Migalhas de Peso

Resilição unilateral e contratos de longa duração: complexo equilíbrio em períodos extremos

Surge reflexão quanto ao risco de eventuais resilições em massa, como medida de austeridade, nos contratos, em especial os de consumo, que permitam a denúncia unilateral, seguidas da apresentação de novos planos contratuais ajustados à demanda de mercado e índices atualizados.

3/4/2020

Quem assiste aos noticiários e lida, como pode, com o isolamento, é hoje protagonista de um marco histórico. Desde o final de 2019, o mundo se depara com manchetes anunciando novo vírus que, em princípio, assolava a China e rapidamente expandiu-se, afetando diretamente as vidas e a economia de quase todos os países do globo, o COVID-19. Contudo, falar dos impactos e soluções jurídicas para todos os eventos que exsurgirão da crise que se instala é exercício complexo e, por vezes, ingrato. Não existem soluções prontas para consequências cujos resultados prospectamos, mas ainda desconhecemos a extensão.

Louvável é a atuação do Poder Legislativo, que tem agido com celeridade na apresentação e votação de projetos, no sentido de nortear as relações, contendo, com isso, a judicialização exacerbada combinada com prováveis conflitos de decisões em causas similares, vide o PL 1.179/20 do Senador Antonio Anastasia, já batizado por alguns de RJET - Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado - e, ressalvadas algumas adaptações ao seu conteúdo1, será importante instrumento regulamentador, caso venha a obter votação favorável nos próximos dias.

Excetuadas as disposições legais transitórias e demais medidas que venham a ser tomadas pelos poderes Executivo e Legislativo, parece que o sistema jurídico privado, em especial o Código Civil e Código de Defesa do Consumidor, são diplomas fortes com sistemática capaz de dar solução adequada à grande maioria dos problemas advindos do período extremo em que se vive.

Muito tem se falado sobre a possibilidade de resolução, revisão e renegociação de contratos com fundamento na imprevisão. Também há uma série de textos que bem esclarecem os regimes relativos ao caso fortuito e força maior, na esfera da responsabilidade civil contratual. Aliás, neste propósito, não existe histórico recente de produção científica e de debates tão ricos, como os que doutrinadores vem promovendo em redes sociais e páginas especializadas, no curso da pandemia.

Não há dúvidas de que a crise vai provocar recessão econômica e a alteração de muitos pactos em andamento, atingindo todos os setores. A compreensão do cenário exige cautela, porquanto, seja nas relações paritárias, seja nas relações de vulnerabilidade, todos os polos estarão lidando com o imprevisto e a excessiva onerosidade, o que impõe a ruptura com padrões maniqueístas e a busca pelo equilíbrio entre os valores patrimoniais e existenciais por trás dos negócios, somados ao dever de colaboração mútua entre os contratantes.

Nesta medida, surge reflexão quanto ao risco de eventuais resilições em massa, como medida de austeridade, nos contratos, em especial os de consumo, que permitam a denúncia unilateral, seguidas da apresentação de novos planos contratuais ajustados à demanda de mercado e índices atualizados. A questão ganha ares mais complexos, quando referidos negócios jurídicos refletem vínculos de longa duração.

Sem novidade, basta uma breve pesquisa na jurisprudência para verificar, que contratos de prestação de serviços médicos e hospitalares muitas vezes extinguem-se por via da resilição unilateral, mediante notificação prévia por parte da operadora, que rapidamente apresenta planos contratuais tidos por mais adequados, normalmente mais onerosos, ao consumidor, que se vê desamparado.

A conduta, por si só, não é abusiva. Não se trata aqui de questionar resilição unilateral. Ao contrário, é direito potestativo previsto no Código Civil, pelo qual o artigo 473 elucida:

Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte.

Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.

Assim, nos casos em que a denúncia é expressa ou implicitamente (contratos celebrados por tempo indeterminado) autorizada por lei, é direito potestativo do contratante, que não mais se interessa pela avença, de retirar-se do negócio.

Até aqui, tudo dentro da normalidade. Relações obrigacionais não podem se sustentar à sombra da perpetuidade e, não havendo interesse pela parte contratante, somado ao autorizativo legal, a extinção via resilição é medida justa e adequada.

Contudo, também não se pode olvidar das hipóteses nas quais o direito à denúncia unilateral merece cautela e isso implica, especialmente, situações em que o vínculo é de longa duração, também chamados contratos relacionais ou contratos cativos de longa duração. A propósito, Cláudia Lima Marques conceitua os contratos cativos de longa duração da seguinte forma: “relações contratuais que utilizam métodos de contratação de massa, para fornecer serviços especiais no mercado, criando relações jurídicas complexas de longa duração[..]”2

Nestes casos, por sua natureza, o contrato tende a prolongar-se por extenso período de tempo, criando entre as partes uma relação de confiança e esforços recíprocos em medidas talvez mais complexas e profundas do que verificadas em outras circunstâncias. Oportuno rememorar a colocação de Clóvis V. do Couto e Silva quando trata de relações obrigacionais duradouras e bem esclarece que por sua natureza, “o adimplemento sempre se renova sem que se manifeste alteração no débito. Essas obrigações são mais ricas numa dimensão: no tempo, no elemento duradouro, que se relaciona com a essência do dever de prestação”3.

