No último dia 10 de abril, o presidente da República realizou um novo passeio por Brasília, contrariando a recomendação do próprio Ministério da Saúde de manter o isolamento social como medida essencial ao combate à disseminação do coronavírus. Ao ser entrevistado, ele teria dito que “Eu tenho direito constitucional de ir e vir. Ninguém vai tolher o meu direito de ir e vir”1.
Podem as autoridades, no âmbito de suas atribuições e durante uma pandemia, limitar o direito de ir e vir dos cidadãos? A Constituição da República e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal oferecem as respostas.
A princípio, o direito de locomoção é garantido no art. 5º, XV, que prevê: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.
O direito, contudo, não é absoluto.
A própria Constituição da República prevê situações em que ele pode ser limitado, como: (I) prisão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de Juiz; (II) prisão civil, administrativa ou especial para fins de deportação, nos casos cabíveis na legislação específica; (III) durante vigência de estado de sítio, para determinar a permanência da população em determinada localidade, única situação na qual há permissão expressa de restrição generalizada deste direito.
Em função da pandemia, foram editadas algumas normas infraconstitucionais prevendo severas restrições ao direito de locomoção. Fiquemos com duas delas: o isolamento e a quarentena.
A lei 13.979/20, regulamentada pelo decreto 10.282/20 e portaria 356/20 do Ministério da Saúde, previu que o isolamento consiste na “separação de pessoas sintomáticas ou assintomáticas, em investigação clínica e laboratorial, de maneira a evitar a propagação da infecção e transmissão local”.
Ela poderá ser determinada pelo médico ou recomendada por agente sanitário pelo prazo máximo de 14 dias, podendo se estender por mais 14 dias, a depender de resultado de exame laboratorial que comprove o risco de transmissão da doença.
A quarentena, por sua vez, é a medida consistente na “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus”.
A quarentena poderá ser decretada pelos gestores locais de saúde, como vem sendo feito em diversos estados em que houve suspensão de atividades comerciais e separação de pessoas suspeitas, como São Paulo (decreto 64.881), Goiás (decreto 9.638), Maranhão (decreto 35.677) e Distrito Federal (decreto 40.539).
O descumprimento destas medidas pode levar à prisão do infrator pelo crime do art. 268 do Código Penal, que pune criminalmente a conduta de “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, pelo que se nota a gravidade na restrição do direito de ir e vir.
Ainda que não decretado estado de sítio, única situação que, conforme vimos, há autorização expressa para restrição generalizada da liberdade de locomoção, o direito de ir e vir deve conviver com outros princípios da Constituição da República e não pode ser considerado absoluto.
É o caso do direito à saúde.
Com efeito, o art. 196 prevê que o direito à saúde tem duas dimensões: (I) como direito subjetivo de todos (“direito a uma prestação no sentido estrito”, segundo expressão de Robert Alexy) e (II) como dever do Estado de desenvolver uma política pública, abrangendo regramentos, organização pessoal e previsão orçamentária específica2.
Nesse contexto, a lei 13.949, ao prever as medidas de isolamento e quarentena, traz medidas para salvaguarda do direito à saúde de cada indivíduo (saúde como direito individual) e medidas preventivas operacionais para que Poder Público exercer sua obrigação de tutela da saúde pública (saúde como dever do Estado). São ambas expressões do art. 196 da Constituição da República.
Em uma situação como esta, que envolve o conflito aparente entre os princípios da liberdade de locomoção e direito à saúde, o Supremo Tribunal Federal tem aplicado a regra da proporcionalidade3 para solução do impasse.
Paradigmático, nesse sentido, foi o julgamento do “Caso Ellwanger”, em que o Ministro Gilmar Mendes explica no seu voto que: “[...] o princípio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências do princípio da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos” (HC 82.424, j. 17.09.03).
A regra de proporcionalidade prescreve que um princípio deve ceder diante de outro desde que atenda aos seguintes requisitos: (I) adequação; (II) necessidade; (III) proporcionalidade em sentido estrito4.
Portanto, no primeiro momento, devemos nos questionar se as medidas de isolamento e quarentena são adequadas para fomentar o objetivo sanitário perseguido, isto é, a contenção da pandemia de coronavirus, a despeito de restringirem a liberdade de locomoçao.
Considerando os estudos médicos, orientações da Organização Mundial da Saúde e exemplo de diversos outros países, a diminuição do contato entre pessoas é a providência mais adequada atualmente para enfrentamento da pandemia. Com efeito, a transmissão da doença covid-19 se dá pela transmissão, pelo ar, de secreções ou saliva. Além disso, a transmissão também se dá pelo contato com superfícies contendo saliva ou secreções e posterior colocação das mãos à boca, olhos e nariz.
