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Desconsideração da personalidade jurídica e fraude à execução: Em busca de um sentido constitucional para o art. 792, § 3º do CPC/15

O postulado da segurança jurídica, extraído da própria concepção de Estado Democrático de Direito, exige previsibilidade das relações jurídicas, algo que não é respeitado pelo dispositivo legal em comento.

17/4/2020

A desconsideração da personalidade jurídica é, hodiernamente, um instituto jurídico muito conhecido e aplicado no Poder Judiciário brasileiro, existindo vasta jurisprudência acerca de diversas questões relacionadas a ele, especialmente as que tratam da configuração dos seus requisitos materiais.1

Na seara processual, entretanto, em razão de o tratamento da matéria ser relativamente recente, ainda há algumas questões que não possuem precedentes judiciais relevantes, e é justamente uma dessas questões que iremos discutir no presente artigo.

Depois de ser previsto pela primeira vez em nosso ordenamento jurídico no art. 28 da lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), o instituto da desconsideração da personalidade jurídica foi previsto em outras leis especiais até ser disciplinado em uma lei geral, o que ocorreu com a edição da lei 10.406/02 (Código Civil), que cuidou do assunto em seu art. 50.

A disciplina processual do instituto, por sua vez, só ocorreu muito tempo depois, com a edição da lei 13.105/15 (Código de Processo Civil), que tratou da matéria nos arts. 133 a 137.

No capítulo IV do título sobre intervenção de terceiros, o atual diploma processual criou um incidente específico para a decretação judicial da desconsideração da personalidade jurídica, prevendo a sua instauração “a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo” (art. 133), o que pode ocorrer “em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial” (art. 134).

Ainda segundo o CPC/15, com a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica “o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis” (art. 135), e depois de “concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória” (art. 136).

O art. 137 do CPC/15, por sua vez, finaliza o regramento processual do instituto afirmando que, “acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente”.

Ocorre que o art. 137 do CPC/15 não pode ser lido isoladamente. Com efeito, o art. 792, § 3º do mesmo diploma legislativo o complementa, ao afirmar o seguinte: “nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar”.

Essa regra do art. 792, § 3º do CPC/15 nos parece absolutamente desarrazoada, quiçá inconstitucional, e sua interpretação literal pode levar a situações extremamente injustas, gerando gravíssimas violações à segurança jurídica.

Com efeito, na sistemática estabelecida pelo CPC/15, há duas formas de se requerer a desconsideração da personalidade jurídica: (I) na própria petição inicial da ação de conhecimento ou de execução e (II) no curso do processo, em momento posterior à apresentação da petição inicial.

No primeiro caso, tanto a pessoa jurídica ré quanto os seus respectivos sócios2 serão citados, sendo dispensada a própria instauração do incidente processual (art. 134, § 2º do CPC/15). Tem-se aqui, em verdade, a formação de um litisconsórcio passivo, porque o(s) sócio(s) citado(s) passará(ão) a integrar a relação jurídico-processual ao lado da pessoa jurídica. Caso algum sócio – que se tornou réu (ou executado) após a sua citação – promova a alienação ou oneração de bens particulares, tal comportamento poderá configurar fraude à execução, desde que presente alguma hipótese prevista no art. 792 do CPC. Não nos parece haver problema algum nessa situação.

O grande problema, de fato, está no segundo caso, ou seja, quando o pedido de desconsideração da personalidade jurídica é formulado em momento posterior à apresentação da petição inicial da ação de conhecimento ou de execução, com a instauração do respectivo incidente processual (art. 134, § 1º do CPC/15).

Nesse caso, “a parte cuja personalidade se pretende desconsiderar” é obviamente a própria pessoa jurídica ré ou executada (normalmente uma sociedade empresária), e o efeito da medida será a possibilidade de responsabilizar seus membros (sócios, no caso de uma sociedade empresária) ou administradores por suas dívidas (art. 790, VII do CPC/15).

Se o marco temporal para a caracterização da fraude à execução for a citação da pessoa jurídica no processo de conhecimento ou de execução, como sugere a literalidade da regra contida no art. 792, § 3º do CPC/15, um determinado negócio firmado pelo(s) sócio(s) de uma sociedade empresária ré ou executada, conforme o caso, poderá ser reconhecido como fraude à execução mesmo tendo sido celebrado quando não existia nenhuma demanda judicial em curso contra esses(s) sócio(s), mas apenas contra a sociedade da qual faz(em) parte.

Imagine-se, por exemplo, que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade empresária somente seja realizado na fase de cumprimento de sentença, a qual se iniciou após quatro anos da data da propositura da ação de conhecimento respectiva.

