Em 01 de abril de 2020 o presidente Jair Bolsonaro editou a medida provisória (MPV) 936/20 a qual instituiu o programa emergencial de manutenção de emprego e renda. Dentre as medidas elencadas encontra-se uma das mais controversas, qual seja, a possibilidade de a redução proporcional de jornada de trabalho e de salários via acordo individual.
Com efeito, assim dispõe o art. 7º, caput e incisos I e II da medida provisória:
Art. 7º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregador poderá acordar a redução proporcional da jornada de trabalho e de salário de seus empregados, por até noventa dias, observados os seguintes requisitos:
I - preservação do valor do salário-hora de trabalho;
II - pactuação por acordo individual escrito entre empregador e empregado, que será encaminhado ao empregado com antecedência de, no mínimo, dois dias corridos; e
A partir de tal redação muito já se discute acerca da constitucionalidade de tal medida, isso porque a Constituição Federal vedaria expressamente tal possibilidade. Neste comenos, assim fixa a letra fria do art. 7º, VI, da Carta Magna:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;
Pela leitura e interpretação literal do estatuído no dispositivo constitucional acima transcrito pode-se chegar a à interpretação de haver uma inconstitucionalidade na redução de jornada com redução proporcional via acordo individual.
Por exemplo, a Associação Nacional de Magistrados Trabalhistas – ANAMATRA – já se pronunciou contrariamente à redução por acordo individual. Fundamenta sua irresignação não apenas o estabelecido na Constituição Federal mas naquilo que chama de imposição.
Assim se pronunciou Noemia Porto, presidente da ANAMATRA: Em momento de alta fragilidade, pelas incertezas sociais e econômicas, colocar pessoas com medo para negociarem sozinhas não é negociação. Será sempre imposição”1.
Com o devido respeito a tal posicionamento, não se mostra razoável entender que a hipossuficiência do trabalhador combinada com uma interpretação literal da Constituição Federal deva levar à invalidade do art. 7º, II, da MPV 936/20.
Primeiramente é importante levar em consideração que tal como descrito na medida provisória a redução salarial é, em verdade fictícia. Assim o é porquanto uma vez reduzida a jornada de trabalho e mantendo-se o valor do salário hora não há falar em redução salarial.
Ademais, também e preciso ter em vista uma questão de impossibilidades físicas e práticas. Caso fosse exigida uma negociação sindical para todos que desejem a redução de jornada com redução salarial, isso por obvio demandará não apenas muito tempo como uma onipresença dos sindicatos de trabalhadores.
Por exemplo, um sindicato de professores ou de comerciários tem, numa capital estadual milhares de empresas para negociar. Se for considerado que uma negociação leve apenas metade de um dia, levar-se-ia mais de um ano para negociar com todos.
Mais ainda, a proibição de aglomeração de pessoas por conta da pandemia do coronavírus tornaria praticamente inviável a realização de tantas assembleias necessárias para a aprovação do negociado pelo sindicato.
Ou seja, fatalmente se teria uma série de empresas falidas e trabalhadores desempregados. Será que tal consequência seria saudável a ambos? Logicamente que não.
Não apenas seria temerário financeiramente, mas também em termos de saúde, afinal a medida provisória também prevê a manutenção dos demais benefícios, principalmente o plano de saúde.
De nada serve o argumento de que a Justiça do Trabalho poderia determinar a reintegração dos empregados desligados. É cediço de todos que empresa fechada não pode reintegrar pelo simples fato de não mais existir.
Não se deve, outrossim, esquecer-se de que não existem apenas empresas grandes e saudáveis. Segundo dados do Sebrae no Brasil, 99,1% do ramo é composto por pequenas e micro empresas, as quais respondem por 52,2% dos empregos.2
E, conforme muito bem pontuado por Carlos Melles – Diretor Presidente do Sebrae – "Nas crises, perder gente na micro e pequena empresa é pior do que na média e, sobretudo, na grande empresa. Então, os pequenos negócios têm essa característica, eles contratam quando precisam e praticamente não dispensam. Até porque uma dispensa numa grande empresa é só mais uma, mas numa pequena empresa a demissão gera um desfalque"3.
O país está em crise? Sim, e não apenas o Brasil, mas o mundo todo em face da pandemia do coronavírus. Isso é fato público e notório. No Brasil, o comércio está fechado? Sim, em praticamente todo território nacional as necessárias medidas de isolamento social e confinamento estão exigindo tal atitude por parte dos governos estaduais e federais.
Para se ter uma ideia do cenário atual, em 20.03.20 – quando se imaginava que o fechamento se lojas, shoppings, bares e restaurantes duraria até final de abril – representantes da Associação Brasileira das Lojas Satélites (Ablos), e a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), já traziam uma estimativa de chegar ao número de 5 milhões de desempregados no período4.
