes aplica-se não somente à falta de recursos financeiros para a implantação, mas a necessidade da demanda de contração de profissionais habilitados para as peculiaridades da medida, falta de planejamento estruturado e eficaz para todos os pontos e fases do processamento de dados, e principalmente no setor da área de Tecnologia da Informação, em especial para desenvolver softwares e projetos para o tratamento de dados. É essencial para implantar-se um sistema efetivo a mudança cultural de uma empresa, os dados tanto de clientes, fornecedores, novos e possíveis funcionários passarão por toda a cadeia, por isso, é imprescindível para as empresas a implantação de políticas neste aspecto com o fito de orientar a empresa como um todo.

Com esta aprovação do Senado Federal, o PL 1.179/20 segue para votação – provavelmente ainda esta semana - na Câmara dos Deputados, e caso seja aprovado deverá ser sancionado pelo presidente da República Jair Bolsonaro para que entre em vigor.

Noutro bordo, não há como negar o impacto econômico trazido pela pandemia do covid-19, resultante na paralisação quase que nacional do comércio para perpetuar a quarentena, ocasião em que se torna necessária a atuação do Estado com alternativas para mitigar os efeitos da crise de saúde pública e desonerar empresas, em especial as mais vulneráveis, e também para visar a manutenção dos empregos, rendas e atividades em geral.

A prorrogação da LGPD revela-se ser uma faca de dois gumes, de um lado desafoga as empresas que ainda sequer iniciaram medidas necessárias para se adequarem aos procedimentos nela requeridos, e de outro lado, promove insegurança no cenário do mercado internacional.

Isto porque a União Europeia em sua Lei Geral de Proteção de Dados (General Data Protection Regulation - GDPR), vigente desde maio de 2018, já aponta que para haver negócios e trocas de dados internacionais entre empresas, o país alvo deve possuir legislação de proteção de dados igual ou superior ao seu nível de proteção.

Ocorre, que a LGPD brasileira inspirada na GDPR já estaria apta a cumprir este requisito. Sem perder tempo e negócios, em janeiro de 2020 entrou em vigor na Califórnia - EUA, o CCPA (California Consumer Privacy Act). Enquanto A LGPD não entrar em vigor, o Brasil ficará em desvantagem no mercado mundial.

A prorrogação da LGPD pode afetar diretamente o desenvolvimento econômico do Brasil, justamente nesse momento de crise, podendo ser até maior do que apontam os estudos recentes de que praticamente não haverá crescimento do PIB no calendário de 2020.

Além disso, há que ser considerada uma possível imagem negativa a prorrogação da vigência da LGPD, sujeitando o Brasil à eventuais perdas de oportunidades relacionadas a transações que envolvem dados pessoais sensíveis de nível internacional, como investimentos estrangeiros.

É manifesto o interesse do Brasil em ingressar na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), na medida em que essa participação implica em credibilidade internacional e, consequentemente, atrai investimentos possibilitando o desenvolvimento econômico.

No entanto, para ingressar na OCDE é necessário cumprir diversos requisitos técnicos e político-diplomáticos, dentre eles possuir uma legislação de proteção de dados e uma autoridade independente e capaz de fiscalizar o seu cumprimento. Para a OCDE, ter uma lei de proteção de dados significa que o país garante a proteção mínima a partir de princípios como transparência, finalidade, necessidade, entre outros. Por esta razão, é de notável interesse do Brasil aproveitar o suporte dos EUA, e adote medidas necessárias que visem acelerar o atendimento aos requisitos exigidos pela OCDE para sua aceitação no grupo econômico internacional.

Frisa-se que conforme informações do ICO (Information Commissioner’s Office - Autoridade independente do Reino Unido criada para defender os direitos de informação e dados de privacidade dos indivíduos), frente à pandemia do covid-19 tornou-se necessário o uso de rastreamento de celulares visando analisar minuciosamente a expansão do vírus para poder agir de forma preventiva, sendo que neste caso, como já há uma regularização no Reino Unido o Estado já está responsabilizado por este tratamento de dados privados.