Imagine-se ainda que, durante todo esse tempo de tramitação do processo de conhecimento contra a sociedade empresária ré, os seus sócios tenham praticado uma série de negócios jurídicos (alienaram alguns bens, adquiriram outros, fizeram doações a seus filhos, celebraram contratos de empréstimo... enfim, uns enriqueceram ainda mais, e outros sofreram perdas patrimoniais).

Seguindo-se nesse exemplo, imagine-se que o juízo, após a citação dos sócios no respectivo incidente processual – instaurado, frise-se, na fase de cumprimento de sentença, anos após a citação da sociedade empresária ré no processo de conhecimento –, tenha decretado a desconsideração da personalidade jurídica da referida sociedade.

Pela redação do § 3º do art. 792 do CPC/15, o marco temporal a partir do qual a alienação ou oneração de bens realizada pelos sócios será considerada como fraude à execução é a data da citação da sociedade empresária ré no processo de conhecimento (“citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar”).

Assim, para finalizar o exemplo imaginado, o art. 792, § 3º do CPC/15 fornece a seguinte conclusão: as alienações ou onerações de bens feitas pelos sócios durante a tramitação do processo de conhecimento contra a sociedade empresária que integram caracterizarão fraude à execução.

Em síntese: o art. 792, § 3º do CPC/15 criou uma verdadeira aberração jurídica: considerar como fraude à execução um ato praticado por quem, à época da liberalidade, não era réu no processo respectivo.3

Ora, enquanto o sócio não é citado no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, atos de alienação ou oneração por ele praticados não podem configurar fraude à execução, porque ainda não pende contra ele qualquer ação judicial: há apenas uma ação de conhecimento ou execução contra uma pessoa jurídica que ele integra, e todos sabemos que, em princípio, “a pessoa jurídica não se confunde com seus sócios, associados, instituidores ou administradores” (art. 49-A do CC/02).

É até possível que a alienação ou oneração configure fraude contra credores (art. 158 e seguintes do CC/02), mas cabe ao credor, nesse caso, buscar a respectiva anulação por meio de ação própria e autônoma (ação pauliana), caso em que caberá ao autor demonstrar a ocorrência de consilium fraudis e eventus damni.

Em suma: se interpretado literalmente, o art. 792, § 3º do CPC/15, de forma escancarada, desprestigia o princípio da boa-fé objetiva, não apenas na perspectiva do sócio, mas, sobretudo, na perspectiva do terceiro adquirente. Isso porque, da forma como prevista, a norma acaba por exigir do terceiro o dever de peregrinar por todo o país para saber se o seu alienante participa de alguma pessoa jurídica e se tal pessoa jurídica, caso exista, figura como ré em algum processo judicial, ainda que de conhecimento. Há, aqui, nas palavras de Humberto Theodoro Junior, a exigência de uma prova duplamente diabólica.4

É possível ir além. Tendo-se em vista a natureza jurisdicional da arbitragem5, caberia ao terceiro, ainda, diligenciar em todos os juízos arbitrais do Brasil para saber se a pessoa jurídica figura como demandada em algum procedimento arbitral, na medida em que, caso seja condenada, o cumprimento da sentença arbitral será realizado perante o Poder Judiciário (art. 515, VII, do CPC/15), onde poderá ser decretada a desconsideração da personalidade jurídica da executada. Considerando-se que procedimentos arbitrais geralmente possuem cláusula de confidencialidade, a missão desse terceiro será praticamente impossível.

O postulado da segurança jurídica, extraído da própria concepção de Estado Democrático de Direito, exige previsibilidade das relações jurídicas, algo que não é respeitado pelo dispositivo legal em comento.

O efeito retroativo permitido pelo § 3º do art. 792 do CPC também viola o princípio do devido processo legal, notadamente em sua dimensão substancial6. Isso porque a regra é desproporcional, na medida em que retroage para atacar um negócio jurídico perfeito e celebrado por quem, à época, não era demandado em ação judicial.

Vê-se, assim, que a preocupação do legislador com a segurança jurídica parece ter sido esquecida quando foi redigida essa regra do art. 792, § 3º do CPC/15, a qual, vale também destacar, contraria frontalmente a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto, formada sob a égide do CPC/73.

