A lei 13.979 criou uma hipótese excepcional de contratação de pessoas até então proibidas de contratar com o Poder Público em decorrência de sanção (art. 4º, §3º, com a redação da MP 926).
1. Fundamento
O fundamento da norma decorre de um exame de proporcionalidade. O legislador reconhece que é mais relevante o atendimento de emergência de saúde pública do que a repressão a infração cometida anteriormente. O pressuposto é de que não há fundamento para privar o Estado e a Nação do fornecimento de bem ou serviço essencial para o combate da pandemia se o único obstáculo para tanto for de ordem jurídica (restrição a contratação derivada de sanção administrativa).
2. Hipótese de inexigibilidade
O cabimento dessa contratação depende da configuração de situação de inexigibilidade de licitação. Nos termos da lei, somente se admite a contratação de sancionada quando houver inviabilidade de competição decorrente da exclusividade do fornecimento. Ou seja, impõe-se a comprovação de que a empresa sancionada é a única capaz de fornecer determinado objeto, insumo ou serviço para a Administração.
Essa circunstância limita a incidência da norma para hipóteses raras. Será preciso que cumulativamente se configurem as seguintes circunstâncias: a) objeto destinado a enfrentar a emergência decorrente da pandemia; b) exclusividade do fornecedor/prestador; c) estar o fornecedor/prestador impedido de contratar com a administração em virtude de sanção administrativa.
3. A definição do contratado
Há um defeito de redação no dispositivo na seguinte passagem: "contratação de fornecedora de bens, serviços e insumos de empresas que estejam com inidoneidade declarada (...)". Deve-se interpretar a norma com a exclusão da expressão "fornecedora" ou a substituindo por "fornecimento". A lei autoriza a contratação de sujeito proibido de contratar com a administração por força de sanção. Isso alcança não apenas pessoas jurídicas, mas também pessoas físicas.
4. O alcance a outras hipóteses de sanção
O dispositivo faz referência a declaração de inidoneidade e suspensão do direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público, duas modalidades de sanção da lei 8.666. Mas há sanções previstas em outras normas que produzem efeito idêntico, como por exemplo o impedimento de contratar da lei 10.520, a suspensão temporária e o impedimento de contratar da lei 13.303 e a proibição de contratar da lei 8.429 e da lei 12.529 – além de leis de outras esferas federativas. O Tribunal de Contas da União também tem competência para sancionar empresa que praticar fraude em licitação (lei 8.443, art. 46). A incidência da contratação excepcional para afastar essa sanção é ainda mais evidente, uma vez que se resolve pela nomenclatura idêntica da sanção: declaração de inidoneidade.
Portanto, a regra deve atingir a todas as pessoas proibidas de contratar com o Poder Público por força de sanção, ainda que não propriamente de declaração de inidoneidade ou suspensão. A finalidade da norma é admitir uma contratação excepcional com o Estado, em virtude da situação de emergência. Não há fundamento para deixar de aplicar a regra a pessoa impedida de contratar em decorrência de sanção aplicada com fundamento na Lei do Pregão, por exemplo.
5. Hipóteses em que há outro fornecedor
Não é cabível promover a contratação de pessoa sancionada se existir viabilidade de fornecimento ou prestação por outra pessoa. A hipótese de contratação excepcional do §3º pressupõe a configuração de inviabilidade de competição por exclusividade do prestador. Ou seja, quando apenas aquela pessoa sancionada for capaz de atender às necessidades da Administração.
Não será cabível, portanto, a participação de empresa sancionada em licitação sob o rito sumário previsto na lei 13.979. Existiria uma contradição em termos: a contratação excepcional pressupõe a inviabilidade de competição, em virtude de situação de exclusividade. Logo, não há cabimento em promover licitação.
Mas também não será admissível a contratação direta de empresa sancionada por dispensa se não ficar comprovado de que se trata se fornecedor ou prestador exclusivo.
