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Sobre a constitucionalidade dos decretos 40.520 e 40.583/20, expedidos pelo governador do Distrito Federal

Tudo o que foi aqui posto, penso, é de se refletir, e o leitor bem poderá avaliar as premissas apresentadas acima e adotar sua respectiva conclusão, inclusive levando em conta se eventual restrição de atividades econômicas seria admissível apenas se imposta pelo Governo Federal.

16/4/2020

Considerada a declaração pela OMS do estado de pandemia decorrente da covid-19, o governo do Distrito Federal, conforme se lê nos “Considerandos” elencados no já revogado decreto 40.520, de 14.03.20, editou as primeiras restrições com relação à vedação do exercício de certas atividades, de modo a obrigar a população local a cumprir quarentena e isolamento social, medida que foi seguida por diversos outros governadores estaduais.

Tal decreto foi sucedido por uma série de outros decretos. Nesses decretos posteriores, as restrições de funcionamento de diversos setores da atividade econômica foram sendo ampliadas, até a edição do último e atual decreto, o de número 40.583, de 01.04.20, que contemplou a extensão temporal das restrições até 03.05.20 e, em contrapartida, flexibilizou o exercício e respectivo modo de exercício de algumas atividades econômicas no âmbito do Distrito Federal, de cunho essencial à comunidade.

Não se discute a finalidade louvável das medidas, principalmente dirigidas à tutela da saúde pública dos que habitam no território do Distrito Federal e à própria estrutura do sistema local de saúde. Não obstante, a questão em tela paira sobre a avaliação da constitucionalidade dos sucessivos decretos, especialmente a do primeiro e último decretos emitidos (40.520 e 40.583, de 2020), lembrando que à luz do direito administrativo-constitucional o administrador está limitado, em sua atuação, à constitucionalidade e legalidade estritas, tanto no aspecto formal, quanto no aspecto material.

O decreto 40.520/20, a despeito dos seus “Considerandos”, não abordou eventual regulamentação à lei geral emitida pela União Federal para tratar do tema (lei 13.979/20, de 06.02.20), que especialmente em seu artigo 3º fixou diretrizes para a decretação de isolamento e quarentena. Tal lei geral, diante do princípio federativo, decorre da inteligência contida no artigo 24, §1º, da Constituição Federal de 1988, que distribui a atuação de União, Estados e Distrito Federal quanto à competência concorrente para legislar sobre “defesa da saúde” (ver inciso XII do mesmo artigo 24, com tal competência material).

A lei 13.979/20, expedida após processamento de rígido processo legislativo, com participação do Parlamento e Executivo Federais, contemplou regras, direitos e deveres para o enfrentamento da covid-19, conforme determina o figurino. Ademais, dos parágrafos quinto e sétimo de seu artigo 3º depreende-se que as medidas de isolamento e quarentena pressupõem a expedição de atos regulamentares pelo Ministério da Saúde, que para o caso são as portarias GM/MS 356 e 454, respectivamente publicadas no DOU de 11.03.20 e 20.03.20.

Não constou nessas portarias regras específicas para determinação de fechamento de estabelecimentos empresariais ou impedimento temporário do exercício de atividades econômicas como medidas paralelas ao isolamento e quarenta - o que já seria questionável nela assim constar -, pelo que parece ter o governador do Distrito Federal, na decretação das restrições econômicas, avançado demasiadamente além dos limites de sua competência constitucional, não obstante se possa argumentar que no campo da competência concorrente esteja o Distrito Federal autorizado a suplementar referida legislação federal, a meu juízo, por lei primária com equivalente processo legislativo ordinário, não diretamente por decreto local. E idêntica lógica vale para o caso de a atuação ter ocorrido como se o DF fosse município, conforme artigo 30, incisos I e II, da CF/88.

A leitura do fundamento da lei orgânica do DF utilizado pelo governador para editar o decreto 40.520/20 indica que fora adotado o artigo 100, incisos VII e XXVI, do referido estatuto jurídico local. O inciso VII trata, no que importa neste artigo, de competência para regulamentar a execução de leis primárias, e o inciso XXVI trata de competência do governador para a prática geral de atos de administração local.

Dúvida que se estabelece, nesse caso, é: qual lei primária foi regulamentada pelo governador do DF? E, se se trata de ato administrativo de efeitos concretos, seria o decreto “autônomo” do governador o remédio jurídico mais apropriado para o caso, contemplando uma gama de restrições econômicas/empresariais sequer verificáveis em estados excepcionais, tais como em Intervenção Federal, Estado de Defesa e Estado de Sítio? Ficam estas indagações para as devidas reflexões do leitor do presente artigo...

Ademais, ainda que houvesse a autorização primária em lei local estrita e suplementar do DF para fechamento de estabelecimentos e impedimento de exercício de atividades econômicas, tal medida seria juridicamente questionável, dada a natureza da matéria tratada e em razão também da livre ordem econômica, além de outras matérias constitucionais que aqui não serão debatidas, de forma a não abrir demasiadamente o objeto deste escrito.

O presente texto não discute em si a relevância e necessidade das medidas restritivas que foram adotadas pelo governo do DF, de quarentena e isolamento social, mas se o formato utilizado se amolda à Constituição Federal, à própria lei orgânica do DF e ao princípio do Pacto Federativo, lembrando que em casos constitucionais de exceção a União Federal é o ente político, digamos assim, centralizador das medidas, de modo a evitar lesões ao princípio federativo e estimular seu caráter cooperativo.

Tudo o que foi aqui posto, penso, é de se refletir, e o leitor bem poderá avaliar as premissas apresentadas acima e adotar sua respectiva conclusão, inclusive levando em conta se eventual restrição de atividades econômicas seria admissível apenas se imposta pelo Governo Federal, uma vez que essa questão demandaria a centralização de todos os assuntos correlatos à saúde na pessoa da União.

Em tempo, mais um elemento relevante às reflexões: o vigente decreto (40.583/20) sequer possui indicação de fundamentação na lei orgânica do DF, não ofertando ao administrado local a possibilidade de compreender qual seria o real fundamento jurídico que baseou sua expedição, qual seria seu fundamento de validade, ainda que se possa depreender que a fundamentação possa ser a mesma da adotada pelo decreto 40.520/20.

Tal constatação, por si só, poderia levar referido ato regulamentar à discussão pelas vias judiciais próprias sobre a ausência de sua fundamentação, não obstante, neste momento, possa não ser recebida com simpatia pela comunidade em geral.

Ainda neste “Em tempo”, o decreto atual nos leva a crer que possamos estar diante de um decreto autônomo, que se excedeu ao contemplar restrições típicas de normas primárias, sendo este mais um motivo para as reflexões a serem feitas por nossos respeitáveis leitores.

Por fim, não se deve esquecer que direitos sociais, tais como: saúde, lazer, trabalho e assistência aos desamparados, devem ser tratados pela Administração de forma harmônica, jamais devendo o Estado aceitar o tratamento específico de um ao arrepio dos demais. Assim deve caminhar a sociedade, em sincronia.

_________

*Alessandro Ajouz é advogado.

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