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Covid-19: Projeto de lei 1.179/20 do Senado (RJET) e a questão da prisão domiciliar do devedor de alimentos face aos direitos do alimentando

A providência é salutar, digna de reconhecimento e elogios: num momento de dificuldade extrema, a sociedade precisa de homens e mulheres de atitude, que queiram resolver problemas, que não se escondem e que não negam a gravidade da crise.

16/4/2020

Introdução

Não há dúvida de que a pandemia do covid-19 desencadeou uma série de alterações na vida cotidiana de todos os brasileiros.

Essas alterações atingem, em maior ou menor grau, todas as pessoas, de todas as classes, em todas as regiões.

A nenhum de nós era dado prever uma tragédia como esta que se instalou e que nos obriga a restringir o convívio social e nossas atividades cotidianas.

Diante de tal cenário, o Poder Público viu-se obrigado a determinar que as empresas baixassem as portas, postos de trabalho foram cortados ou reduzida a jornada de trabalho, a renda em geral diminuiu, a economia retraiu, enfim, um sem número de efeitos negativos foram desencadeados.

Para o enfrentamento do momento adverso, diversas medidas estão sendo tomadas pelos principais setores da sociedade, em especial pelo Poder Público.

Dentre tais medidas, um grupo de grandes e importantes juristas, capitaneados pelo Eminente Ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal - STF1, juntamente com integrantes do Senado Federal, elaboraram um projeto de lei com o objetivo de estabelecer o "Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19)"2.

A providência é salutar, digna de reconhecimento e elogios: num momento de dificuldade extrema, a sociedade precisa de homens e mulheres de atitude, que queiram resolver problemas, que não se escondem e que não negam a gravidade da crise.

Referido projeto de lei recebeu no Senado Federal o número 1179/20, proposto pelo Senador Antonio Anastasia (PSD/MG), relatoria da Senadora Simone Tebet.

No dia 3/4/20 o projeto foi votado e aprovado na referida casa legislativa e atualmente (7/4/20) aguarda o encaminhamento à Câmara dos Deputados.

Dentre as diversas questões de Direito Privado que trata, o projeto faz algumas previsões que impactam as relações de direito de família e dentre tais previsões encontramos o art. 18, o qual prevê que até outubro do corrente ano a prisão civil por dívida de alimentos deverá ser cumprida na modalidade domiciliar.

No tocante a pensão alimentícia, eis o que diz o texto do projeto:

Art. 18. Até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes do Código de Processo Civil, deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações. – Destaques acrescidos.

A leitura do referido dispositivo nos leva a algumas reflexões.

Há uma lúcida preocupação do legislador no sentido de adotar medidas para evitar que a prisão civil por dívida de alimentos contribua para a disseminação do covid-19.

Há uma coerente percepção de que encarcerar o devedor de alimentos neste momento de crise de saúde pode resultar numa catástrofe, na medida que o preso pode acabar levando o covid-19 para dentro do estabelecimento prisional, causando um grande caos naquele já desafortunado espaço.

Há também uma sensata visão de que expor o devedor de alimentos à aglomeração de uma prisão e a um eventual contágio pelo covid-19 impediria o atingimento do objetivo maior da execução de alimentos, que é o efetivo recebimento da pensão. Em outras palavras, se o devedor de alimentos contrair a doença dentro da prisão, muito mais difícil, quiçá impossível, será o adimplemento da dívida e das parcelas futuras.

Porém, em que pese toda a preocupação com a pandemia, surgiram críticas ao texto do projeto, algumas extremamente razoáveis.

Umas das críticas afirma que o credor de alimentos será punido duplamente pela maneira como o texto foi redigido:

1) com o abrandamento da situação do devedor, haverá perpetuação da inadimplência, prejudicando ainda mais a difícil situação daquele que depende da obrigação alimentar para sobreviver e não tem culpa alguma quanto ao advento da pandemia;

2) com a facilitação da situação do devedor, este se verá em condição muito mais favorável e totalmente desestimulado a pagar o que é devido.

Professor Flávio Tartuce, expoente jurista do Direito Privado brasileiro, ao ser perguntado a respeito da questão, foi certeiro ao responder que havia a necessidade de adotar uma decisão e essa decisão foi tomada pensando na coletividade, ainda que trágica3.