6. O prazo da sanção
O afastamento dos efeitos da sanção para permitir a contratação de sancionado pelo Poder Público não configura suspensão ou interrupção do prazo de vigência da sanção. Ou seja, não será cabível suspender ou interromper o prazo de vigência da sanção, para restituí-lo ao seu término, durante o período em que vigorar a contratação excepcional. Por exemplo, se uma empresa tiver sido suspensa pelo período de um ano e firmar contrato de seis meses com a União para fornecimento de bens de saúde no sétimo mês de vigência da sanção, ao término de tal contrato estarão encerrados os efeitos da sanção e não caberá mantê-la suspensa por mais cinco meses.
7. Aplicação da regra para além da lei 13.979
A contratação de sancionada é excepcional. Somente se admite a aplicação da regra do §3º do art. 4º no âmbito da lei 13.979 – ou seja, para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus e enquanto durar o período de pandemia.
Mas é possível cogitar da ampliação dessa regra para outras hipóteses em que se configurar situação de similar gravidade. A racionalidade da norma é útil para solucionar outros graves problemas enfrentados e, portanto, deve se considerar o caso de sua aplicação posterior.
8. A vigência da lei 13.979
A primeira hipótese de ampliação é relacionada ao próprio enfrentamento da pandemia após o encerramento de vigência da lei. A lei 13.979 vigorará enquanto perdurar o estado de emergência de saúde e não pode ultrapassar a data definida pela Organização Mundial de Saúde (art. 1º, §§ 2º e 3º; art. 7º da lei 13.979). Ou seja, eventualmente a OMS declarará o encerramento do estado de emergência internacional, mas a situação brasileira ainda estará prejudicada. Nessa hipótese, faria sentido afastar a vigência de regras mais eficientes para as contratações públicas? Isso poderá ser resolvido por meio da edição de nova lei, eventualmente alterando definitivamente o regime da lei 8.666.
9. Reconhecimento das falhas do sistema de sanções tradicional
A criação dessa nova hipótese de contratação excepcional evidencia a obsolescência do regime tradicional de sanções das contratações públicas. O afastamento das pessoas jurídicas do mercado de licitações tem sido a principal reação do Estado à prática de infrações, ao lado da imposição de multas pecuniárias. Essa concepção está defasada. É ineficiente tanto sob o ponto de vista preventivo – e os acontecimentos da Lava-Jato são prova disso – quanto sob o ponto de vista repressivo.
Limitando-se ao exame do segundo aspecto, os efeitos do impedimento de contratar com a Administração Pública podem se revelar excessivos – e desproporcionais às práticas das infrações. Em algumas hipóteses, a eliminação do mercado de contratos públicos pode representar a extinção da empresa. Não se ignora que há hipóteses de condutas gravíssimas que requerem a aplicação de sanções igualmente severas. Não se está defendendo um salvo-conduto a empresas que praticam corrupção ou cometem graves atos lesivos à Administração Pública. Mas a existência de praticamente um sistema hegemônico de sancionamento (consistente apenas no afastamento da empresa do mercado público) gera distorções indesejáveis. Não se podem ignorar também os milhares de casos de empresas proibidas de contratar com a Administração por decorrência de inexecução contratual, sem comprovação de dolo, má-fé ou elemento subjetivo reprovável.
Além disso, a sanção de afastamento da empresa do mercado público produz efeitos nocivos para a Administração Pública. O primeiro deles está evidenciado na própria criação da regra de contratação excepcional pelo dispositivo ora excepcionado: impede a prestação de serviço ou fornecimento de bem em hipótese em que o sancionado é único em condições de satisfazer a necessidade da Administração.
Por outro lado, a exclusão da empresa reduz o universo de potenciais competidores, o que também é indesejável sob o ponto de vista da concorrência como instrumento para se buscar a contratação mais vantajosa. Aliás, em alguns casos, esse afastamento poderá fazer com que reste apenas um fornecedor habilitado a contratar com a Administração, criando um cenário de inviabilidade de competição.
Esses exemplos evidenciam que o modelo sancionatório tradicional pode gerar prejuízos ao mercado e à própria Administração, inclusive conduzindo à elevação dos preços.
