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Ensaio sobre a releitura do art. 617 da CLT em tempos de covid-19. A negociação coletiva, o sindicato, a coletividade e o estado de exceção

Não é tempo para exigências irrazoáveis, muito menos para se dificultar ou entravar as negociações. O cenário de calamidade vivida exige que tanto os entes sindicais, quanto as empresas, busquem soluções e encontrem caminhos para a negociação de maneira célere.

2/4/2020

Com a decretação do estado de calamidade pública em virtude da pandemia do novo coronavírus, reconhecido pelo decreto legislativo 6, de 2020, as empresas se viram obrigadas a buscar soluções a fim de viabilizar a continuidade das suas operações e a manutenção dos contratos de trabalho de seus empregados.

Nesse contexto, foi editada, em 22 de março de 2020, a Medida Provisória 927/20, com a finalidade de dispor sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do atual estado de calamidade.

Logo em seu art. 2º a MP dispõe que, durante a vigência do estado de calamidade, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, e que o mesmo terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, respeitados os limites estabelecidos na Constituição.

Tal dispositivo vem sendo criticado por diversos especialistas da área. Muitos afirmam que haveria um conflito de normas entre o artigo 2º da MP e o art. 611-A da CLT, outros chegam a apontar a sua inconstitucionalidade¹.

Isso porque, a Constituição Federal garante que a lei não prejudicará o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada e a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho, cabendo a eles a defesa dos direitos e interesses individuais e coletivos da categoria. Por sua vez, o art. 611-A da CLT prevê a primazia dos acordos e convenções coletivas sobre a lei.

O que se vê, portanto, é que eventual acordo individual, firmado entre empregado e empregador, com base no referido art. 2º da MP 927/20, poderá, a depender de seu conteúdo, vir a ser questionado judicialmente, o que representa insegurança jurídica para as partes.

Assim, a solução mais cautelosa a ser adotada nesse momento de crise certamente passa pela negociação coletiva com o sindicato da categoria. No entanto, o que fazer diante de uma possível inércia, ou, até mesmo, recusa, do sindicato em participar das negociações?

Nossa legislação prevê mecanismos para resguardar os empregados que passem por esse tipo de situação com seus respectivos sindicatos.

O art. 617 da CLT, que teve sua redação dada pelo decreto-lei 229, de 28/2/1967, prevê que os empregados que decidirem celebrar acordo coletivo de trabalho com determinada empresa darão ciência de sua resolução ao sindicato representativo de sua categoria profissional, que, por sua vez, terá o prazo de 8 dias para assumir a direção dos entendimentos entre os interessados, devendo as empresas observarem o mesmo procedimento com relação ao sindicato patronal.

Na hipótese em que o prazo de 8 dias expire sem que o sindicato tenha se desincumbido do encargo, o §1º, do dito art. 617 da CLT, estabelece que os interessados

poderão dar conhecimento do fato à Federação a que estiver vinculado o sindicato e, na falta dessa, à correspondente Confederação, para que, em igual prazo, assuma a direção dos entendimentos.

Ainda, caso esgotado também esse prazo, os interessados poderão prosseguir diretamente na negociação coletiva até o final.

Destaque-se que a Seção Coletiva de Dissídios (SDC) do C. TST já havia adotado entendimento de que o art. 617 foi, sim, recepcionado pela Constituição Federal de 1988.

Com isso, a jurisprudência de nossos Tribunais é no sentido de que, estando comprovado que o sindicato foi convidado a participar da negociação coletiva e se manteve inerte ou se recusou a negociar os termos do acordo, bem como o cumprimento das demais exigências do art. 617, §1º, da CLT – respeito ao prazo de 8 dias para manifestação do sindicato e comunicação à Federação ou à Confederação –, será possível a negociação direta entre empregados e empregadores.

Contudo, releva notar que a recusa ou inércia por parte do Sindicato a que se refere a CLT deve ser abusiva. Em outras palavras, caso a recusa do sindicato seja fundada no fato de os termos do acordo serem manifestamente contrários à legislação trabalhista e constitucional, tal recusa será justificada e não poderá ser considerada para fins da negociação direta excepcionada pelo §1º do art. 617 da CLT.

Em tais casos, ressalte-se, a recusa não apenas é justificada, como necessária, já que, em seu papel de defesa dos direitos e interesses da categoria, a entidade sindical deve observar os preceitos legais e constitucionais.