Note que, somados ou não à disciplina das relações de consumo, os contratos relacionais, guardam consigo carga diferenciada no que toca os deveres gerais de boa-fé objetiva, razão pela qual, resilições unilaterais imotivadas podem incidir em abuso de direito em circunstâncias peculiares, chamando a incidência do artigo 187 do Código Civil.

Dada a pandemia, podem se mostrar abusivas, v. g., resilições que pretendam extinguir contratos de seguro de vida ou planos de saúde de pessoas que se enquadrem no rol dos pacientes de risco (idosos, diabéticos, cardíacos, portadores de doenças respiratórias, etc.), estejam estas em tratamento ou não, considerando a questão existencial contida na avença.

A propósito, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já considerava abusiva a resilição unilateral em contratos de plano de saúde (individuais e até coletivos), se ocorrer durante tratamento do consumidor4. Sem prejuízo, há decisão proferida pela 3ª Turma, sob Relatoria da ministra Nancy Andrighi, que pontua especificamente a questão dos contratos relacionais e assim resolve:

1. No moderno direito contratual reconhece-se, para além da existência dos contratos descontínuos, a existência de contratos relacionais, nos quais as cláusulas estabelecidas no instrumento não esgotam a gama de direitos e deveres das partes.

2. Se o consumidor contratou, ainda jovem, o seguro de vida oferecido pela recorrida e se esse vínculo vem se renovando desde então, ano a ano, por mais de trinta anos, a pretensão da seguradora de modificar abruptamente as condições do seguro, não renovando o ajuste anterior, ofende os princípios da boa fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade que deve orientar a interpretação dos contratos que regulam relações de consumo.

3. Constatado prejuízos pela seguradora e identificada a necessidade de modificação da carteira de seguros em decorrência de novo cálculo atuarial, compete a ela ver o consumidor como um colaborador, um parceiro que a tem acompanhado ao longo dos anos. Assim, os aumentos necessários para o reequilíbrio da carteira têm de ser estabelecidos de maneira suave e gradual, mediante um cronograma extenso, do qual o segurado tem de ser cientificado previamente. Com isso, a seguradora colabora com o particular, dando-lhe a oportunidade de se preparar para os novos custos que onerarão, ao longo do tempo, o seu seguro de vida, e o particular também colabora com a seguradora, aumentando sua participação e mitigando os prejuízos constatados5.

Casos como acima apresentado, demonstram que a análise puramente econômica do contrato não basta, é preciso que ele se volte também para um triplo esforço orientado pela funcionalização social, equivalência material e boa-fé6.

Merece relevo a ponderação de Rodrigo Fernandes Rebouças7, quando, trabalhando a teoria do capitalismo consciente, sugere uma mudança de paradigma para as empresas, sob o ponto de vista de uma necessária evolução, não para enfraquecer a autonomia privada, mas para enaltecer, no âmbito das contratações, valores decorrentes das cláusulas gerais da boa-fé objetiva e função social do contrato. Em tempos de pandemia, é uma reflexão necessária.

Aliás, parece ser este um dos valores propulsores do RJET (PL 1.179/20), quando, por exemplo, impede a concessão de liminares em ações de despejo, nas ações propostas entre 20 de março a 31 de dezembro de 2020, refletindo franca tentativa de preservação dos negócios jurídicos, sem abrir mão da proteção dos vulneráveis. Outro exemplo é que de um lado, deixa clara a manutenção do regramento próprio para relações de consumo, quando trata da resolução, resilição e revisão contratual (artigos 6º e 7º do PL 1.790/20); de outro, afasta temporariamente o direito de arrependimento previsto no artigo 49 do CDC, considerando a franca expansão das contratações à distância e uma necessária contenção de eventuais abusos por parte dos consumidores (art. 8º do PL 1.790/20).

Diante de todos os impactos que o período extremo impõe, será fundamental, as partes adotarem nova postura e assumirem, finalmente, a perspectiva colaborativa e reconhecendo o fator existencial tão celebrado no conceito de contratos de Paulo Nalin8, afastando, de uma vez por todas, cláusulas e condutas que reduzam os contratos a instrumentos de opressão.

Daí porque, o rompimento unilateral dos contratos de forma imotivada ou motivada por interesses meramente econômicos, talvez até razões oportunistas em virtude da epidemia, sem a adequada demonstração de nexo causal entre o fator de anormalidade e a denúncia, colocando em risco valores fundamentais do outro contraente (vida, saúde, moradia, etc.), deverá ser tido como desleal e em conflito com a colaboração desejada nas relações dotadas de catividade, aptos a gerarem a correspondente responsabilização civil.

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1 Vide observações de Anderson Schreiber e Rafael Mansur no clique aqui.

2 In Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 2.ed. rev.ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 57

3 In A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 163.

4 Vide AgInt no REsp 1807410/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 07/11/2019, DJe 03/12/2019

5 REsp 1073595/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/03/2011, DJe 29/04/2011

6 FACHIN, Luiz Edson.Teoria crítica do Direito Civil: à luz do novo Código Civil Brasileiro.3.ed.rev.atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 94.

7 In Autonomia privada e análise econômica do contrato. São Paulo: Almedina, 2017. p. 144

8 In Do contrato: conceito pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2005.p. 255.

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*Danielle Portugal de Biazi é doutoranda em Direto Civil e mestra em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Advogada. Sócia da banca Biazi Advogados Associados.

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