10. A criação de outros mecanismos de combate a infrações
A situação atual cria oportunidade para se repensar o combate a infrações no âmbito de licitações e contratações públicas.
É necessário reformar o regime jurídico dos contratos administrativos. Modificar a lógica da relação entre o Poder Público e a iniciativa privada produziria uma série de benefícios, inclusive no tocante às infrações. Tal como observou MARÇAL JUSTEN FILHO:
"Nunca será possível eliminar a corrupção de modo absoluto. Porque não é possível eliminar a ilicitude. Mas é necessário reduzir as oportunidades para a sua prática. No direito administrativo brasileiro, isso significa a redução radical das prerrogativas extraordinárias reservadas ao poder público. É indispensável um tratamento mais igualitário entre Administração Pública e particular – não porque os interesses privados sejam superiores aos interesses públicos."1
A nova regulação dos contratos reduzir medidas puramente de comando e controle e ampliar medidas de incentivo e prevenção. Já surgiram iniciativas no âmbito de compliance e programas de integridade. Há o risco de que essas medidas tenham natureza puramente formal, visando apenas a cumprir determinações legais. Ainda assim, é recomendável que se amplie a exigência de programas de integridade, especialmente com exigências específicas e procedimentalizadas.
As medidas de repressão não devem ser abolidas. É possível cogitar da diversificação de sanções, com a previsão de medidas menos drásticas do que o afastamento irrestrito da empresa sancionada do mercado público por determinado período. Uma boa diretriz seria a criação de sanções destinadas a efetivamente obter a reparação do prejuízo causado, nos limites do possível.
É preciso que a tipificação das condutas seja acompanhada de uma determinação mais precisa das sanções cabíveis. Atualmente, praticamente qualquer infração cometida pode conduzir à declaração de inidoneidade, geralmente por um período bastante considerável. Essa sanção deve ficar reservada apenas aos casos efetivamente graves, em que se configure a existência de elemento subjetivo reprovável e danos relevantes para a Administração.
Por fim, é necessário estabelecer procedimentos efetivos de reabilitação ou revisão das sanções. Admitir que o particular promova medidas de autossaneamento será muito mais eficiente do que a aplicação de uma sanção tradicional em diversos casos.2
11. As razões para aplicar a regra em tempos de normalidade
A lógica que autoriza a Administração Pública a promover a contratação excepcional de sancionada quando houver inviabilidade de competição, durante o período de emergência de saúde pública para combate do coronavírus, aplica-se também em outras hipóteses – ainda que com menos amplitude.
Um argumento contrário à ampliação dessa regra seria o de que a situação de exclusividade poderia variar ao longo do tempo e somente seria insuportável para a administração durante o período de crise. Outro é o de que a definitividade da regra geraria um incentivo inadequado ao particular sabidamente detentor de exclusividade: estaria protegido de sofrer sanção porque teria resguardado seu direito futuro de ser contratado.
Veja-se que esse último argumento também demonstra a necessidade da revisão da sistemática tradicional de sanções, já que a existência de um regime distinto poderia ser mais eficaz para combater as infrações.
Mas ainda assim parece existir justificativa razoável para se admitir que a Administração Pública promova a contratação de sancionado mesmo fora dos períodos de pandemia. Qual seria a solução adequada em caso de necessidade pública a ser satisfeita unicamente por pessoa sancionada? Deixar de promover a contratação? Essa alternativa não é compatível com o ordenamento jurídico. A ausência de atendimento às necessidades públicas também viola o Direito. A solução da regra do art. 4º, §3º, da lei 13.979 é proporcionalmente a mais adequada em qualquer cenário, independentemente das circunstâncias da crise atual.
12. Ainda os efeitos da crise: repercussões econômicas e a função social das empresas
Estima-se que a situação de emergência do combate ao coronavírus se encerre em futuro próximo. Mas os efeitos das medidas adotadas perdurarão por longo período. Não é exagero afirmar que haverá uma alteração radical em todas as relações e que jamais voltaremos à normalidade3, tal qual a conhecíamos antes da crise.