Pois bem, de fato medidas transitórias são necessárias e a preocupação com as pessoas neste momento é um imperativo.

Porém, as críticas merecem ser ouvidas! Vejamos.

1. Particularidades da Dívida de Alimentos

Primeiramente, como cediço, a dívida de alimentos que autoriza a prisão do devedor é aquela urgente e atual, aquelas parcelas ainda essenciais à sobrevivência do credor.

O Código de Processo Civil estabelece no § 7º do art. 528 que "o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende até as 3 (três) prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo".

Na prática forense, muitas vezes vemos o devedor contribuir para dramatização da questão, pois, aquela dívida que iniciou com três prestações (ou menos) vai se avolumando com a inclusão das prestações vincendas não adimplidas, tornando a dívida quase que impagável!

Sabidamente a possibilidade da prisão no caso da dívida de alimentos é um elemento de coerção, um elemento que visa incentivar o devedor a manter suas obrigações rigorosamente em dia, caso contrário, dada a relevância do bem jurídico tutelado (sustento, sobrevivência de alguém, muitas vezes pessoas vulneráveis), a privação da liberdade será decretada em regime fechado (art. 528, §4º do CPC)4.

Antes de eventual decreto de prisão, o devedor pode se valer dos meios processuais para sua defesa e para justificar o inadimplemento (art. 528, caput, do CPC).

Se a defesa ou justificação não demonstrarem a impossibilidade absoluta (art. 528, §2º do CPC5) de efetuar o pagamento a prisão será decretada (art. 528, §3º do CPC6).

Decretada e cumprida a prisão, a dívida de alimentos continua a existir (art. 528, §5º do CPC7). O devedor só não pode vir a ser preso novamente pela mesma dívida (mesmo período de dívida), porém, a dívida ainda existe e o crédito continua mantendo a natureza de dívida alimentar, mantendo todos os privilégios creditórios e caracteres de sua natureza especial.

2. Do procedimento que permite a prisão do devedor de alimentos e sua efetividade

O ajuizamento da execução ou do cumprimento de sentença de alimentos pelo procedimento mais gravoso da prisão não é uma mera escolha do credor, mas trata-se de questão de necessidade e sobrevivência.

A prática forense nos mostra que alguns devedores de alimentos se escondem atrás de ardis e artifícios para ocultar patrimônio.

Em muitos casos, a cegueira herdada de relações mal resolvidas atormenta o imaginário dos envolvidos e o ato de não pagar a pensão e a ocultação patrimonial por vezes é uma tentativa de fazer a parte adversa simplesmente sofrer.

Em tal situação, de nada adiantaria ajuizar o procedimento de cobrança com o objetivo de buscar bens do devedor. Esses bens não existem ou estão em nome de terceiros, praticamente inatingíveis.

Sem contar com os inúmeros casos de simples desrespeito ao primado da paternidade (maternidade) responsável, que se resume num pensamento raso e irresponsável no sentido de: "a guarda não é minha, então é ele (ela) que deve sustentar".

Pois bem, em cenários como os acima relatados, o receio da privação de liberdade surte efeito positivo, pois impõe aos devedores o medo da prisão e acaba incentivando a regularização da pendência e a normalização da situação.

Em outras palavras, o procedimento de cumprimento de sentença ou de execução de alimentos com o pedido de prisão alcança a tão cantada efetividade da jurisdição.

É uma efetividade alcançada à fórceps, é verdade. Porém, do outro lado desse jogo de forças o que se pretende tutelar é o sustento, saúde, desenvolvimento digno do Alimentando, bem jurídico que justifica o meio coercitivo empregado na satisfação da pretensão.

Portanto, o procedimento judicial que possibilita a prisão do devedor de alimentos é um mecanismo jurídico necessário e justo para a resolução da questão e que busca até mesmo equalizar as forças entre os envolvidos.

É necessário relembrar que a prisão civil do devedor de alimentos está expressamente prevista em nosso ordenamento com estatura constitucional, conforme preceitua o art. 5º, inciso LXVII:

"não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel"8.

