É de conhecimento geral a rápida propagação global do covid-19. Em janeiro do corrente ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto do covid-19 constituía Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). No dia 11 de março, a OMS reclassificou o estado de contaminação como pandemia, retratando a rápida disseminação geográfica global do vírus.
Diante da gravidade do covid-19 e sua capacidade de fácil proliferação, a OMS recomendou, para controle da pandemia, a restrição de circulação da população e isolamento social.
No Brasil, o Ministério da Saúde declarou emergência em saúde pública de importância nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana pelo covid-19, por meio da portaria 188/GM/MS, de 4 de fevereiro de 2020.
Em 6 de fevereiro de 2020, foi editada a lei federal 13.979, que dispôs sobre medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional, decorrente do covid-19, objetivando a proteção da coletividade, que previu, entre outras providências, o isolamento social, a quarentena, a realização compulsória de exames, testes e coletas de material, bem como a dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento da emergência.
Em razão do agravamento da crise de saúde, o Governo Federal reconheceu a necessidade de declarar estado de calamidade pública, encaminhando a mensagem 93 ao Congresso Nacional. A mensagem ensejou o projeto de decreto legislativo 88/2020 que foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 18 de março de 2020 e pelo Senado Federal em 20 de março de 2020, resultando na promulgação do decreto legislativo 6/2020, publicado na edição extraordinária do D.O. da União no mesmo dia.
A pandemia do covid-19 tem causado impactos brutais na economia mundial, com horizonte de recessão somente visto por ocasião das últimas grandes guerras. Evidente que, neste contexto, os contratos administrativos serão profundamente impactados.
Nos contratos administrativos em vigor, notadamente nos contratos de prestação de serviços, cogitam-se de algumas opções como a (i) a manutenção das atividades que podem continuar sendo prestadas remotamente; (ii) a possibilidade de supressão unilateral de 25% do valor do contrato, a teor do disposto no art. 65, § 1° da lei 8.666/93, ou mesmo acima deste limite por acordo entre as partes (§ 2° do art. 65 da lei 8.666/93); (iii) férias coletivas e outras soluções no campo do Direito do Trabalho; e (iv) a suspensão da execução dos contratos administrativos em andamento, mantendo-se o pagamento dos empregados, durante a suspensão da execução do contrato para evitar desmobilizações em grande escala, que podem ter efeitos deletérios para a Administração Pública.
Pretende o presente artigo se ocupar da última medida, a saber, identificar os contornos jurídicos da suspensão da execução do contrato com a manutenção do pagamento, medida adotada pelo Estado do Rio de Janeiro, que regulamentou o tema por intermédio do decreto 47.004, de 27 de março de 2020 e pelo Município de São Paulo, por intermédio da lei 17.335, de 27 de março de 2020.
O artigo 78, XIV da lei 8.666/1993, que prevê a possibilidade de suspensão dos contratos, tem a seguinte redação:
Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
(...)
XIV - a suspensão de sua execução, por ordem escrita da Administração, por prazo superior a 120 (cento e vinte) dias, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, ou ainda por repetidas suspensões que totalizem o mesmo prazo, independentemente do pagamento obrigatório de indenizações pelas sucessivas e contratualmente imprevistas desmobilizações e mobilizações e outras previstas, assegurado ao contratado, nesses casos, o direito de optar pela suspensão do cumprimento das obrigações assumidas até que seja normalizada a situação;
Possível extrair do referido dispositivo legal que: (i) a suspensão é medida unilateral da Administração Pública; (ii) deve ser formalizada por ordem escrita da Administração Pública contratante; (iii) o prazo máximo da suspensão unilateral é de 120 (cento e vinte) dias; (iv) se o prazo for superior a 120 dias o contratado tem direito a pleitear a rescisão do contrato; (v) o prazo pode ser superior a 120 dias em casos de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra; (vi) a suspensão não exonera a Administração do pagamento obrigatório de indenizações pelas sucessivas desmobilizações e mobilizações não previstas no contrato; e (vii) o contratado pode optar pela suspensão do cumprimento das suas obrigações até que seja normalizada a situação.
Note-se que o contrato administrativo permanece em vigor. O que se suspende é a execução das obrigações nele previstas, com a Administração Contratante ficando responsável pelo pagamento de indenizações decorrentes das imprevistas desmobilizações e mobilizações.
