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Equívoco na aplicação do instituto da requisição administrativa

Requisitar materiais e equipamentos médicos necessários aos cuidados de prevenção e tratamento da COVID-19 é o mesmo que beber água do mar para matar a sede: aparentemente sacia-se uma necessidade imediata, mas morre-se de sede na sequência.

31/3/2020

Clichê em filmes policiais e de ação é a cena em que uma autoridade, com distintivo na mão, toma de imediato um carro de um cidadão, em face da necessidade urgente de perseguir criminosos. O que ali ocorre tem nome e regulação jurídica: requisição administrativa.

Despindo a situação das cores fortes e visual impactante, a requisição administrativa é instrumento de pronto e inadiável atendimento a um interesse público, que se revela maior e predomina sobre o uso e gozo da propriedade privada, cabendo ao Estado indenizar o particular, posteriormente, em caso de dano. No Brasil, a requisição administrativa vem prevista no art. 5º, inciso XXV, da Constituição da República1.

Especificamente quanto às medidas governamentais de combate ao novo coronavírus e tratamento da COVID-19, foi editada a lei 13.979/20 (com as modificações introduzidas pela Medida Provisória 926/20) que, dentre outras providências, prevê a possibilidade de requisição de bens e serviços no artigo 3º, inciso VII2. O dispositivo nada mais fez do que reafirmar uma competência que a própria Constituição outorga a certas autoridades.

Evidentemente, o instituto não é aplicável em situações normais. É a anomalia que lhe dá sustentação e ensejo e, no ordenamento jurídico brasileiro, a anomalia é descrita como “iminente perigo público”, expressão vaga que reclama concreta e racional apreciação diante do contexto fático.

Baseada na permissão legal mencionada, a União passou a oficiar empresas privadas produtoras de determinados equipamentos médicos, noticiando a efetivação da requisição de bens já produzidos e produtos a serem produzidos nos próximos 180 dias, o que nos parece não esteja em consonância com a melhor aplicação do Direito3.

Conquanto não haja sentido unívoco da expressão “iminente sentido público”, é certo que a requisição é excepcional para situações excepcionais. Aos referirmo-nos à excepcionalidade da medida, estamos a afirmar que a requisição só terá sua cabida se não houver outra solução eficaz, também prevista no direito, ao socorro do interesse público.

E, para o caso, não só há uma solução jurídica eficaz, como “a” solução jurídica adequada a suprir a emergência. Trata-se da contratação emergencial prevista na Lei de Licitações (Lei Federal 8.666/93), artigo 24, inciso IV4.

A contratação direta por dispensa de licitação em situações emergenciais ou de calamidade pública (ambas encontrando reflexo no contexto crítico atual) também tem ensejo em situações anômalas, porém – por assim dizer - de menor excepcionalidade do que o iminente perigo público.

Não bastasse a preexistência de tal hipótese de dispensa de licitação, a mesma Lei Federal 13.979/20 reafirma a possibilidade de contratação direta (sem licitação), para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da doença, conforme consta de modo inequívoco no art.4º, prevendo procedimento ainda mais célere ou quase nenhum, já que a única determinação legal é a de tais contratações sejam tornadas públicas em “sítio oficial”, além de trazer disposição expressa acerca da presunção de emergência e necessidade de pronto atendimento, bem como dispensando estudos prévios à aquisição5.

A contratação emergencial prevista na lei específica das medidas de combate ao coronavírus e a devastação que provoca, se dá por procedimento rudimentar e sumaríssimo, ou seja, que ultima com extraordinária celebridade e pouquíssima formalização, afigurando-se como a medida correta, lícita e, como dissemos há pouco, adequada à finalidade de suprir de imediato hospitais e demais instituições de saúde.

Vale consignar que, em termos de disponibilidade do bem para atender a excepcionalidade – pelo menos frente à inexistência de recusa por parte dos fabricantes em vender para o Estado -, não há diferença entre a aquisição dos equipamentos com dispensa de licitação e a requisição dos mesmos equipamentos. Em ambas as hipóteses, os equipamentos seriam entregues (ou recolhidos) ao Estado.