A referida previsão Constitucional também decorre do quanto previsto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica, o qual o Brasil é signatário e segundo o qual:

"ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar".

Não menos importante, ao considerarmos ainda que o procedimento em questão visa garantir a sobrevivência do credor de alimentos, podemos então afirmar que visa garantir uma das faces do primado da vida digna, portanto, estamos tratando de regra cujo corolário é garantia da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal).

3. Impacto de tal regramento para os interesses jurídicos dos alimentandos. Há prejuízo aos interesses do Alimentando com a medida prevista no projeto 1.179/2020?

Urge voltar os olhos ao art. 18 do projeto de lei 1.179/20.

Como dito antes, referido dispositivo determina que a prisão seja realizada em "regime domiciliar".

Pouco tempo antes da aprovação do projeto pelo Senado Federal, o Conselho Nacional de Justiça, no âmbito de suas atribuições, editou a recomendação nº 62 de 17 de março de 2020, que "Recomenda aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo"9.

Dentre as orientações, o art. 6º, direcionado aos magistrados com competência cível, recomenda que as prisões por dívida de alimentos sejam cumpridas em regime domiciliar:

Art. 6º Recomendar aos magistrados com competência cível que considerem a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus10.

Por certo, uma das inspirações do legislador foi justamente o texto das Recomendações do Conselho Nacional de Justiça, no sentido de orientar a prisão domiciliar.

Uma definição da prisão em regime domiciliar podemos extrair do art. 317 do Código de Processo Penal, segundo o qual "a prisão domiciliar consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial"11.

Podemos então considerar que no regime domiciliar o devedor com prisão civil decretada permanece em espécie de lockdown (termo corrente nesse tempo de pandemia) em sua residência, sem autorização para saídas.

Não deixa de haver a prisão, porém, o abrandamento da situação em relação ao devedor é evidente.

Cabe então avaliar o impacto de tal regramento para os interesses jurídicos dos alimentandos.

Pela regra criada pelo projeto, há um evidente abrandamento da condição do devedor, situação que pode, sem sombra de dúvida, desestimular o pronto pagamento dos alimentos e com isso contribuir para o agravamento da condição do credor.

Na complexa relação de devedor e credor de alimentos, a regulação tal como pretendida pelo projeto pode representar espécie de "alforria" ao devedor, liberando-o da imposição da prisão, criando uma sensação de liberalização.

Ao retirar a possibilidade de prisão fechada do elemento coercitivo, pode-se criar uma sensação de normalização do "ato de dever" (no sentido de dívida de alimentos), mitigando com isso a importância do bem jurídico tutelado.

Como sustentou-se acima, a execução ou o cumprimento de sentença de alimentos com a possibilidade de prisão do devedor segue um rigoroso sistema de requisitos e orientações.

Sua previsão é constitucional, trata-se da única forma de prisão por dívida civil possível em nosso ordenamento.

E há um motivo nobre e relevantíssimo para o ordenamento jurídico possibilitar a prisão desse dever em específico: do objeto da prestação depende a vida e sobrevivência de alguém, muitas vezes menor de idade.

Noutro giro, uma outra observação se faz necessária: a proposta cria uma situação no mínimo curiosa, pois, além de retirar da lei o elemento coercitivo e que é decisivo a incentivar o devedor a pagar, ao mesmo tempo vai impedir o devedor de exercer atividade laborativa ao confiná-lo ao ambiente domiciliar – não é demais lembrar que um dos argumentos daqueles que são contrários à prisão do devedor de alimentos é justamente a alegação de que com a prisão mais difícil será para o devedor pagar a pensão por não poder exercer seu trabalho.

Em outras palavras, a tal prisão domiciliar nada vai contribuir com a condição do credor dos alimentos: além de perder o elemento coercitivo, vai confinar o devedor dentro de casa sem poder, em tese, exercer qualquer atividade remunerada12!

Por essas razões, tanto a recomendação do CNJ, quanto a proposta legislativa, não resolvem a questão da maneira que faça o melhor entre os direitos do Alimentante e a questão de saúde pública envolvida.

