Com algumas poucas exceções, o papel do Estado no dia a dia da sociedade foi diminuindo ao longo dos últimos séculos. De uma maneira geral, o mundo presenciou a transição de governos absolutistas para administrações menos invasivas, ou algo próximo a isto, muitas destas tidas por democráticas e/ou republicanas.
Perpassando do brocardo renascentista “L’État c’est moi” atribuído ao francês Luís XIV, o Rei-Sol, a teoria econômica do estado mínimo [liberalismo] capitaneada pelo britânico Adam Smith, cada nação, a sua maneira1, tratou de limitar o papel do poder público em muitos dos espectros sociais nos últimos tempos.
Essa mudança escalonada no pêndulo do poder é fruto de sucessivas lutas de movimentos organizados surgidos ao redor do globo, muitos deles corroborados pela indignação social advinda pela tomada de decisões governamentais déspotas.
Entre idas e vindas, notadamente após a Proclamação da República (1889), a história brasileira não refugiu do fenômeno mundial de limitação do poder estatal. Isto, claro, com o escopo de garantir um maior equilíbrio entre o público e o privado e, principalmente, possibilitar o livre exercício da cidadania e de outros direitos fundamentais.
Nesse contexto, a promulgação da Constituição de 1988 (CF/88) constituiu-se em um marco jurídico significativo para a proteção dos direitos elementares do indivíduo em face do até então onipresente poderio estatal.
Isso porque, não bastasse o seu extenso rol de direitos e garantias fundamentais, a Carta Magna brasileira recepcionou “outros [direitos e garantias] decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”2.
Dentro dessa abrangente rede jurídica protetiva inclui-se o direito fundamental a intimidade e a vida privada das pessoas [inciso X do art. 5º da CF/88]3, cuja guarda merece redobrada atenção nestes tempos de progresso disruptivo da ciência e da tecnologia.
É que apesar dos incontáveis benefícios oriundos do florescer da “sociedade da informação”4 e dos avanços contínuos por ela proporcionados, há um, porém centrado no aparelhamento tecnológico dos principais players sociais que permite o controle maciço [para mal e para bem] da população.
Somado a isso está o fato de que cada vez mais as informações privadas das pessoas, voluntária ou involuntariamente, estão mais expostas e disponíveis, especialmente no âmbito da rede mundial de computadores [internet], o que abre espaço para a análise e o monitoramento de tais dados em tempo real.
Da arena online, onde reinam as grandes corporações [Google, Facebook, Alibaba, Amazon, Apple, etc.] e o que o autor George Orwell, em seu profético livro 19845, nominou de Grande Irmão [Big Brother]6, extrai-se facilmente relevantes dados sobre a vida pública e privada de determinado indivíduo mediante um simples click após a grafia do seu nome, isto em qualquer buscador.
Podemos até não perceber, mas as compras realizadas com cartões, as ligações telefônicas efetuadas, a localização e o conteúdo descritos em um post de rede social e até mesmo o lixo residencial dizem muito sobre os hábitos de consumo e de comportamento do cidadão.
Todas essas informações, quando devidamente refinadas através do processamento de dados, abrem espaço para o exercício de certo tipo de influência para quem as possui, seja comercial [e. g. direcionamento de publicidade com base nas compras realizadas], política [e. g. sugestão de matérias recomendadas com base em leituras pretéritas], psíquica ou outra.
A problemática aventada não reside nas informações per se extraídas das mais variadas formas possíveis dos indivíduos, mas sim em como, para que propósito, elas estão sendo ou serão utilizadas.
Tendo em mente que informação gera conhecimento e, segundo o filósofo britânico Francis Bacon, “conhecimento é poder”7, acende-se o alerta de como o poder oriundo do processamento contínuo de dados dos cidadãos está sendo exercido.
Se o exercício estiver canalizado para o bem comum e para o progresso social8, em tese não há preocupação juridicamente relevante na espécie.
De outra banda, a utilização de informações pessoais privadas para o suprimento de desígnos estritamente econômicos e/ou políticos de empresas, governos ou de determinado grupo político é tema relevante, posto que em jogo a higidez de muitos direitos e garantias individuais, notadamente a intimidade e a vida privada do cidadão.
O perigo disso vem vendo sendo denunciado ultimamente por respeitadas vozes mundo afora, a exemplo dos brilhantes professores [brasileiro] Leandro Karnal9 e [israelense] Yuval Noah Harari10, que, dentre outras coisas, questionam a reiterada implementação de tecnologias governamentais hábeis ao monitoramento de cada passo do indivíduo, sendo o exemplo mais emblemático disso a China.
Em recente reportagem sobre o tema o site da BBC Brasil11 explicitou de maneira didática o funcionamento do sofisticado sistema de vigilância de dados criado pelo governo chinês para rastrear os seus cidadãos online e offline, a qualquer tempo e em qualquer lugar.
O escândalo oriundo do descortinamento das ações da [já extinta] empresa Cambridge Analytica, a qual utilizou de maneira indevida os dados de quase cem milhões de pessoas12 na Europa e nos EUA, é outro caso que corrobora a ameaça que empresas e grupos de poder armados com poderosas tecnologias de extração e análise de informações representam para a incolumidade da vida privada dos indivíduos e também para a própria democracia.
