O CNJ - Conselho Nacional de Justiça aprovou, em 31 de março (ato normativo - 0002561-26.2020.2.00.0000), recomendações aos magistrados para orientá-los na flexibilização do cumprimento das diretrizes da lei 11.101/05, relativamente aos processos de recuperação judicial, tendo em vista a pandemia da covid-19.
A covid-19 é uma pandemia que vem afetando o desenvolvimento das atividades em nível global, impactando em todos os setores da sociedade, refletindo na esfera de atuação quer de pessoas físicas quer das empresas, sem escolher quem será prejudicado.
Neste cenário, não só os devedores, mas também os credores sofrem os impactos que decorrem das medidas restritivas e de isolamento social que vem sendo implantadas como uma das diversas formas de se tentar conter a evolução e a propagação do vírus.
Assim, as recomendações do CNJ devem ser interpretadas pelos juízes com o devido cuidado e a cautela necessária e esperada para se evitar que, de forma oportunista, possam vir a beneficiar indevidamente aqueles que, em momentos de crise como o decorrente da pandemia da covid-19, desvirtuam o objetivo das medidas urgentes editadas com o objetivo de salvaguardar a sociedade.
Alguns pontos das recomendações do CNJ merecem atenção especial, como a autorização da apresentação de plano de recuperação modificativo, na hipótese de "diminuição na capacidade de o devedor cumprir as obrigações a que está sujeito, em decorrência da pandemia da covid-19, incluindo a consideração, nos casos concretos, da ocorrência de força maior ou de caso fortuito antes de eventual declaração de falência" (art. 73, IV, da mesma lei).
A recomendação em análise teve o cuidado de deixar claro que a apresentação de plano modificativo é uma possibilidade, mas não um direito automático que possa ser reconhecido apenas porque o cenário atual é de expansão da pandemia. O texto é peremptório ao ressaltar a necessidade de que seja "comprovada" a diminuição na capacidade de cumprimento das obrigações, pelos devedores, em decorrência da pandemia da covid-19.
Abre-se aqui um parêntese para relembrar que eventual plano modificativo deve ser submetido aos credores, até porque é deles, reunidos em Assembleia Geral, a competência para deliberar sobre essa questão, como expressamente reconhecido na jurisprudência do STJ.
Recorde-se, por oportuno, que a Colenda Corte, nos termos da sua orientação jurisprudencial, consagrou o entendimento de que ‘‘a assembleia de credores é soberana em suas decisões quanto aos planos de recuperação judicial” (AgInt no REsp 1.830.656/SP, rel. ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 11.11.19, DJe 27.11.19)
Aliás, a competência da Assembleia Geral de credores, para deliberar sobre o plano de recuperação judicial e eventual proposta de sua modificação, decorre da lei 11.101/05 (art. 35, I, “a”) e, portanto, não pode ser afastada por ato normativo do CNJ.
Com efeito, consta expressamente no art. 4º, da proposta de recomendação apresentada ao CNJ pelo seu conselheiro Henrique Ávila, que pode - e não que deve - ser autorizada a apresentação de plano modificativo pelo empresário que "comprove que sua capacidade de cumprimento das obrigações foi diminuída pela crise decorrente da pandemia de covid-19 e desde que estivesse adimplindo com as obrigações assumidas no plano vigente até 20 de março de 2020".
Trata-se de um binômio. Não basta ao empresário comprovar a diminuição na capacidade de cumprimento das obrigações em decorrência da pandemia, para buscar a modificação do plano. Essa possibilidade também só é admissível se as obrigações a que se havia sujeitado estavam em dia. Vale dizer, a proposta e a recomendação são direcionadas aos que foram real e efetivamente impactados pelos efeitos decorrentes da virose pandêmica.
Esse é um ponto muito importante a ser enfrentado pelos juízes com cautela redobrada, de modo a se evitar que aproveitadores possam lançar mão de pedidos de modificação dos planos de recuperação judicial, com o objetivo de se beneficiar e impingir aos credores prejuízos ainda maiores do que os já suportados em decorrência, via de regra, de haircuts expressivos, carências elásticas, extirpação de garantias e prazos de pagamento infindáveis entre outras medidas que reduzem vertiginosamente os créditos submetidos ao processo recuperacional.
A mesma prudência deve ser adotada pelos magistrados ao analisar os pedidos dos credores com o objetivo de atingir o patrimônio dos devedores que pediram recuperação judicial, mas inadimpliram as suas obrigações durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6/20. A comprovação da impossibilidade de cumprimento das obrigações pelos devedores deve ser real e amparada em provas sólidas e capazes de sustentá-la.
Os administradores judiciais também devem ficar atentos e alertar os juízes na hipótese de se depararem com planos modificativos oportunistas. O art. 22, da lei 11.101/05 dispõe que compete ao administrador judicial, na recuperação judicial (inciso II), “fiscalizar as atividades do devedor e o cumprimento do plano de recuperação judicial” (alínea “a”) e, ainda, “requerer a falência no caso de descumprimento de obrigação assumida no plano de recuperação” (alínea “b”).
Se não houver a comprovação cabal pelos devedores de que a capacidade de cumprimento das obrigações a que se sujeitaram foi realmente afetada, e se os credores não aceitarem a proposta de modificação do plano de recuperação judicial, os juízes não poderão acolhê-la.
Ao contrário, os magistrados estão autorizados a deferir os pleitos dos credores que visem a prática atos executivos de natureza patrimonial em face dos inadimplentes e, se for o caso, determinar a convolação da recuperação judicial em falência nas hipóteses de descumprimento das obrigações assumidas no plano (lei 11.101/05, art. 61, §1º).
O momento atual de pandemia é de enormes consequências e sacrifícios para todos, quem quer que seja. O papel do Poder Judiciário, portanto, é o de pacificação dos conflitos e, como de hábito, os juízes devem desempenhar o seu ofício com a sensibilidade suficiente para acomodar com justiça os interesses dos envolvidos nos processos judiciais, notadamente nos recuperacionais que refletem na esfera de deveres e direitos não só de devedores e credores, mas dos mercados em que estão inseridos, preservando-se a segurança jurídica.
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