Nessa situação, a medida de isolamento e quarentena, por afastar pessoas, reduzir seu fluxos em espaços públicos e prevenir aglomerações, são medidas adequadas para o combate à pandemia.
Superada a adequação, devemos nos questionar se as medidas são necessárias para seu objetivo. Trata-se de um teste comparativo: existiriam outras alternativas menos invasivas ao direito de locomoção que possuam igual eficiência no combate à pandemia? Caso existam, elas devem ser adotadas no lugar do isolamento e quarentena. Contudo, sabemos de antemão que não existem outras medidas, como, por exemplo, vacinas ou EPIs simples, baratos e altamente seguros. Assim, por ora, as medidas de isolamento e quarentena são necessárias para atingir o objetivo de proteção à saúde.
Por fim, constatadas a adequação e necessidade, devemos questionar se as medidas atendem ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito. A última etapa serve para evitar exageros, pois podemos nos deparar com medidas adequadas e necessárias, mas que causem uma restrição insuportável em outros direitos fundamentais, o que tornaria o objetivo perseguido injustificado.
Não é o caso das medidas sanitárias de combate ao coronavírus, pois elas não suspenderam atividades essenciais, possuem tempo de duração delimitada no tempo, estão sujeitas a controle jurisdicional regular e revisão periódica das autoridades sanitárias. Note-se que o §1º, do art. 3º, da lei 13.979/20 disciplina que “as medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”. As medidas, portanto, atendem ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito.
O Supremo Tribunal Federal, por enquanto, foi chamado a decidir, em sessão realizada no dia 15.04.20, sobre aspectos da competência para editar regulamentos desta natureza (ADIs 6341, 6343 e ADO 56), quando reconheceu a autonomia dos municípios e governos estaduais para decretarem medidas sanitárias de contenção à epidema.
Contudo, deve em breve ser chamado a decidir sobre o limite das restrições à liberdade de locomoção, em especial diante de um cenário de (ainda) maior crise de saúde que se avizinha. No passado, a Suprema Corte já se debruçou sobre situações similares, como a remoção de pacientes afetados por peste bubônica para hospital próprio, no longínquo HC 2.642, j. 09.12.08.
Além disso, também no passado a Corte já se inclinou à proteção da saúde pública em diversos julgados em que o direito conflitava com garantias liberdade profissional5, direito de propriedade6 e direito de posse7, conforme aponta Carlos Ari Sundfeld8.
De toda forma, analisando hoje as medidas restritivas ao direito à locomoção da lei 13.979/20 sob o enfoque constitucional do direito à saúde, podemos concluir que elas devem prevalecer, neste caso, sob a liberdade de ir e vir dos cidadãos, em sentido contrário à fala do senhor presidente da República.
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3 Vide, por exemplo, a discussão sobre a constitucionalidade da regra de proibição de sacolas plásticas vis a vis os princípios de proteção ao meio ambiente e tutela da livre iniciativa, que tem repercussão geral declarada pelo STF no Tema 970 (RE 732.686 RG/SP - SÃO PAULO), e o reconhecimento expresso da índole constitucional do princípio na esfera penal, como visto no HC 167.681 AgR/RJ - RIO DE JANEIRO, j. 14.02.20.
4 Como explica André de Carvalho Ramos, a regra da proporcionalidade de encontra implícita na Constituição da República e decorre, em síntese, da interpretação conjunta dos princípios do Estado Democrático de Direito, Devido Processo Legal, Dignanidade da pessoa Humana e Isonomia (Curso de Direito Humanos, 1ª Edição, 2014, São Paulo, Saraiva, págs. 116 e ss. Cf., ainda, Virgilio Afonso da Silva, “Direitos Fundamentais”, 2ª Edição, Malheiros, 2010, passim.
5 Proibição de comercialização de carne que não tivesse sido inspecionada em pé pela autoridade sanitária (Apelação Cível 1.252, j. 06.05.08).
6 Ato administrativo que determinou o ingresso de agentes sanitários em propriedade particular para realização de desinfecção de acordo com regulamento sanitário (Agravo Cível 1.211, j. 1.12.1909).
7 Ato administrativo que determinou a limpeza de terreno contra a vontade do proprietário por razões sanitárias (Agravo 360, j. 04.08.1900).