O que se analisa aqui, portanto, é a hipótese de recusa ou omissão injusta por parte do sindicato, que se nega a representar e defender os direitos daqueles que representa.

Nesses casos, entendemos que a recusa injustificada do sindicato, ou sua omissão na negociação, não apenas implicaria na possibilidade de aplicação dos

mecanismos postos pelo art. 617, §1º, CLT, como constituiria verdadeiro ato ilícito, na forma do artigo 187 do Código Civil, que estipula que "comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

É a hipótese do abuso de direito, muito bem conceituada por Silvio Rodrigues²:

"O abuso de direito ocorre quando o agente, atuando dentro das prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe concede, deixa de considerar a finalidade social do direito subjetivo e, ao utilizá-lo desconsideradamente, causa dano a outrem."

Isso porque, a negociação não é uma simples faculdade atribuída ao sindicato, mas um verdadeiro dever.

É o que determina a própria Constituição Federal, que em seu artigo 8º, III, dispõe que ao sindicato cabe defender direitos e interesses, coletivos ou individuais, da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas.

No mesmo sentido, o artigo 8º, VI, da Constituição Federal disciplina que "é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho". Trata-se do conhecido princípio da interveniência sindical obrigatória na normatização coletiva, que se baseia na premissa de que a participação sindical é indispensável para a existência da negociação coletiva.

Outro ponto que se deve salientar é a necessária prevalência do interesse público sobre os interesses particulares, ou, ainda, da categoria, princípio hermenêutico estabelecido no art. 8º da CLT. É, inclusive, em razão de tal prevalência que o Estado estabelece parâmetros mínimos que não podem ser afastados pela negociação das partes, como se vê no artigo 611-B da CLT, que estipula direitos que não podem ser reduzidos ou suprimidos, ainda que por convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho.

E, no atual momento de crise e calamidade vivido em nosso país, que muitos comparam a um verdadeiro estado de guerra, o interesse público maior a se buscar é certamente a preservação dos postos de trabalho com menor impacto possível para os trabalhadores.

É nesse sentido que a professora portuguesa Maria Rosário Palma Ramalho³ defende a existência de um princípio da compensação da posição debitória das partes no vínculo laboral, ao sustentar que "o primeiro princípio geral do direito do trabalho, que pode ser isolado a partir do sistema normativo, é um princípio de compensação das partes pelo débito alargado que assumem no vínculo laboral".

Assim, a catedrática da Universidade de Lisboa entende que o tradicional princípio geral de proteção do direito do trabalho se desenvolve não apenas em favor do trabalhador e com o objetivo de compensar sua condição de inferioridade em frente ao empregador, mas também, em benefício do empregador "com o objetivo de garantir o cumprimento dos deveres especialmente amplos que lhe incumbem no contrato de trabalho e, mediatamente, para viabilizar o próprio contrato".

É nesse contexto de prevalência do interesse público sobre interesses particulares ou de determinada categoria que se impõe uma análise mais detida – ou uma releitura – sobre os mecanismos de negociação coletiva, especificamente o regramento do artigo 617 da CLT.

Imperativo que se destaque que apesar do ineditismo do estado de calamidade pública nacional em que nos encontramos, nosso país já se viu diante de um estado de guerra declarado, mais recentemente durante a segunda guerra mundial.

Naquele momento histórico, o direito do trabalho também se viu diante de importantes questionamentos e releituras, justamente para enfrentamento do estado de exceção que se impunha. O professor e desembargador do trabalho Ivan Alemão, em artigo intitulado "O Direito do Trabalho no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial"4, anotou que:

"Nosso país passou por muitas ditaduras, mas muito pouco por estado de guerra. Embora o decreto-lei 4.638, de 31 de Agosto de 1942, seja dirigido apenas aos estrangeiros “inimigos", a legislação da época da Segunda Guerra passou a ser extremamente restritiva de direitos trabalhistas.

Embora a Constituição em vigor já fosse bem restritiva quanto às liberdades individuais e políticas, pois vigia o Estado Novo, ainda houve a restrição dos direitos hoje chamados de sociais, assim como de liberdades individuais e políticas.

O decreto 10.358 de 31.08.1942 veio a declarar estado de guerra em todo o território nacional. Ele é bem pequeno e merece ser citado em sua íntegra.