Não é à toa que movimentos reacionários a esse descomedido bisbilhotamento da vida alheia, ainda que de forma incipiente, vêm pressionando para a tomada de medidas regulatórias eficazes ao controle daqueles que dispõem de informações/dados sensíveis a esfera particular do cidadão.
Umas das contrarreações a tais efeitos colaterais do avanço tecnológico fora a aprovação do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dado (GDPR)13 pela União Europeia e, no âmbito nacional, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais do Brasil (LGPD)14.
Na esteira da vigência da GDPR muitos países europeus vanguardistas vêm aplicando significativas penalidades aqueles que usam indevidamente as informações dos seus nacionais, a exemplo da França15 e da Suécia16 que multaram o Google, respectivamente, em US$ 56,8 milhões de euros e em $ 75 milhões de coroas suecas.
De volta ao cenário brasileiro imperioso destacar a promulgação do Marco Civil da Internet [lei 12.965/14] que estabelece nos incisos I e III do seu art. 3º que o uso da internet no país tem como por princípios, dentre outros, “a proteção da privacidade” e “a proteção dos dados pessoais”. Ademais disso, o inciso I do art. 7º da referida norma assegura a “inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Apesar disso o que se vê nos últimos dias em nosso país é a perpetração de atos governamentais que, no mínimo, resvalam na incolumidade da intimidade e da vida privada do indivíduo, a exemplo das seguintes manchetes que falam por si só: “Recife rastreia o celular de 800 mil pessoas para saber quem sai de casa”17; e “Governo vai monitorar celular para controlar aglomeração na pandemia”18.
Ainda que a intenção desses recentes monitoramentos seja a melhor, e aqui rememorando o ditado popular que diz que “de boas intenções o inferno está cheio”, não se deve olvidar do passado bisbilhoteiro, invasivo e opressivo do Estado que, sob o mais ínfimo argumento, pode voltar à tona.
Um exemplo do risco da banalidade argumentativa hábil ao retorno do status quo governamental é a atual situação da Hungria que, alegando adotar medidas extraordinárias para o enfrentamento da pandemia causada pelo covid-19, permitiu ao seu primeiro-ministro [Viktor Orbán] governar por decreto por tempo indeterminado e sem nenhum controle, sequer o parlamentar. Além disso, pasmem, permitiu-se também a detenção, por até cinco anos, daqueles que publicarem informações falsas ou distorcidas que “obstruam ou evitem a proteção eficaz da população”19.
De se vê, portanto, que hoje, mais do que nunca, o direito a intimidade e a vida privada do cidadão está na berlinda em razão do aparelhamento tecnológico maciço do principais atores sociais, notadamente do Estado que, nas palavras do escritor George Orwell, “zela por ti” e “está te observando”20.
Em assim sendo, a defesa dos direitos elementares do cidadão deve estar alerta e ser combativa ao menor sinal de agigantamento do onisciente Leviatã21, até porque retrocesso22 é uma palavra que melhor se encaixa nas páginas de um dicionário do que na realidade dos dias atuais.
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1 Muito pela influência do iluminismo e, também, das Revoluções Inglesa e Francesa, da Independência Americana, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, etc.
2 Ex vi do § 2º do art. 5º da CF/88.
3 A exemplo do assegurado também pelo parágrafo segundo do art. 11 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) promulgada pelo decreto federal 678, de 06 de novembro de 1992.
4 Fundada na coleta, no processamento e na difusão instantânea de dados em todo o globo, vinte e quatro horas por dias.
5 ORWELL, George. 1984. 29ª ed. São Paulo: Ed. Companhia Editora Nacional, 2005.
6 “Big Brother is watching you”.
7 “Knowledge is power”.
8 Ressalta-se aqui o perigo conceitual de tais preceitos, vez a hermenêutica distorcida/parcial de suas significâncias pode legitimar situações arbitrárias. Muitas das barbaridades ocorridas na história da humanidade foram, de certo modo, fundadas no preceito do que era “o bem comum” para o estabilishment da respectiva época (e. g. nazismo, fascismo, escravidão, colonialismo, Revolução Cultural Chinesa, etc.).
9 Vide aula nominada “Nossas vidas expostas ao mundo”. Disponível em: Clique aqui
10 Autor do livro “Sapiens – Uma breve história da humanidade” e do impactante artigo publicado no site do Financial Times [disponível em: Clique aqui] intitulado “O mundo após coronavírus” onde, dentre as suas inúmeras ponderações, denuncia o porvir de uma vigilância totalitária do Estado sobre os seus cidadãos.
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13 Sigla em inglês para General Data Protection Regulation.
14 Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, que ainda não entrou em vigor no Brasil.
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20 Op. cit. ORWELL, George.
21 Em paráfrase ao filósofo britânico Thomas Hobbes.
22 Vide entrevista concedida pela cientista política alemã Anna Lührmann que defende que “pela primeira vez neste século, a maior parte dos países do mundo não é uma democracia – e esse movimento deve aumentar nos próximos anos por causa da pandemia de coronavírus. (...). A crise do coronavírus vai acelerar essa onda autoritária”. Disponível em: Clique aqui
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*Ademar José P. da Silva é advogado e sócio do escritório de advocacia Cyrineu&Silva Advocacia.