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Cade mantém atuação durante a pandemia

Desde o dia 12 de março, a Autarquia adotou medidas para mitigar os riscos de contágio na instituição.

2/4/2020

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) continua em pleno funcionamento. Desde o dia 12 de março, a Autarquia adotou medidas para mitigar os riscos de contágio na instituição: seus colaboradores estão autorizados a realizar trabalhos remotos; o acesso ao prédio da instituição foi restringido e medidas de limpeza foram redobradas; as audiências estão sendo realizadas por videoconferência. A próxima sessão de julgamento, por exemplo, a se realizar em 1º de abril, será transmitida somente por meio virtual.

Prazos

Paralelamente, foi publicada, em 25 de março, Nota Informativa com vistas a prestar esclarecimentos a respeito dos prazos que regem os processos da Autarquia, ante a edição da Medida Provisória 928, de 23 de março de 2020. Em consonância com as disposições da Medida Provisória, restou estabelecido que, para os processos e/ou procedimentos em trâmite na Superintendência-Geral ou no Tribunal do CADE, não correrão prazos processuais em desfavor dos representados (acusados), quando se tratar de: (i) Processos Administrativos para Imposição de Sanções Administrativas por Infrações à Ordem Econômica; (ii) Procedimentos Administrativos para Apuração de Atos de Concentração (APAC); e (iii) Processos Administrativos para Imposição de Sanções Processuais Incidentais.

Por outro lado, não houve nenhuma alteração em relação ao curso dos prazos atinentes aos processos e/ou procedimentos referentes a: (i) Atos de Concentração; (ii) Inquéritos Administrativos para Apuração de Infrações à Ordem Econômica; (iii) Procedimentos Preparatórios de Inquérito Administrativo para Apuração de Infrações à Ordem Econômica; (iv) Acordos de Leniência; (v) Termos de Compromisso de Cessação (TCC); (vi) Acordos em Controle de Concentrações (ACC) em monitoramento; (vii) Consultas; e (viii) Termos de Compromisso e Desempenho em monitoramento.

O CADE também esclareceu que a ausência de curso dos prazos processuais em desfavor dos representados não impede a normal tramitação de todos os processos e procedimentos no âmbito do CADE, no que toca aos atos processuais que competem à Administração. Enfatizou-se que situações específicas que o caso concreto requeira, mediante pedidos justificados e fundamentados, serão analisadas com atenção face ao estado de calamidade pública. O Presidente da Autarquia prometeu, excepcionalmente, sensibilidade na análise.

Em 23 de março, também foi publicada a Portaria 652, de 20 de março de 2020, da Superintendência-Geral do CADE, delegando competência aos Superintendentes-Adjuntos e aos Coordenadores-Gerais de Análise Antitruste, no que toca à vigência de prazos processuais no período de crise.

Questões envolvendo os critérios de audiências e sessões de julgamento virtuais — principalmente em relação à dinâmica das sustentações orais e pedidos de ordem — estão em fase de regulamentação, por meio de sugestões de alteração do Regimento Interno do CADE, as quais estavam sob consulta pública até 29 de março. Essas alterações serão decididas pelo CADE em 1º de abril, na próxima sessão de julgamento por meio virtual.

Atuação no cenário de pandemia

A postura do CADE de “sensibilidade” — e diligência — na adoção de medidas alocativas quanto ao funcionamento das atividades da Autarquia, bem como nas diretrizes em relação aos prazos processuais que regerão o período de crise, não se verifica quanto à flexibilização na aplicação de sua legislação de regência. Pelo contrário! O CADE está atento às práticas que possam ser abusivas e exclusionárias da concorrência.

Na semana passada, a Superintendência-Geral do CADE instaurou investigação envolvendo o setor de produtos médicos-farmacêuticos em decorrência da pandemia referente ao coronavírus, a fim de averiguar se empresas estariam aumentando preços e lucros de forma abusiva diante da elevada demanda motivada pelos cuidados com a Covid-19. Foram oficiados hospitais, planos de saúde, redes de farmácias, distribuidores e fabricantes de máscaras cirúrgicas, de álcool em gel e de medicamentos para tratamento dos sintomas da Covid-19. Neste primeiro momento, foram enviados cerca de 80 ofícios às principais empresas desses mercados. Nas palavras do Presidente do CADE:

Somos conscientes do impacto direto de nossa atuação na seara econômica. Vários dos paradigmas que aprendemos ao longo da história terão que ser mitigados nessa crise sem precedentes. Mas, sem dúvida, com bom senso e sensibilidade, temos que permanecer vigilantes para evitar abusos que possam vir a ocorrer, assim como ser ágeis em nossa resposta para ajudar a reaquecer a economia o quanto antes. Nossa responsabilidade é gigantesca nesse momento. (Mensagem do Presidente do CADE à comunidade antitruste e à sociedade em geral, datada de 23 de março de 2020)

Portanto, as empresas devem ficar atentar às suas ações nesse momento para que eventuais arranjos entre concorrentes, necessários para enfrentar essa crise sem precedentes, não sejam interpretados como uma conduta anticompetitiva. Os conhecidos “cartéis de crise” certamente não serão tolerados pela autoridade antitruste. Políticas comerciais que visem a uma rápida recuperação econômica das companhias, diante dos efeitos que possam vir a ser causados pela crise, também devem estar no radar das empresas, para que não sejam interpretadas como potencialmente abusivas pelas autoridades concorrenciais.