Assim, se o contratado for obrigado a demitir e recontratar empregados em função da suspensão da execução do contrato, determina o inciso XIV, do art. 78 da lei 8.666/93 que caberá à Administração Pública contratante indenizar o contratado pelos prejuízos decorrentes da sua medida unilateral.
Diante da pandemia do covid-19, situação fática extraordinária, diversos administradores públicos passaram a cogitar uma solução inovadora, que é a suspensão da execução das obrigações do contratado com manutenção de parte do pagamento pela Administração Contratante, suficiente para a remuneração dos empregados terceirizados, evitando uma desmobilização geral e posterior mobilização de pessoal, em um momento de incerteza quanto ao tempo necessário para a retomada das atividades presenciais nas repartições públicas.
Além disso, os administradores públicos têm considerado, como efeito indireto positivo da manutenção do pagamento de empregados terceirizados, evitar demissão em massa em um momento de crise aguda como o que ora se vivencia, sendo indesejável que o Poder Público aja como agente potencializador do desemprego, em meio a uma crise extraordinária e profunda, mas temporária.
Efetivamente, o covid-19 acarreta uma inédita paralisação temporária de atividades em todos os órgãos públicos cujo atendimento presencial não seja classificado como serviço essencial para a preservação de vidas.
É previsível que uma decisão pela suspensão da execução dos contratos, com corte do pagamento dos empregados, gere demissões em massa e necessidade de recontratação para a retomada da execução do contrato, com custo a ser arcado pelas entidades públicas contratantes e o risco de promover uma geral e profunda desorganização nos contratos administrativos de prestação de serviços.
Não se pode desconsiderar que a súbita desestruturação da cadeia de fornecedores de serviços e a perda maciça de empregados terceirizados, por um evento gravíssimo, mas passageiro (a pandemia do covid-19) pode inviabilizar a imediata retomada dos serviços públicos e administrativos presenciais, quando do relaxamento das medidas de isolamento social, com base em orientações da Organização Mundial da Saúde – OMS e das autoridades do país.
Parece razoável a preocupação de que a Administração Pública esteja preparada para a retomada da prestação presencial de serviços públicos imediatamente após o relaxamento das medidas de isolamento social. Em seu processo decisório, o gestor público deve sopesar esse fator, com vistas ao atendimento do princípio da eficiência administrativa.
Cabe ao gestor atestar avaliar, no órgão ou entidade pública administrado, quais seriam as consequências da suspensão dos contratos com desmobilização da mão de obra, o custo de ter que indenizar desmobilizações e futuras mobilizações, além do risco de desestruturação prolongada das atividades administrativas, no caso de eventual extinção dos contratos.
A avaliação das consequências pelo gestor público é determinada pelo artigo 20 da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, incluído pela lei 13.655/18, segundo o qual "nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão."
Inegável, ainda, a relevância da regra do artigo 22 da LINDB, segundo o qual "na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados". As dificuldades que se vivencia no presente momento são bastante complexas, gerando problemas reais para os gestores na tomada de decisão.
O não pagamento às empresas terceirizadas durante o período de restrição a circulação de pessoas, por todos os órgãos e entidades públicas, poderá acarretar - para além do agravamento do problema social, com demissões em massa - a extinção concomitante de vários contratos administrativos, gerando a necessidade de a Administração Pública realizar repentinamente, quando do relaxamento das medidas de isolamento social, diversas licitações ou mesmo contratações diretas, com risco para a retomada do atendimento presencial nos serviços públicos, em um momento de profunda necessidade da população, dada a provável recessão econômica e as demais consequências que se avizinham com a pandemia.
Eventual decisão de suspensão da execução dos contratos, com a manutenção do pagamentos dos empregados deve, - se adotada - ser considerada uma solução transitória e excepcional, a ser objeto de constante reavaliação pelos gestores, dada a absoluta impossibilidade de se prever como a pandemia vai evoluir e os efeitos das medidas governamentais que estão sendo adotadas para contê-la.
