O "grito dos excluídos", tradicionalmente conhecido como uma manifestação popular em defesa de uma sociedade justa e inclusiva, teve seu significado transmutado entre os prédios de Copacabana. Aqui, o grito dos "excluídos", ou melhor, dos socialmente isolados, nada teve de solidário e fraterno.
Na última semana, durante o rotineiro e pontual "panelaço", ecoou por essas ruas, a poucas janelas das minhas, uma voz que dizia: "eu amo a liberdade, eu quero sair de casa e trabalhar!". Talvez – ou até mais do que talvez – fomentada pelas declarações do sr. presidente da República, essa moradora do bairro bradou, em alto e bom som, o seu direito à livre locomoção, que, a seu ver, estaria acima dos outros tantos interesses em jogo.
Mesmo compadecida da angústia dessa vizinha, tenho que discordar de suas premissas e conclusões. Diante dessa pandemia que nos assola, é notória a necessidade das medidas restritivas que vêm sendo adotadas pelos governos estatuais e municipais, na tentativa de conter a propagação do vírus e evitar o colapso do nosso já fragilizado sistema público de saúde.
Analisando esse episódio sob uma perspectiva constitucional, sabe-se que não há, no sistema jurídico brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto. Nesse sentido, como bem destaca Daniel Sarmento1, "apesar da relevância ímpar que desempenham nas ordens jurídicas democráticas, os direitos fundamentais não são absolutos. A necessidade de proteção de outros bens jurídicos diversos, também revestidos de envergadura constitucional, pode justificar restrições aos direitos fundamentais."
Na atual situação de calamidade pública, em que o número de vítimas cresce com o passar dos dias, não há dúvidas de que, numa ponderação entre os direitos fundamentais em conflito, a solução não pode ser outra daquela em que se prestigia o direito à vida e à saúde em detrimento do tão clamado direito de ir e vir.
Pois bem, nesse momento excepcional, o importante é respeitarmos as restrições de isolamento e quarentena, definidas no interesse de toda a coletividade. Façamos isso por nós, pelos nossos vizinhos e, especialmente, por aqueles que não têm esse mesmo privilégio. Como já escreveu Clarisse Lispector, "quem caminha sozinho pode até chegar mais rápido, mas aquele que vai acompanhado, com certeza vai mais longe".
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1 SARMENTO, Daniel. GALDINO, Flávio. Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 293.
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*Ana Caroline dos S. Accioli é advogada do Ulhôa Canto Advogados.