"Decreto n. 10.358 de 31.08.1942

Art. 1º É declarado o estado de guerra em todo o território nacional.

Art. 2º Na vigência do estado de guerra deixam de vigorar desde já as seguintes partes da Constituição:

Art. 122, ns. 2, 6, 8, 9, 10, 11, 14 e 16;

Art. 122, n. 13, no que diz respeito à irretroatividade da lei penal;

Art. 122, n. 15, no que concerne ao direito de manifestação de pensamento;

Art. 136, final da alínea;

Art. 137;

Art. 138;

Art. 155, letras c e h;

Art. 175, primeira parte, no que concerne ao curso do prazo.

Parágrafo único – Ressalvados os atos decorrentes de delegação para a execução do estado do emergência declarado no artigo 166 da Constituição, só o Presidente da República tem o poder de, diretamente ou por delegação expressa, praticar atos fundados nesta lei.

Art. 3º O presente decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário."

Ou seja, a Constituição Federal, no caso a de 1937, foi significativamente mutilada, especialmente sobre os direitos de cidadania.

Para nós, interessa a suspensão dos art. 137 e 138, que hoje equivaleriam aos arts. 7º e 8º da atual Carta.

O art. 137 era o da legislação do trabalho, que garantia entre outras coisas os contratos coletivos, o repouso semanal, as férias, a indenização, o salário mínimo, o adicional noturno, a proibição de trabalho de menor de 14 anos, a assistência, e o art. 138, é o que tratava da liberdade de associação profissional ou sindical."

Não se está aqui propondo a adoção de medida similar àquela adotada pelo Estado Novo, de suspensão de garantias constitucionais, longe disso – até mesmo porque a experiência já ensinou que a proteção constitucional de um núcleo mínimo de direitos sociais é imprescindível -, pretende-se apenas demonstrar que, em nosso histórico jurídico, em cenários excepcionais, medidas excepcionais foram adotadas pelo Governo Brasileiro.

Tendo tudo o que foi dito até então em mente, convém agora um breve exame dos princípios que norteiam a negociação coletiva no direito brasileiro, especificamente aqueles que entendemos pertinentes para o presente estudo. Nos baseando em estudo do professor e advogado Luiz Marcelo Figueiras de Góis5, anotamos o seguinte sobre os princípios da negociação coletiva de trabalho:

Como se vê, nesse momento de absoluta inquietude social, cabe aos entes coletivos - empresas e sindicatos - buscar através da negociação coletiva, pautada pela transparência e razoabilidade, a pacificação social, observando-se, sempre, o interesse do coletivo e não de determinados indivíduos, que são movidos pelo que a filosofia chama de paixões humanas.

Assim, cabe ao sindicato e empresa a busca de um objetivo comum, que é, como dito, a preservação dos postos de trabalho com menor impacto possível para os trabalhadores.

E, quando se fala em preservação dos postos de trabalho, necessariamente deve-se incluir como parte do objetivo a sobrevivência da própria empresa, sem a qual não é possível falar em postos de trabalho.

Pensamos que a atuação negocial entre sindicatos e empresas deve ser célere e colaborativa (negociação baseada em interesses), como o estado de exceção que nos encontramos impõe, deixando de lado antigas e retrógradas práticas, como a negociação posicional (negociação baseada em posições, onde os negociadores se tratam como oponentes).

Justamente com fundamento nesses elementos é que sustentamos a necessidade de uma releitura do art. 617 da CLT no atual estado de calamidade que nos encontramos.

A primeira releitura a se defender diz respeito à desnecessidade de observância aos prazos fixados na Lei. Não nos parece razoável que a coletividade de trabalhadores, que não se confunde com a figura do sindicato, entendido como mero instrumento de vocalização da vontade desta última, deva aguardar por 16 dias para que possa ela própria manifestar diretamente sua vontade frente ao seu empregador ou empregadores.

O próprio Supremo Tribunal Federal, através das diversas liminares que vem deferindo para combater a atual crise, vem dispensando a observância por parte dos agentes de Estado de diversos requisitos previstos em Lei, o que dá amparo a nossa proposição. Aqui vale destacar as palavras do ministro Alexandre de Moraes na medida cautelar na ADIN 6.357:

"O surgimento da pandemia de Covid representa uma condição superveniente absolutamente imprevisível e de consequências gravíssimas, que afetará, drasticamente, a execução orçamentária anteriormente planejada, exigindo atuação urgente, duradoura e coordenada de todos as autoridades, tornando, por óbvio, lógica e juridicamente impossível o cumprimento de determinados requisitos legais compatíveis com momentos de normalidade", ressaltou o ministro.