Ora, em contrapartida - sem prejuízo da importância fundamental e econômica para a vigência da LGPD - não há sentido iniciar a vigência da norma sem a constituição de uma fiscalização, visto que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD) seria o norte de todas as ações de proteção, com recomendações, fiscalizações e regulamentações. Outrossim, a vigência da lei sem sanção não iria surtir os efeitos esperados, mas sim abrir alas para uma brecha ao tratamento de dados privados, uma vez que o uso de forma inadequada com eventuais prejuízos aos titulares não acarretaria as sanções educativas esperadas pela LGPD, e sequer haveria um diferencial no âmbito internacional, haja vista prevalecer a falta de fiscalização e sansão do Poder Público.

Não é de se olvidar o interesse do Poder Público para fazer valer a lei, conforme exposições supra, entretanto, até o momento a Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD) não fora criada, e ante este vácuo regulatório, torna-se ainda mais difícil e tortuoso o início da vigência da LGPD.

Posto isso, é possível que a proposta de prorrogação da vigência da LGPD prospere na Câmara dos Deputados, enquanto isso, aguardaremos novidades do Poder Legislativo.

Indubitavelmente, a LGPD trouxe uma evolução necessária à proteção do direito à privacidade e seu respectivo tratamento, sendo uma conquista ímpar na história, ora trata-se de um direito fundamental e cláusula pétrea no ordenamento jurídico. É suma importância conferir a proteção de dados pessoais e à privacidade de pessoas físicas e jurídicas, na medida em que o uso indevido de informações pode acarretar imensuráveis danos à imagem e reputação de uma pessoa ou empresa.

Com o uso demasiado de dados privados via trabalho à distância proporcionado pelo covid-19, a maior preocupação para as empresas e até mesmo do próprio Governo é o "roubo" de dados pessoais através de ataques de cibercriminosos, que podem estar aproveitando o momento sensível.

Diante deste cenário, em que pese haver eventual prorrogação da LGPD, as pessoas físicas e jurídicas deveriam continuar ou até mesmo iniciar o processo de adaptação às normas estabelecidas na LGPD, mesmo porque ele leva tempo, especialmente para a realização do inventário dos dados e, depois, para a implantação das medidas protetivas, sem contar a necessidade da avaliação se será ou não, dependendo da atividade, necessária a autorização individual do titular dos dados, fatores que pode tornar o prazo adicional de 18 (dezoito) meses, se aprovado, bem curto para o cumprimento do processo, especialmente para as pessoas que estarão enfrentando uma crise econômica profunda.

A proteção da privacidade, ademais, é requisito essencial para a evolução tecnológica que bate a nossa porta com a Quarta Revolução Industrial. Talvez se as sociedades já tivessem se preparado para incorporar a tecnologia, respeitando a privacidade, poderia ter havido um melhor enfrentamento da pandemia. O avanço tecnológico está a nosso favor e cabe à sociedade comandá-lo nesse sentido.

___________

PL 1179/20

O projeto de lei 1.179/20 e os impactos na LGPD.

ICO.org

Proteção de dados: 53% das empresas não estão preparadas para a nova lei.

58% das pequenas empresas não estão preparadas para a LGPD.

Cometemos alguns erros, diz CEO da Zoom sobre vazamento de conversas.

Governo zera projeção para crescimento do PIB em 2020 por coronavírus.

___________

*Ana Paula Oriola De Raeffra é doutora e mestre em Direito pela PUC/SP. Professora dos cursos de pós-graduação da PUC/SP. Vice-presidente do IPCOM. Presidente da Comissão Especial de Previdência Complementar da OAB/SP. Membro do IAPP. Profissional certificada em segurança da informação e proteção de dados. Sócia do escritório Raeffray Brugioni Sociedade de Advogados.

*Jhoni de Sousa Medrado dos Santos é bacharel em Direito pela FMU, pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado no escritório Raeffray Brugioni Sociedade de Advogados.

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