Existe, salvo melhor juízo, outras formas de solução da questão que além de agir preventivamente em relação ao covid-19, também respeita as garantias e justas prerrogativas do credor de alimentos, em especial a manutenção do elemento de coerção.

4. Uma sugestão de enfrentamento da crise sem colocar em risco a saúde pública e sem desrespeitar os legítimos interesses do credor

Em nosso sentir, uma saída intermediária, transitória e excepcional, de natureza processual e procedimental, se mostra necessária e melhor se adequa ao caso:

1) Não mudar o regime de prisão pelo qual a prisão é cumprida: Não se altera o modo como a prisão é cumprida, sem normalizar a gravidade do não pagamento dos alimentos;

2) Porém, suspender o cumprimento da ordem de prisão decretada, impedindo que ela seja cumprida durante a pandemia: Durante a fase crítica, suspende-se as prisões em andamento e aquelas decretadas deverão aguardar o soerguimento da crise para serem cumpridas;

3) Superada a pandemia, caso o débito alimentar não tenha sido resolvido, o devedor se sujeitará à prisão pelo tempo restante: Superada a pandemia a prisão torna a ser cumprida. Não há prejuízo ao elemento coercitivo e o devedor ganhará um tempo adicional, seja para pagar, seja para negociar o débito, sabendo que, caso não pague o valor devido, poderá ser preso;

4) E ainda, regulamentar quais atos processuais podem, ou não, serem realizados nessa fase excepcional em que a prisão estará suspensa: A execução de alimentos ou cumprimento de sentença pelo rito gravoso da prisão, conforme se verá adiante, não admite alterações em seu procedimento para a realização de expropriação de patrimônio do devedor sem que haja uma alteração definitiva e formal no seu procedimento (abrir mão do rito da prisão pelo rito da penhora). Com a alteração ora proposta, o credor poderia, no período em que as prisões ficarem suspensas, realizar pesquisa de bens sem abrir mão do rito mais gravoso;

O conjunto de soluções acima apontadas, ao mesmo tempo que garante as medidas de prevenção em relação ao covid-19 – alinhados as recomendações de organismos nacionais e internacionais – não extirpa do credor de alimentos uma das ferramentas mais importantes para a consecução de seus legítimos interesses.

Sem mudar o regime de cumprimento da prisão, a princípio suspende-se o cumprimento das ordens de prisão, como medida preventiva à transmissão do covid-19.

Superada a crise a prisão pode voltar a ser cumprida pelo período restante. Se a prisão foi decretada, mas ainda não iniciou, seu cumprimento somente poderá ocorrer após o fim da pandemia.

Suspensa a ordem de prisão, como fica o processo?

Considerando que, apesar da determinação de suspensão dos prazos processuais na maior parte dos Tribunais, o Poder Judiciário está trabalhando remotamente, então, para que o processo não fique paralisado por completo, aguardando o encerramento das consequências da pandemia, a respeito do item 4, acima, soa extremamente prudente uma autorização legal, transitória e temporária para que ocorram atos processuais de natureza expropriatória de bens, sem a necessidade de conversão do procedimento que segue pelo rito da prisão para o rito da penhora, com fundamento no Poder Geral de Cautela.

Especificamente em relação a esta questão processual, primeiro ponto a se considerar e que justifica tal preocupação é que a execução de alimentos ou o cumprimento de sentença que foram iniciados com a opção pelo procedimento mais gravoso da prisão do devedor – art. 528, §3º e §7º do CPC – não admite a prática de atos expropriatórios.

Prisão e penhora de bens no mesmo procedimento não são admitidos via de regra.

A esse respeito, a título de exemplo, veja o que diz o seguinte julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução de alimentos. Decisão que indeferiu o pedido de penhora dos ativos financeiros do genitor. Impossibilidade. Inconformismo do alimentando. Rito processual da prisão civil. Incompatibilidade com a medida expropriatória requerida. Decisão mantida. Recurso improvido.13 – Destaques acrescidos

No voto proferido no referido julgado, a E. Relatora destaca expressamente a incompatibilidade dos procedimentos prisão x penhora:

Isto porque, cabe ao credor optar pela escolha de um dos ritos (expropriatório ou da prisão civil), sendo vedada, em qualquer caso, a cumulação, de modo que, uma vez considerada inócua a execução pelo rito da prisão (art. 528 do C.P.C.), pode optar por converter o rito para o expropriatório, previsto pelo artigo 523 do mesmo diploma, e requerer a penhora de bens do devedor. – Destaques acrescidos.

