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Disputa entre entes federativos desarticula os poderes no combate à pandemia

As incompatibilidades entre as normas de prevenção ou tratamento da doença geram questionamentos jurídicos sobre a competência dos entes para regular e prover a saúde pública.

9/4/2020

O avanço mundial da covid-19 tornou necessária a adoção de uma série de medidas extraordinárias de prevenção e tratamento da doença "pandemiológica" no Brasil. A União e os demais entes federativos adotaram medidas que entenderam necessárias – as quais, por vezes, entram em contradição, total ou parcial, umas com as outras.

As incompatibilidades entre as normas de prevenção ou tratamento da doença geram questionamentos jurídicos sobre a competência dos entes para regular e prover a saúde pública, que podem ocorrer no plano de atos e medidas adotadas pelo Poder Executivo (competência material comum) ou entre leis federais ou estaduais (competência legislativa concorrente).

Competência Executiva. A Constituição Federal ("CF") é expressa em seu artigo 23, II, que prevê a competência comum dos entes federativos para, paralelamente e em pé de igualdade, "cuidar da saúde e assistência pública". Os governos estaduais e municipais não só podem como devem atender às peculiaridades regionais e locais e, sendo o caso, adotar medidas adicionais àquelas do governo federal – tal como São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal e outros estados vêm realizando.

Nesse sentido, o ministro Marco Aurélio decidiu, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.341, que a MP 926/2020 do Governo Federal (sobre providências adotadas para combater a pandemia do novo coronavírus) não afasta a competência concorrente na tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios.

Competência Legislativa. O artigo 24, XII, da CF, prevê a competência legislativa concorrente sobre a "defesa da saúde". Aqui há ressalva no texto constitucional de que a competência da União é limitada à produção legislativa de normas gerais. E quando essa competência é exercida pela União, a competência suplementar dos Estados não é suprimida (parágrafos 1o e 2o do artigo 24 da CF). Em país de dimensão continental, com diferenças de infraestrutura, sociais, econômicas e culturais, é evidente a reserva aos estados do poder legiferante para questões específicas e particulares no modo de enfrentar a pandemia.

Municípios. A questão não é simples porque ainda há a competência (prevalentemente) executiva dos Municípios de "prestar serviços de atendimento à saúde da população", como estabelece o artigo 30, VII, da CF, dentro das especificidades de cada município e de seus distritos com diferentes concentrações populacionais, rede hospitalar, mobilidade urbana, condições de saneamento, acesso a alimentos e medicamentos, etc.

A situação se torna mais complexa quando (i) atos do Poder Executivo ou (ii) leis que tratem de questões de saúde pública "como objetivo final" afetam ou normatizam de modo direto ou indireto questões como transporte (interestadual, intermunicipal ou municipal), finanças, tributos e obrigações assessórias, acesso a água, saneamento, produção, consumo, sanções por descumprimento de normas, etc.

Dependendo da área de gestão afetada ou de lei específica pode emergir novo conflito em que haja uma competência privativa da União, seja de ordem executiva (material), seja de natureza legislativa, de que tratam os artigos 21 e 22 da CF.

Ou pode surgir nova questão de competência comum ou concorrente entre União e estados (artigos 23 e 24 da CF) em área que extrapola a saúde pública, sobre a qual os Tribunais Estaduais ou Superiores têm firmado jurisprudência ora garantindo maior autonomia executiva ou legislativa aos Estados, ora reconhecendo que as normas gerais da União são prevalentes, do ponto de vista prático, sobre quase todos os aspectos de uma matéria ou assunto.

Não faltam discussões no congresso e no Judiciário, anteriores à crise pandêmica, que envolvem questões sensíveis do pacto federativo, as quais potencialmente serão acirradas ao longo do enfrentamento e após o fim desta crise, que se deseja a mais breve possível.

Além dessas variáveis fáticas e jurídico-normativas, deve ser levada em conta a situação extraordinária atual que, ao regular os efeitos de determinado ato ou lei no tempo, permite convalidar atos praticados sob a vigência de uma norma executiva ou legal, ainda que posteriormente venham a ser declarados nulos ou inválidos (em virtude de conflitos de atos de diferentes poderes ou de conflitos entre leis de diferentes entes da federação).

Competência é o limite do poder, ou melhor, do poder-dever para, no caso, enfrentar uma crise pandêmica sem precedentes. Os limites do poder sempre estarão na pauta de qualquer crise.

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*Carlos Eduardo Konder Lins e Silva é sócio do escritório Domingues Cintra Napoleão Lins e Silva Advogados.

*Aluizio Napoleão é sócio do escritório Domingues Cintra Napoleão Lins e Silva Advogados.

*Gisela de Lamare é associada do escritório Domingues Cintra Napoleão Lins e Silva Advogados.

 

 

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