Além disso, para garantir a efetividade da medida, o ente contratante deve procurar obter alguma garantia de que a remuneração será repassada aos empregados terceirizados. Não se pode admitir que eventual sociedade empresária contratada possa reter o pagamento para atender a outras despesas, não repassando os valores devidos aos empregados, já que o objetivo principal que se vislumbra é a manutenção temporária da mobilização da mão de obra terceirizada. Recomendável, portanto, que, se a decisão for pela manutenção dos pagamentos, que se exija da contratada assunção formal desse compromisso via termo aditivo.
A despeito de ser juridicamente viável, a medida cogitada não encontra no contrato a melhor técnica para a tomada de decisão. Sendo um problema geral da Administração Pública, não individual de um órgão ou entidade pública, merece uma solução uniforme e abrangente.
Deixar ao Administrador Público de cada órgão o ônus de tomar decisões sobre a questão dos terceirizados, sem embasamento em premissas uniformes sobre (i) as perspectivas de controle ou agravamento da situação da saúde pública, (ii) a expectativa de tempo para a retomada da prestação presencial dos serviços públicos e (iii) a repartição social dos custos impostos pelo covid-19; não é compatível com a segurança jurídica imposta à atuação da Administração Pública pela Constituição Federal.
É importante uma solução por via normativa, que indique uma orientação geral para a repactuação dos contratos de prestação de serviços, já que o mesmo problema acomete os gestores de todos os órgãos e entidades públicos. Não seria necessariamente uma fórmula única, haja vista que cada contrato administrativo pode apresentar uma solução diferente, mas uma disciplina normativa que oriente o Administrador Público quanto aos critérios serem observados em sua decisão sobre a suspensão da execução dos contratos e as parcelas da remuneração a serem mantidas.
Nessa linha, sem prejuízo de medidas imediatas, mas provisórias, a serem adotadas pelos gestores de órgãos e entidades públicas em relação a cada contrato administrativo, o Chefe do Poder Executivo Federal, Estadual ou Municipal poderá centralizar e uniformizar a solução por meio da edição de Decreto, pois a essa autoridade cabe exercer a direção superior da Administração Pública da respectiva entidade federada, a teor do disposto no art. 84, II da Constituição Federal, artigo que se refere ao Presidente da República, mas se aplica também, por simetria, a Governadores e Prefeitos Municipais.
Foi isso que ocorreu no Estado do Rio de Janeiro, que editou o decreto 47.004, de 27 de março de 2020, disciplinando as condições para a suspensão da execução dos contratos de prestação de serviços com manutenção de pagamento de empregados.
O encaminhamento da solução via decreto não exclui, de modo algum, a firme recomendação de que a matéria seja endereçada por lei (ou no plano federal por Medida Provisória), como ocorreu no Município de São Paulo, que promulgou a lei 17.335, de 27 de março de 2020.
Ao fim e ao cabo, a decisão que ora se cogita envolve a alocação de escassos recursos públicos em momento de crise, com a preservação da continuidade das relações jurídicas com empresas fornecedoras de mão obra terceirizada, viabilizando a imediata retomada dos serviços públicos prestados presencialmente, após o relaxamento das medidas restritiva de circulação de pessoas. Essa é uma decisão que deve ser partilhada com o Poder Legislativo, especialmente no cenário de uma crise de proporções gigantescas.
Tais atos normativos podem contemplar as variadas possibilidades legais à disposição do gestor, tais como a revisão do contrato, a alteração unilateral supressiva e os balizamentos concretos para a sua suspensão provisória, inclusive com soluções no campo do Direito do Trabalho. Existem alternativas, sendo a suspensão da execução do contrato - com a manutenção do pagamento - uma das opções que se apresentam viáveis dadas as circunstâncias de excepcionalidade que decorrem da pandemia.
No contexto da pandemia do covid-19, os gestores públicos e os poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) não devem deixar de considerar o risco de uma abrupta e generalizada desorganização da gestão dos contratos administrativos de serviços, que poderá inviabilizar a pronta retomada da prestação de vários serviços públicos ao final da pandemia, que não se sabe quanto tempo durará. Um verdadeiro shutdown administrativo.
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*Flavio Amaral Garcia é procurador do Estado do Rio de Janeiro. Sócio do escritório Juruena e Associados. Professor de Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas.
*Henrique Bastos Rocha é procurador do Estado do Rio de Janeiro. Sócio do escritório Juruena e Associados. Ex-diretor Jurídico do BNDES.