Ainda que se alegue que o posicionamento encontrado no acórdão citado não seja unânime na jurisprudência, não há como negar que existe necessidade de regulamentação, pois, caso contrário, os credores ficarão à mercê de entendimentos jurisprudenciais divergentes, o que se mostra pernicioso para a defesa de seus delicados e essenciais direitos.

Portanto, somente uma autorização proveniente da Lei para salvaguardar os interesses das partes poderia permitir, ainda que de maneira excepcional e transitória, que o procedimento (execução de alimentos/cumprimento de sentença) prosseguisse com a realização de pesquisa/expropriação patrimonial enquanto durar a situação de crise, sem que isso implique em alteração da natureza do procedimento inicialmente escolhido pelo credor.

Segundo, considerando a excepcionalidade da situação, o referido projeto de lei pode, com fundamento no âmbito do Poder Geral de Cautela e da Razoável duração do Processo, autorizar que o credor de alimentos, sem a necessidade de alteração da natureza (“rito”) no procedimento, busque bens do devedor para satisfazer a dívida.

Com essa regulamentação, terminada a fase de crise, os cenários possíveis seriam:

1) Suspensa a ordem de prisão, o credor requereu a pesquisa de bens e nenhum bem foi encontrado: superada a pandemia, mediante requerimento do credor, o procedimento é restabelecido ao status quo, a prisão é restabelecida pelo magistrado e seguem os demais trâmites.

2) Se forem encontrados bens que satisfaçam apenas parcialmente a dívida: O credor então deverá decidir o futuro do processo:

2.1) requer em continuar pelo rito mais gravoso, caso em que a prisão será restabelecida e os bens/dinheiro atingidos são abatidos do valor da dívida e o procedimento segue pelo saldo;

2.2) requer a conversão do procedimento/rito da prisão para procedimento da penhora, partindo então para a intimação do devedor a respeito de tal condição e realização de demais atos expropriatórios.

3) Encontrados bens que satisfaçam integralmente a dívida: Com os bens devidamente constritos protegidos contra dilapidação, o magistrado então declara em definitivo a conversão do procedimento/rito para a regularização procedimental, intimando o devedor e os demais atos expropriatórios são concluídos.

A condição excepcional aqui proposta teria vigência pelo período transitório previsto no projeto, devendo ao final do prazo o Alimentando tomar umas das providências sugeridas acima.

Trata-se de norma de natureza procedimental, cuja competência para legislar é Federal, portanto, devidamente ajustado ao projeto de Lei em questão.

Como sugerido acima, a adoção de mecanismo procedimental excepcional de maneira transitória é justificada no Poder Geral de Cautela14 e na razoável duração do processo (art. 5º LXXVIII, Constituição Federal).

Além de se tratar de previsão transitória, o Poder Geral de Cautela autoriza o magistrado a adotar medidas a fim a de garantir a eficácia e utilidade do procedimento (que no caso é a satisfação da dívida) e além disso não permite a paralização do procedimento, garantindo com isso a observância da garantia da razoável duração do processo.

As medidas excepcionais acima propostas não extirpam do Alimentando o direito de buscar a melhor condição procedimental para a defesa de seus interesses, evitando com isso que sob a roupagem da pandemia do covid-19 milhares de credores de alimentos percam o mecanismo processual de coerção da prisão civil.

A medida ora sugerida também preserva a cláusula do due procces of law, uma vez que estão resguardados o amplo direito de defesa de todos os atores processuais.

Especificamente em relação do devedor de alimentos, este vai ter respeitado o cuidado em relação a saúde e ao mesmo tempo terá a sua disposição todos os mecanismos legais para defesa de seus interesses.

As ponderações acima tratam-se de uma maneira diferente de pensar a solução da questão da prisão do devedor de alimentos, a qual, além de garantir a observância das normas de saúde neste momento da pandemia, também respeita as prerrogativas e direito fundamentais do credor de alimentos neste momento de dificuldade.