O excepcional afastamento da incidência dos artigos 14, 16, 17 e 24 da LRF e 114, caput, e parágrafo 14, da LDO/2020, "não conflita com a prudência fiscal e o equilíbrio orçamentário consagrados pela LRF", afirmou o ministro. Ele ressaltou, ainda, que a proteção à vida, à saúde e a subsistência de todos os brasileiros, com medidas protetivas aos empregados e empregadores estão em absoluta consonância com o princípio da razoabilidade.

A segunda releitura diz respeito à possibilidade de envolvimento dos entes sindicais de primeiro e segundo graus de forma conjunta e não sucessiva. Em prol da urgência que se impõe, não nos parece razoável que se deva aguardar a manifestação do ente de primeiro grau (sindicato), para que, só após, se busque então o de segundo grau (federação) ou o de terceiro grau (confederação).

Logo, propomos a possibilidade de que todas as entidades venham a ser chamadas concomitantemente para assumir a negociação coletiva.

A terceira e última releitura diz respeito à recusa sindical. Veja que a omissão sindical em assumir a negociação coletiva não merece maiores comentários, na medida em que já prevista expressamente na Lei como hipótese autorizadora.

Pensamos, portanto, que a releitura proposta diz respeito à recusa injustificada ou abusiva quanto aos próprios termos da negociação coletiva. Aqui será de muita valia a aplicação concreta dos princípios acima relacionados, em especial da razoabilidade, transparência e paz social.

Ou seja, a recusa do sindicato deve vir sempre embasada por elementos concretos que justifiquem seu posicionamento, ou seja, elementos concretos e técnicos e, ainda, seguida de uma proposição construtiva. A simples negativa ou criação de embaraços (ex.: alegação de que agenda está cheia, etc.), no atual cenário, nos parece verdadeiro abuso de direito e justifica a aplicação imediata da autorização do §1º do art. 617 da CLT.

Não é tempo para exigências irrazoáveis, muito menos para se dificultar ou entravar as negociações. O cenário de calamidade vivida exige que tanto os entes sindicais, quanto as empresas, busquem soluções e encontrem caminhos para a negociação de maneira célere.

Como se vê, diante de todo o exposto, o que se pretendeu aqui foi destacar a importância da negociação coletiva, notadamente em tempos de crises como a que vivemos. Para tanto, é imprescindível reconhecer a importância de mecanismos que possam facilitar essa negociação, a fim de resguardar os interesses dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, preservar o máximo possível de postos de trabalho.

É nesse sentido, e visando esse propósito, que propomos uma aplicação flexibilizada, dentro dos limites aqui apresentados, do artigo 617 da CLT. Acreditamos que tal medida poderá ser grande aliada na busca de soluções que visem viabilizar a manutenção dos contratos de trabalho e a continuidade das operações de diversas empresas em tempos de pandemia do novo Coronavírus.

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1 O PSB ajuizou a ADIn 6.348, na qual requer a declaração de inconstitucionalidade dos arts. 2º, 6º, §2º, 14, 15, §§ 1º e 3º, 26, I e II, 31 e 36 da Medida Provisória n. 927/2020.

2 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. v.4 – Responsabilidade Civil. 20.ed.rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2.002)- São Paulo: Saraiva, 2003, p. 45.

3 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Da autonomia dogmática do direito do trabalho. Coimbra: Almedina, 2000, p. 970.

4 FERREIRA, Ivan da Costa Alemão. O Direito do Trabalho no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial.

5 GÓIS, Luiz Marcelo Figueiras de. Princípios da Negociação Coletiva de Trabalho. São Paulo: Revista LTr no 74/02, 2010, p. 213/224.

6 Ainda, deve ser observado, conforme já dito, que o C. Tribunal Superior do Trabalho recepcionou o §1º do art. 617 da CLT, que é uma ruptura ao princípio em questão.

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*Ciro Ferrando de Almeida é advogado. Professor convidado do curso de especialização lato sensu em Direito do Trabalho da FGV. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Junior. Especialista em Direito e Processo do Trabalho.

**Nathalia Vogas de Souza é advogada e mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

 

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