Com efeito, na vigência do CPC/73 o STJ já havia firmado entendimento no sentido de que “é necessário, para a configuração de fraude à execução, que corra contra o próprio devedor a demanda capaz de reduzi-lo à insolvência, exigindo-se, para tanto, que o ato de disposição do bem seja posterior à citação válida do sócio devedor, quando redirecionada a execução originariamente ajuizada contra a pessoa jurídica”7. No mesmo sentido, confira-se o seguinte julgado:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. ALIENAÇÃO DE IMÓVEL POR SÓCIO DA PESSOA JURÍDICA ANTES DO REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. FRAUDE À EXECUÇÃO NÃO CONFIGURADA.

1. Cinge-se a controvérsia em determinar se a venda de imóvel realizada por sócio de empresa executada, após a citação desta em ação de execução, mas antes da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, configura fraude à execução.

2. A fraude à execução só poderá ser reconhecida se o ato de disposição do bem for posterior à citação válida do sócio devedor, quando redirecionada a execução que fora originariamente proposta em face da pessoa jurídica.

3. Na hipótese dos autos, ao tempo da alienação do imóvel corria demanda executiva apenas contra a empresa da qual os alienantes eram sócios, tendo a desconsideração da personalidade jurídica ocorrido mais de três anos após a venda do bem. Inviável, portanto, o reconhecimento de fraude à execução.

4. Recurso especial não provido.

(REsp 1.391.830/SP, rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22.11.16, DJe 01.12.16)8

Enfim, enquanto o art. 792, § 3º do CPC/15 não for questionado no Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade de normas, entendemos que caberá aos juízos e tribunais, no exercício do controle difuso de constitucionalidade, proceder a uma interpretação do dispositivo que o compatibilize com a nossa ordem constitucional, notadamente no que se refere à segurança jurídica e ao devido processo legal, na sua dimensão substancial.

Nesse sentido, a interpretação do art. 792, § 3º do CPC, no nosso entendimento, deve ser a seguinte: “nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cujo patrimônio se busca atingir”, que, em se tratando de desconsideração direta, é o respectivo membro da pessoa jurídica (sócio, associado, instituidor ou administrador). Essa citação, vale lembrar, pode ter sido requerida na própria petição inicial da ação de conhecimento ou de execução proposta contra a pessoa jurídica (art. 134, §2º), ou apenas posteriormente, no respectivo incidente de desconsideração da personalidade jurídica instaurado para responsabilização de pessoas que a integram (art. 135).

_________

1 Vale destacar, no entanto, que uma série de novas questões surgiram, em razão das alterações no art. 50 do Código Civil provocadas pela aprovação da lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), o que exigirá dos tribunais, em muitos casos, uma revisão da jurisprudência.

2  No presente artigo, focaremos nossa análise numa hipótese de desconsideração direta da personalidade jurídica, mas é importante salientar que o mesmo raciocínio se aplica à chamada desconsideração inversa. Nesse caso, se a pessoa física for a demandada, serão citadas ela e a pessoa jurídica.

3 “Basta imaginarmos que, entre a data da citação da pessoa jurídica demandada e a data da citação do sócio cujo patrimônio se almeja alcançar, pode ter decorrido um largo período de tempo, não sendo crível que a eficácia da desconsideração atinja, retroativamente, alienações de bens ocorridas há anos. Diante disso, uma provável solução é considerarmos, sempre, a boa-fé do adquirente, conforme § 2º do art. 792. Daí a importância do registro da instauração do incidente, aliás” (RODRIGUES, Daniel Colnago. Intervenção de terceiros. São Paulo: RT, 2017, p. 107).

4 THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo de execução e cumprimento de sentença. 29ª ed. rev. e atual. São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito. 2017, p. 251. 

5 STJ: AgInt no CC 156.133/BA, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22,08.18, DJe 21.09.18.

6 Para o Supremo Tribunal Federal, as máximas da proporcionalidade e razoabilidade são extraídas do caráter substancial do princípio do devido processo legal. (ARE 915424 AgR, Relator(a):  min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 20.10.15, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-241 DIVULG 27.11.15 PUBLIC 30.11.15).

7 AgInt no AREsp 1.402.956/SP, rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 02.09.19, DJe 17.09.19.

8 No voto condutor do referido acórdão, a relatora deixou claro que o julgamento foi pautado pela aplicação do CPC/73, conforme Enunciado Administrativo 2 do STJ.

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*André Santa Cruz é procurador Federal, doutor em Direito Empresarial pela PUC/SP e professor de Direito Econômico e Empresarial do Centro Universitário IESB-DF.

**Jaylton Lopes Jr. é juiz de Direito Substituto da Justiça do Distrito Federal e dos Territórios – TJDFT, mestrando em Ciências Jurídicas e professor de Direito Processual Civil.

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