Justamente em decorrência dos efeitos deletérios dessa crise, alguns setores que serão mais prejudicados precisarão se socorrer de mecanismos de cooperação entre concorrentes (e.g., por meio de joint ventures), com vistas a aumentar sua produção, a compartilhar ativos ou custos, a comprar insumos em conjunto, a trocar informações sensíveis, etc. Diante disso, instrumentos como o “Protocolo Antitruste” podem trazer segurança às empresas, caso tenham que, eventualmente, apresentar esclarecimentos ao CADE sobre esse tipo de acordo, sem prejuízo de as partes relacionadas estarem sujeitas à notificação obrigatória do acordo à autoridade antitruste.

Setores de impacto

Embora alguns setores sejam beneficiados pelo aumento de demanda no momento da crise — como o mercado de telecomunicações e mercados que envolvam e-commerce —, há setores envolvendo serviços essencialmente presenciais, com destaque para hotelaria, restaurantes, aviação e shoppings, em que o impacto pode ser radical. Nesse caso, espera-se que o CADE, igualmente, faça jus à “sensibilidade” no momento de lidar com eventuais negócios que envolvam empresas desses segmentos. O órgão poderia começar a se valer, com mais frequência, da doutrina da empresa falida (failing firm theory), a qual foi pioneiramente aplicada pela jurisdição norte-americana, mas raramente utilizada nas decisões do CADE, embora o Conselho tenha, em diversos julgados, discutido a sua possibilidade de aplicação. Afinal, manter os mercados competitivos em tempos de crise é tão importante quanto mantê-los competitivos em tempos de normalidade.

Os atos de concentração emergenciais, envolvendo players que atuem em mercados de produtos ou serviços essenciais para atender às demandas da crise (por exemplo, o mercado de saúde), requererão agilidade da autoridade concorrencial em relação aos prazos de análise, sendo bastante provável que os pedidos de autorização para que as partes consumem uma operação antes de decisão final do CADE, de maneira precária e liminar, sejam corriqueiros. A legislação aplicável nesses casos determina que as partes interessadas devem demonstrar, cumulativamente, que: (i) não há perigo de dano irreparável para as condições de concorrência no mercado; (ii) as medidas cuja autorização for requerida sejam integralmente reversíveis; e (iii) há iminente ocorrência de prejuízos financeiros substanciais e irreversíveis para a empresa adquirida, caso a autorização precária para realização do ato de concentração não seja concedida. Entretanto, o CADE costuma ser rigoroso no julgamento de pedidos de autorização precária, sendo necessária maior flexibilização na utilização dessa medida, notadamente em situações de exceção, como no caso atual, de modo que a análise do pedido seja mais célere.

Diretrizes e cooperação institucional

Seria conveniente, ainda, que o CADE publicasse suas diretrizes de atuação para enfrentar o período de crise da Covid-19, assim como fizeram algumas jurisdições, entre as quais a americana, com a publicação Joint Antitrust Statement Regarding COVID-19; a Comissão Europeia, com a publicação do Joint Statement by the European Competition Network (ECN) on application of competition law during the Corona crisis; e a autoridade do Reino Unido, com a publicação do Competition & Markets Authority (CMA) Approach to Business Cooperation in response to COVID-19. É importante notar que todas essas jurisdições enfatizaram que comportamentos anticompetitivos oportunistas não serão tolerados.

Chamam a atenção no documento publicado pela autoridade americana as cartas de revisão de negócios relacionados à Covid-19 (business review letters), em que as empresas interessadas submetem os termos do negócio a ser celebrado em decorrência da situação emergencial da Covid-19 à autoridade concorrencial, para que esta emita sua declaração sobre esse negócio. Trata-se de procedimento temporário da autoridade americana implementado, excepcionalmente, durante a crise da Covid-19. Além disso, o documento produzido pela autoridade concorrencial do Reino Unido (CMA) é enfático ao indicar os casos que terão prioridade de análise pela autoridade, assim como ao eleger os casos que terão isenção da aplicação da legislação concorrencial daquele país. A CMA flexibilizou sua análise de eventuais acordos entre concorrentes, desde que tenham por objetivo exclusivo solucionar preocupações de abastecimento e distribuição, aos consumidores, de produtos e/ou serviços escassos em decorrência da crise e que tenham duração temporária.

Aguarda votação do Senado Federal o Projeto de Lei 1.179, de 2020, prevendo um regime especial concorrencial no período da Covid-19. Tal Projeto de Lei visa suspender a obrigatoriedade de análise do CADE de certas condutas anticompetitivas e, notadamente, em relação a eventuais acordos associativos entre concorrentes. Antes de ter sua aprovação pelo Senado, o CADE e a comunidade antitruste merecem ser ouvidos sobre esse Projeto.

Por fim, é imprescindível que o CADE sente-se à mesa com as agências e entes governamentais que estão realizando desenhos de regulação emergenciais para atender esse período de crise, a fim de que esses órgãos estejam em plena cooperação e tentem mitigar os impactos concorrenciais que essas medidas poderão resultar no futuro e no reestabelecimento do mercado e da economia como um todo.

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*Flávia Chiquito dos Santos é head da área de Direito Concorrencial e Antitruste do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.

 

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