5. Conclusão

Diante do cenário atual, no qual a crise de saúde impõe a todos os cidadãos brasileiros a adoção de medidas de restrição com a finalidade combater o avanço do covid-19, a preocupação do legislador com a prisão do devedor de alimentos se mostra salutar.

Além de se evitar que o covid-19 ingresse no estabelecimento onde os devedores de alimentos viriam a ser recolhidos, a medida também evita o fluxo contrário da doença.

Todavia, há um desbalanceamento entre a medida pretendida pelo legislador e os direitos do credor de alimentos.

A determinação de que a prisão seja cumprida no “regime domiciliar”, representa um abrandamento que acaba por normalizar o ato de dever alimentos.

Esse efeito é prejudicial aos interesses do credor, o qual depende do pagamento de alimentos para o suprimento de suas necessidades mais básicas.

Diante de tais grandezas – de um lado a pandemia do coronavirus, uma crise de saúde sem precedentes a da qual medidas enérgicas precisam ser tomadas e, de outro lado, a garantia do sustento dos beneficiários dos alimentos – há a necessidade de se pensar em uma saída balanceada que não desampare a nenhuma das matrizes.

A proposta aqui defendida não ignora os cuidados com aqueles que tiveram a prisão decretada em razão da dívida de alimentos, pois, considera a suspensão do cumprimento da ordem de prisão.

De outro lado, garante ao credor a possibilidade de continuar com os atos processuais, inclusive com a retomada da prisão, após a superação da crise.

Repetindo o que se disse nas alinhas acima, a proposta aqui tratada resume-se em:

1) Não mudar o regime de prisão pelo qual a prisão é cumprida;

2) Porém, suspender o cumprimento da ordem de prisão decretada, impedindo que ela seja cumprida durante a pandemia;

3) Superada a pandemia, caso o débito alimentar não tenha sido resolvido, o devedor se sujeitará à prisão pelo tempo restante;

4) E ainda, regulamentar quais atos processuais podem, ou não, serem realizados nessa fase excepcional em que a prisão estará suspensa, possibilitando, excepcionalmente nesta fase, a realização de expropriação patrimonial;

O conjunto de soluções acima apontadas, ao mesmo tempo que garante as medidas de prevenção em relação ao covid-19 – alinhados as recomendações de organizações de saúde nacionais e internacionais – não extirpa do credor de alimentos uma das ferramentas mais importantes para a consecução de seus legítimos interesses.

__________

1 A respeito da iniciativa do projeto. Acesso aos 7/4/2020.

2 O texto original e as alterações do PLS 1.179/2020 pode ser verificado no seguinte endereço eletrônico. Acesso aos 07/04/2020.

3 A manifestação pode ser conferida aqui. Acesso em 7/4/2020.

"§ 4º A prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado dos presos comuns".

5 "§ 2º Somente a comprovação de fato que gere a impossibilidade absoluta de pagar justificará o inadimplemento".

6 "§ 3º Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses".

7 "§ 5º O cumprimento da pena não exime o executado do pagamento das prestações vencidas e vincendas".

8 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso aos 7/4/2020.

9 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº 62 de 17 de março de 2020. Acesso aos 7/4/2020.

10 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº 62 de 17 de março de 2020. Acesso aos 07/04/2020.

11 BRASIL. Decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941. Acesso aos 07/04/2020.

12 Não é demais considerar que mesmo durante a quarentena, diversas categorias de profissionais continuam a exercer suas funções.

13 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO- TJSP - Agravo de Instrumento 2266273-79.2019.8.26.0000; Relator (a): Maria de Lourdes Lopez Gil; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 4ª Vara da Família e Sucessões; Data do Julgamento: 20/03/2020; Data de Registro: 20/3/2020. Acesso aos 8/4/2020.

14 O poder geral de cautela é corolário da garantia constitucional da tutela jurisdicional adequada, garantia fundamental estatuída no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.

__________

*Daniel Sanflorian Salvador é sócio do escritório Pupin, Malosso Antunes e Salvador Sociedade de Advogados.

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