Impende relembrar que as lojas satélites são apenas as maiores lojas dos shoppings. Já daí se mostra extremamente preocupante o cenário de desemprego que se desenha até o fim da malfadada pandemia.
Mais ainda, conforme informado na reportagem da Carta Capital5, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) traz uma previsão 25 milhões de pessoas despedidas em todo o mundo por conta da situação atualmente vivenciada. Releva informar que antes da pandemia a previsão era de 2,5 milhões de desligamentos. Ou seja, a expectativa é de um aumento de 900%
Ainda segundo a última reportagem acima citada, as centrais sindicais, enviaram documento ao Congresso e Governo Federal pugnando por uma garantia de estabilidade no emprego durante a crise e ampliação do seguro-desemprego.
E não é só. Segundo reportagem do El País a Fundação Getúlio Vargas fez uma previsão pela qual a economia brasileira poderá ter contração de 4,4% em 2020, com riscos de a atividade ainda sentir efeitos negativos “significativos” até 2023.6
Em vista do cenário atual, como manter empregos sem faturamento e, mais ainda, sem previsão do fim da pandemia num futuro próximo? Como se vê, o país está em uma situação drástica. Como é de conhecimento comum, situações excepcionais demandam medidas excepcionais.
Não se pode, com todo respeito às posições contrárias, atribuir toda responsabilidade apenas aos empresários. Fazer isso significará olvidar a dignidade da pessoa humana, mesmo porque não se pode perder de vista que por traz das empresas – mormente as pequenas, individuais e microempresas – também existem pessoas, as quais também precisam prover a sua subsistência.
Significará também ferir de morte o desenvolvimento, a paz social, a harmonia social e o pleno emprego, afinal, não se pode considerar como pleno emprego aquele vá durar apenas mais um ou dois meses ante a falência das empresas. Não se pode olvidar que também são direitos constitucionalmente previstos.
Não é demais citar os valores que devem nortear as interpretações feitas conforme a Constituição Federal, quais sejam, aqueles apostos no preâmbulo da Carta Política, a seguir transcrito:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Será que com todas essas nuances e em vista da necessária colaboração de todos realmente a vontade do trabalhador estará comprometida? Nos parece que não. Em verdade o mais importante, neste momento é manter a vida e o emprego.
Nos dizeres de Gonet Branco, “O direito à vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes, não fosse assegurado o próprio direito estar vivo para usufruí-lo.”7
Inobstante tudo quanto já expendido, impende considerar ainda que a MPV 936/20 trouxe, em seu bojo, uma série de contrapartidas para a redução de jornada com redução proporcional do salário e manutenção dos demais benefícios:
1. Limitação expressa da redução permitida – 25%, 50% ou 70% - de forma que não fica ao livre arbítrio do empresário e trabalhador;
2. Necessidade de aceite do empregado;
3. Prazo máximo de 90 (noventa) dias ou até o fim do estado de calamidade pública, o que ocorrer primeiro;
4. Não são todos os trabalhadores que podem aderir à redução via acordo individual, conforme disposto no art. 12 da MPV 936/208;
5. Manutenção dos demais benefícios, tais como plano de saúde;
6. Obrigatoriedade de comunicação ao sindicato dos trabalhadores, o que possibilitará a fiscalização sindical do correto cumprimento do acordado;
7. O Governo Federal irá complementar a redução salarial através do pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, nos termos do art. 6º da medida provisória9;
8. Existe garantia provisória do emprego durante o prazo estipulado da redução de jornada e salário e após o seu encerramento, pelo mesmo tempo de sua duração.
E não se diga aqui que o justiça deve ser cega e não analisar todas as nuances e idiossincrasias da situação fática existente e, mais ainda, das consequências de uma declaração de inconstitucionalidade da Medida Provisória em destaque.
Vela trazer à colação os dizeres de Luiz Fux e Bruno Bodart10:
Toda determinação imposta pelas fontes do Direito influencia a forma como os indivíduos se comportam na busca pelos seus interesses. A alteração dos mandamentos legais gera modificações, intencionais ou não, na forma como recursos são alocados na sociedade. Essas mudanças decorrentes da configuração do ordenamento jurídico podem constituir um resultado socialmente indesejado ou que não confere a melhor satisfação possível ao interesse dos envolvidos.
Uma das principais características da análise econômica do Direito, portanto, é concentrar o exame das normas jurídicas exclusivamente nas suas consequências. Leis e decisões judiciais são importantes não por possuírem um valor em si, mas pelos efeitos causados em relação ao grupo que pretendem atingir ou que atingem não intencionalmente".
