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Contratos privados e administrativos: necessidade de ajustamento das relações pactuadas para o período da pandemia e diretrizes normativas

Não se pode tratar legislativamente a matéria contratual dando preferência aos de natureza privada, relegando os de cunho administrativo pela simples razão de que ambos têm o mesmo grau de importância.

2/4/2020

A preocupação das partes envolvidas por um vínculo contratual neste período de incertezas quanto rumo da economia mundial, em especial a nacional, provocada pelos sabidos efeitos deletérios do coronavírus no âmbito econômico, é sabidamente emergente.

Esses sujeitos da relação contratual, como de estilo, têm interesses antagônicos que se somatiza em épocas de crise. Em linguagem simples, aquele que tem crédito quer recebê-lo, ao passo que o devedor quer se livrar do pagamento (ficar “isento”) ou ao menos postergá-lo ou até mesmo romper o vínculo.

Na rivalização dos anseios de cada um, buscar-se-á certamente embasamento jurídico com a construção de teses para amparar as pretensões.

Sem descer a minúcias, pode-se vislumbrar que na esfera dos chamados contratos privados, o argumento central virá do fato de se considerar ou não a pandemia como “um acontecimento extraordinário e imprevisível”.

Certamente alusões serão feitas aos institutos da teoria da imprevisão, da boa-fé objetiva, da cláusula “rebus sic stantibus” (possibilidade de revisão do contrato em tradução livre), da excessiva onerosidade, do enriquecimento sem causa, do caso fortuito e da força maior, como também do “pacta sunt servanda” (os pactos devem ser cumpridos).

Na alegação de onerosidade excessiva, o aceno será para o art. 478 do Código Civil que diz: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”.

Já o art. 317 do Código Civil é a baliza da teoria da imprevisão, ao prever: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”

No plano dos contratos administrativos, em geral, a discussão centra-se na paridade entre os encargos da parte contratada e a contraprestação (remuneração) paga pela Administração Pública.

Equação essa chamada de equilíbrio econômico-financeiro do contrato, o qual deve perdurar durante toda a vigência da avença.

A lei de regência dos contratos administrativos (Lei 8.666/93) traz como mecanismos de preservação do equilíbrio contratual o reajuste e a repactuação.

Para reequilibrar a equação o art. 65, II, ‘d’, da lei 8.666 estabelece que “para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual”. 

Por sua vez, o art. 9º da lei 8.987/95 (concessões e permissões) enxerga que existe a necessidade de reequilibrar os contratos de concessão quando (a) há a criação de encargos que provocam impacto na equação econômico-financeira (§ 3º) ou (b) há uma alteração unilateral que afete o equilíbrio (§ 4º).

Enfim, o implemento do reequilíbrio passará pelas figuras da revisão e da repactuação impulsionado por esses fatores.

Assim, a ocorrência dos denominados eventos imprevisíveis ou, ainda, previsíveis, mas de consequências incalculáveis, irão responsabilizar a Administração Pública pelo reequilíbrio econômico-financeiro dos contratados afetados.

Pois bem!

As cizânias entre contratantes e contratados já chegaram ao Poder Judiciário, tendo sido proferidas decisões que abonaram vez por outra a proposição sustentada de um ou de outro lado.

Nesse quadro inevitável de acirramento, o Poder Legislativo resolveu emprestar a sua colaboração com o encaminhar de Projeto Lei de iniciativa do Senado Federal (nº 1179, 2020), instituindo o cognominado Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) que estaria baseado nos seguintes princípios:

(1) manter a separação entre relações paritéticas (de Direito Civil e de Direito Comercial) e relações assimétricas (de Direito do Consumidor e das Locações Prediais Urbanas); (2) não alterar as leis vigentes, dado o caráter emergencial da crise gerada pela pandemia, mas apenas criar regras transitórias que, em alguns casos, suspendam temporariamente a aplicação de dispositivos dos códigos e leis extravagantes; (3) limitar-se a matérias preponderantemente privadas, deixando questões tributárias e administrativas para outros projetos.

Dito isto, é de se ponderar que não basta tratar tão importante assunto de forma parcial (foco nos contratos privados), criando um hiato na multiplicidade das relações contratuais ou uma ilha.

Ora!

Os severos e nefastos efeitos econômicos e sociais do Covid-19 atingem também de maneira contundente os chamados contratos administrativos.

Para pegar apenas um exemplo, o que dizer dos Contratos de Concessão de Uso de Áreas de domínio de entes governamentais, empresas públicas e sociedades de economia mista.

De regra, nessas situações os concessionários assumiram obrigações financeiras mensais fixas e variáveis, as quais têm a sua receita vinculada diretamente ao fluxo de pessoas nos espaços públicos onde estão alocados.

O isolamento social, o fechamento do comércio, a menor oferta de transporte público, entre outras medidas, são elementos que impactam severamente a receita dos concessionários.

Portanto, não se pode tratar legislativamente a matéria contratual dando preferência aos de natureza privada, relegando os de cunho administrativo pela simples razão de que ambos têm o mesmo grau de importância.

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*Sidney Martins é sócio gestor de Küster Machado – Advogados Associados.

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