Aos 3/4/20 o Senado Federal aprovou o PL 1.179, com profundo impacto sobre as relações de direito privado e voltado, segundo a casa legislativa, para o enfrentamento da Pandemia do Vírus COVID-19, ou, melhor dizendo, para suas as consequências jurídicas e econômicas. O texto original do projeto recebeu 88 emendas e foi aprovado como substitutivo, com exceção da emenda 85, aprovada em destacado.
Agora o PL segue para a Câmara, onde poderá ser modificado e havendo alteração de conteúdo, deve retornar ao Senado.
Seguem algumas considerações rápidas sobre as alterações que o PL, caso aprovado, traria para o Direito Civil Brasileiro.
Essas alterações são de caráter transitório (art. 1º.), pois, como ficou sobredito, têm em mira as realidades decorrentes da pandemia e das medidas adotadas para enfrentá-las (qualquer que seja o juízo de valor que se faça sobre elas).
A primeira de significação para o Direito Civil está na suspensão ou impedimento (art. 3º.), conforme o caso, de todos os prazos prescricionais, inclusive a prescrição aquisitiva (art. 10) e também de prazos decadenciais até 30/10/20. Dita suspensão ou impedimento não se sobrepõe às hipóteses preexistentes e que continuam operando. Como dissemos, o mesmo tratamento aplica-se à usucapião. Esse sobrestamento dos prazos, sejam eles aquisitivos ou extintivos leva em conta a limitação prática de acesso à jurisdição durante o momento de maior gravidade da crise.
Alguns operadores do Direito vêm criticando a suspensão da usucapião, sob o argumento de que isso nada tem a ver com a pandemia. Mas a mesma razão de dificuldade de acesso à Justiça pelo credor (prescrição extintiva), em face do cenário de calamidade pública, também atinge o proprietário contra quem corre o prazo de aquisição pelo usucapiente (prescrição aquisitiva) e ela poderia se insurgir judicialmente.
Às pessoas jurídicas de direito privado é atribuída a faculdade de realizar assembleias e reuniões por meios eletrônicos, desde que garantida a autoria e a integridade do voto. Essa previsão leva em conta a possível omissão dos atos constitutivos nesse sentido, suprindo-a. Os condomínios, entes despersonalizados, também são autorizados a realizar assembleias virtuais (art. 12), ficando prorrogados os mandatos de síndico na impossibilidade. Pensamos que tal disposição deva ser estendida, por analogia, para os demais órgãos diretivos e de controle, como o subsíndico e o conselho fiscal (art. 14). Ressalva-se a prestação regular de contas pelo Síndico, o que gera a dúvida: tal prestação de contas deve ser dirigida aos condôminos mesmo na impossibilidade de realização da assembleia virtual? Por segurança, sugere-se que o síndico o faça, submetendo previamente à deliberação do Conselho Fiscal, dada a dubiedade da disposição.
No que se refere aos contratos, prevê-se que sua revisão, resilição ou resolução não terá efeitos retroativos (art. 6º). A disposição parece voltada para a revisão judicial. Quanto à resilição (extinção por iniciativa voluntária, unilateral ou bilateral), o projeto parece um tanto redundante, já que esse fato jurídico normalmente não é retroativo. No que se refere à resolução, os possíveis sentidos desse termo são a extinção por impossibilidade, por inadimplemento ou por onerosidade excessiva. A disposição, também nesse caso, é dirigida ao juiz (ou ao árbitro, se houver convenção), notadamente no último caso.
O art. 8º do Projeto suspende (sempre até 30/10/20) o exercício do direito de arrependimento do consumidor, nos serviços de entrega domiciliar de produtos perecíveis, de consumo imediato ou de medicamento. Compreende-se que o objetivo é o de preservar tais serviços “delivery” em um momento de comoção. Mas a constitucionalidade do dispositivo é duvidosa, por rebaixar o nível de defesa do consumidor em caso não previsto pela Constituição Federal (art. 170).
As liminares nas ações de despejo são suspensas quanto às ações ajuizadas a partir de 20/3/20. Não há outras disposições relativas à locação, nem específicas para a renegociação de aluguel no período convencionado como crítico – muito embora houvesse proposta inicial nesse sentido. Aplica-se à locação, como a quaisquer outros contratos, a disposição genérica de que eventual revisão não deve ter efeitos retroativos.
A prisão do alimentante remisso passa a ser exclusivamente em regime domiciliar, durante o intervalo crítico, o que se compreende porque já houvera a adoção dessa medida pelos tribunais, mesmo antes do Projeto.
Por fim, os síndicos de condomínio – para além da questão das assembleias virtuais – têm reforçado o poder de velar pelo uso racional das áreas comuns, evitando-se aglomerações, mas também – e de modo mais polêmico – o uso das áreas privativas, no que se refere a reuniões e festividades. Ressalvam-se as obras estruturais, benfeitorias necessárias e atendimentos médicos. Mas essa ressalva torna mais difícil compreender a regra: poderia o síndico vedar uma reunião limitada (por exemplo, de duas pessoas)?
Foram levantados aqui apenas certos aspectos de direito civil, advertindo-se ao leitor de que o Projeto ainda abrange outros tópicos de direito, como os societários e concorrenciais.
A conclusão – por ora – é a de que há impacto forte no direito material, mas, provavelmente, dito impacto será moderado no que se refere à prevenção de litígios. Em algumas passagens – como a revisão de contratos – o projeto aparenta, mesmo contra suas melhores intenções, insuflar o litígio. Mas essas considerações, atente-se, são feitas de imediato e no calor dos fatos, carecendo de comprovação empírica futura.
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*Adriano Ferriani e Erik Frederico Gramstrup são professores de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutores em Direito das Relações Sociais.