Já no plano financeiro as situações se distinguem largamente. Enquanto a contratação emergencial é relação de compra e venda, com pagamento do produto (observado o valor de mercado), a requisição é espécie do que se denomina sacrifício de direito, já que o particular é despojado de seus bens e/ou serviços temporariamente, assegurada posterior indenização por danos decorrentes da requisição.

Ora, se há medida que atende o interesse público e não importa em sacrifício do particular (a compra direta), a utilização do instituto da requisição configura desvio de finalidade, vício insanável de ato administrativo. O desvio de finalidade, no caso, se materializa pela prática de um ato cuja finalidade deve ser alcançada por ato de outra categoria, que mais se conforme com a garantia dos direitos individuais. Em outras palavras, não cabe requisição quando cabe a contratação direta emergencial.6

Também no campo financeiro a medida se afigura desastrosa. Não é difícil constatar que sem a entrada de receitas (remuneração pelos equipamentos comercializados), as fabricantes podem ter inviabilizada a manutenção de suas atividades em curtíssimo prazo, por falta de capital de giro ou reservas para assegurar a produção por algum tempo.

Desse modo, a requisição de materiais e equipamentos médicos necessários aos cuidados de prevenção e tratamento da COVID-19 implica penalizar ainda mais, ilegalmente e sem necessidade, o particular que já é vítima da doença e da crise econômico-financeira que se avizinha, prometendo ser terrível.

Devemos ainda dizer que as providências tomadas pela União nem mesmo se amoldam verdadeiramente à noção jurídica de requisição. Dê-se o nome que se der a uma determinada conduta e não se alterará sua substância. Requisitar a pronta entrega de bens já produzidos e os que vierem a ser é ato que tangencia uma espécie de confisco ilícito.

Em suma, requisitar materiais e equipamentos médicos necessários aos cuidados de prevenção e tratamento da COVID-19 é o mesmo que beber água do mar para matar a sede: aparentemente sacia-se uma necessidade imediata, mas morre-se de sede na sequência. 

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1 Art. 5º. (...)

XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”

2 Art. 3º. Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (...)

VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa.

3 Excepcione-se, nessas considerações, as requisições de serviços médicos e instalações privadas que, a toda evidência podem ter seu ensejo amparado pelo Direito.

4 Art. 24 (...)

IV -  nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;

5 Art. 4º  É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei. § 1º  A dispensa de licitação a que se refere o caput deste artigo é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. § 2º  Todas as contratações ou aquisições realizadas com fulcro nesta Lei serão imediatamente disponibilizadas em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet), contendo, no que couber, além das informações previstas no § 3º do art. 8º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, o nome do contratado, o número de sua inscrição na Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de contratação ou aquisição. § 3º  Excepcionalmente, será possível a contratação de fornecedora de bens, serviços e insumos de empresas que estejam com inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público suspenso, quando se tratar, comprovadamente, de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido. Art. 4º-A  A aquisição de bens e a contratação de serviços a que se refere o caput do art. 4º não se restringe a equipamentos novos, desde que o fornecedor se responsabilize pelas plenas condições de uso e funcionamento do bem adquirido. Art. 4º-B  Nas dispensas de licitação decorrentes do disposto nesta Lei, presumem-se atendidas as condições de: I - ocorrência de situação de emergência;  II - necessidade de pronto atendimento da situação de emergência;  III - existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e IV - limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência. Art. 4º-C  Para as contratações de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de que trata esta Lei, não será exigida a elaboração de estudos preliminares quando se tratar de bens e serviços comuns.

6 Outra questão atinente a requisição tem se mostrado de extrema relevância no momento, quando mais de um ente público tem, em tese, a necessidade de proceder a requisição, vez que estaríamos frente a conflito de dois interesses públicos, ainda considerando que, no sistema constitucional brasileiro, União, Estados e Municípios tem competência material para executar os serviços de saúde.

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*Renata Fiori Puccetti é professora de Direito Administrativo da PUC-SP, mestre e doutoranda pela mesma Universidade e advogada sócia de Biazzo Simon Advogados.

*José Ricardo Biazzo Simon é mestre em Direito Público pela PUC-SP e advogado sócio de Biazzo Simon Advogados.

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