Logo, há de ser feita uma ponderação de valores constitucionais para melhor compreender a questão. O pleno emprego, como cediço de todos, não é ter emprego e renda.
Em verdade o pleno emprego somente acontece quando há um perfeito equilíbrio entre elevada produção de bens e serviços com alta demanda do mercado gerando, em consequência, alta demanda por mão de obra. Ou seja, quando inexiste desemprego cíclico ou de demanda insuficiente. Isso é clausula pétrea constitucional.
Noutro giro, harmonia social é o justo equilíbrio na sociedade, ou seja, é quando se observam os interesses de todos os envolvidos e os harmonizam de forma a que todos possam subsistir. Isso também é clausula pétrea constitucional.
Paulo Silvino Ribeiro11, interpretando Durkheim, afirma com bastante propriedade que a solidariedade social somente se alcança quando se tem o total entendimento de que a sociedade não é composta pela simples soma de homens, mas pela presença de uma consciência coletiva. É também nisso que deve se pautar o julgador ao decidir pela validade e aplicabilidade de determinado dispositivo legal.
Outrossim, o Ministro Celso de Mello do STF em voto basilar já ensinou que “Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto.” (STF - MS 23.452/RJ, Rel. min. Celso de Mello, DJ 12.05.00).
Desta maneira e uma vez considerados todos os valores constitucionais e sociais envolvidos na questão, logicamente que a ponderação de valores e a interpretação conforme a constituição leva à conclusão de constitucionalidade do acordo individual da redução de jornada e salário (com manutenção dos demais benefícios) prevista no art. 7º da MPV 936/20.
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1 Clique aqui acessado em 02.04.20
2 Clique aqui acessado em 02.04.20
3 Clique aqui acessado em 02.04.20
4 Clique aqui acessado em 03.04.20
5 Clique aqui acessado em 03.04.20
6 Clique aqui acessado em 03.04.20
7 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p.441
8 Art. 12. As medidas de que trata o art. 3º serão implementadas por meio de acordo individual ou de negociação coletiva aos empregados:
I - com salário igual ou inferior a R$ 3.135,00 (três mil cento e trinta e cinco reais); ou
II - portadores de diploma de nível superior e que percebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
Parágrafo único. Para os empregados não enquadrados no caput, as medidas previstas no art. 3º somente poderão ser estabelecidas por convenção ou acordo coletivo, ressalvada a redução de jornada de trabalho e de salário de vinte e cinco por cento, prevista na alínea “a” do inciso III do caput do art. 7º, que poderá ser pactuada por acordo individual.
9 Art. 6º O valor do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda terá como base de cálculo o valor mensal do seguro-desemprego a que o empregado teria direito, nos termos do art. 5º da Lei nº 7.998, de 1990, observadas as seguintes disposições:
I - na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário, será calculado aplicando-se sobre a base de cálculo o percentual da redução; e
II - na hipótese de suspensão temporária do contrato de trabalho, terá valor mensal:
a) equivalente a cem por cento do valor do seguro-desemprego a que o empregado teria direito, na hipótese prevista no caput do art. 8º; ou
b) equivalente a setenta por cento do seguro-desemprego a que o empregado teria direito, na hipótese prevista no § 5º do art. 8º.
§ 1º O Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda será pago ao empregado independentemente do:
I - cumprimento de qualquer período aquisitivo;
II - tempo de vínculo empregatício; e
III - número de salários recebidos.
§ 2º O Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda não será devido ao empregado que esteja:
I - ocupando cargo ou emprego público, cargo em comissão de livre nomeação e exoneração ou titular de mandato eletivo; ou
II - em gozo:
a) de benefício de prestação continuada do Regime Geral de Previdência Social ou dos Regimes Próprios de Previdência Social, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 124 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991;
b) do seguro-desemprego, em qualquer de suas modalidades; e
c) da bolsa de qualificação profissional de que trata o art. 2º-A da Lei n° 7.998, de 1990.
§ 3º O empregado com mais de um vínculo formal de emprego poderá receber cumulativamente um Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda para cada vínculo com redução proporcional de jornada de trabalho e de salário ou com suspensão temporária do contrato de trabalho, observado o valor previsto no caput do art. 18 e a condição prevista no § 3º do art. 18, se houver vínculo na modalidade de contrato intermitente, nos termos do disposto no § 3º do art. 443 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.
10 in Processo civil e análise econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 2
11 RIBEIRO, Paulo Silvino. "Émile Durkheim: os tipos de solidariedade social"; Brasil Escola. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 03 de abril de 2020.
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*Bruno Brandão Lima é advogado com especialização em Direito e Processo do Trabalho e atualmente associado ao escritório Mosello Lima Advocacia.