Isso significa a adoção de medidas satisfatórias para as futuras circunstâncias. Provavelmente, será necessária uma nova legislação para licitações e contratos administrativos – o que implicará o reconhecimento da defasagem do PL 1.292, em trâmite no Congresso Nacional. A experiência do período da crise contribuirá para produzir mudanças definitivas.
Uma das medidas tem de enfrentar a questão do afastamento das empresas do mercado público. A recessão econômica implicará o aumento de desemprego, produzindo consequências negativas para o bem-estar social. Certamente, o Estado adotará uma série de providências destinadas a mitigar os efeitos da crise socioeconômica – algumas das quais já se anunciam: flexibilização de tributação, desburocratização, ampliação de prazos para pagamentos etc.
A utilização das contratações administrativas como mecanismo de política pública é uma ferramenta útil para atingir esses objetivos. Já há experiência dessa aplicação, como nos incentivos a contratação de empresas de pequeno porte, benefícios a soluções que prestigiem o desenvolvimento sustentável e assim por diante.
Não é possível estimar a extensão dos efeitos da crise. Mas é plausível estimar que algumas empresas serão obrigadas a encerrar suas atividades. Outras enfrentarão graves dificuldades e terão de se reinventar. Nesse cenário, o fomento à atividade econômica a partir de contratações pela Administração Pública pode representar um importante instrumento para recuperação de empresas e até de determinados setores produtivos.
A permissão, ainda que excepcional, de contratação de empresas sancionadas produzirá benefícios também para a própria Administração e de estímulo para a atividade econômica. A racionalidade dessa medida guarda paralelo com a crescente flexibilização à participação em licitação de empresas em recuperação judicial:
"a preservação da empresa, a sua função social e o estímulo à atividade econômica atendem também, em última análise, ao interesse da coletividade, uma vez que se busca a manutenção da fonte produtora, dos postos de trabalho e dos interesses dos credores. Com efeito, penso que negar à pessoa jurídica em crise econômico-financeira o direito de participar de licitações públicas, única e exclusivamente pela ausência de entrega da certidão negativa de recuperação judicial, vai de encontro ao sentido atribuído pelo legislador ao instituto recuperacional" (STJ, AREsp 309.867/ES, Rel. Min. GURGEL DE FARIA, j. 26.06.2018).
Esses mesmos fundamentos se aplicam para admitir a contratação de empresas sancionadas, mesmo depois de encerrado o período de emergência. A situação dramática da economia conduzirá à necessidade de estímulo à atividade econômica, manutenção de postos de trabalho e assegurar a função social da empresa.
Eventualmente, a anistia das sanções de proibição de contratar com o Poder Público se configuraria como exagerada e desproporcional. Se for esse o caso, é cabível cogitar de medidas parciais e escalonadas, tais como procedimentos de reabilitação mais céleres e vinculados ao cumprimento de certos requisitos – dentre eles, por exemplo, a comprovação de que a causa da sanção não foi a prática de ato de corrupção.
As providências emergenciais adotadas para enfrentamento da crise tornaram evidente a necessidade de modificações profundas no modelo das contratações administrativas no Brasil.
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1 "Corrupção e contratação administrativa: a necessidade de reformulação do modelo jurídico brasileiro", Gazeta do Povo. Disponível aqui. Acesso em 27.3.2020.
2 PEREIRA, Cesar A. Guimarães; SCHWIND, Rafael Wallbach. Autossaneamento (self-cleaning), inidoneidade e suspensão do direito de licitar: lições do direito europeu e norte-americano. Fórum de Contratação e Gestão Pública. Belo Horizonte, v. 14, n. 165, set. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 25.3.2020.
3 v. LICHFIELD, Gideon. “We’re not going back to normal”, MIT Technology Review, Disponível aqui. Acesso em 25.3.2020.
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*Marçal Justen Neto é sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini Advogados Associados.