Na noite da última segunda-feira, 24, a presidência da República fez publicar em edição extra do DOU a MP 928/20 que, para além de revogar o polêmico art. 18 da MP 927/20 (que permitia, durante o vigente estado de calamidade pública, a suspensão dos contratos de trabalho por até quatro meses), inovou na ordem jurídica brasileira.
Uma das novidades mais significativas ali contidas, sem sombra de dúvidas, se refere a mitigação do direito constitucional à informação.
Isso, primeiramente, em razão da determinação - com força de lei1 - de tratamento prioritário a ser conferido aos pedidos de acesso à informação relacionados as medidas [governamentais] de enfrentamento a atual emergência de saúde pública tratada pela lei 13.979/20.
Entretanto, logo em seguida, a MP 928/20 determina a suspensão dos “prazos de resposta a pedidos de acesso à informação nos órgãos ou nas entidades da administração pública cujos servidores estejam sujeitos a regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes”.
Ainda na esteira do que determinado pela mais recente MP do governo Federal, a aludida suspensão só prevalecerá se, para a obtenção da informação pretendida pelo interessado, necessitar de: I - acesso presencial de agentes públicos encarregados da resposta; ou II - agente público ou setor prioritariamente envolvido com as medidas de enfrentamento da situação de emergência de que trata esta lei.
Trocando em miúdos, a MP 928/20 desnaturou o exercício do direito sacrossanto à informação enquanto perdurar a situação de calamidade pública reconhecida pelo decreto legislativo6, de 20 de março de 2020 (ex vi da parte final do § 2º do art. 6-B da lei 13.979/20).
É que a atual situação de reclusão social e laboral que, por óbvio, atinge grande parte funcionalismo público brasileiro de todas as unidades da Federação, faz com que as hipóteses estabelecidas pelo novel art. 6-B da lei 13.979/20 prevaleçam [adequação ao tipo] em todas as ocasiões possíveis e, por conseguinte, obstam o exercício do direito à informação.
Digno de nota ressaltar que o trabalho remoto é uma evolução ínsita ao mundo globalizado, razão pela qual já fora adotado por significativa parcela dos servidores públicos da União [e. g. Ministério Público Federal, Justiça do Trabalho, Banco Central, etc.] muito antes da atual pandemia. Logo, não se parece acertada a indiscriminada suspensão dos prazos de resposta, notadamente para os órgãos públicos onde o processamentos dos pedidos se dá exclusivamente de forma eletrônica.
Ainda que para alguns possa haver certa plausibilidade no intento governamental de se concentrar os esforços laborais dos servidores no combate a pandemia causada pelo alastramento do covid-19, certo é que a suspensão dos prazos de resposta previstos na Lei de Acesso à Informação, na forma como realizada pela MP 928/20, é multiplamente inconstitucional.
A começar pela nítida ofensa a parte inicial do inciso XIV do art. 5º da Constituição Federal (CF/88) que assegura “a todos o acesso à informação”.
Como se não bastasse, há ainda afronta a norma veiculada no inciso XXXIII da Carta Magna a qual proclama que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade”.
Já o Capítulo V do Texto Maior, que trata da Comunicação Social, estabelece no caput do art. 220 a impossibilidade de restrição, dentre outros, do direito à informação, a exceção das limitações constitucionalmente previstas aquele direito.
O parágrafo primeiro do referenciado art. 220 vai além ao estabelecer que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”.
A prevalecer a situação posta pela MP 928/20 e, porventura, restar inatendido qualquer pleito jornalístico ao argumento de suspensão dos prazos de resposta atualmente em vigor, exsurgirá inegável violação à liberdade de imprensa.
Em assim sendo, não é preciso ser um expert no assunto para se concluir que, forte na extensa regulamentação constitucional dispensada ao direito à informação, a MP analisada, ao menos na parte em que dispõe sobre a suspensão dos prazos de resposta previstos na Lei de Acesso à Informação, é de duvidosa constitucionalidade.
Sem pretender fazer apologia a pirâmide de Kelsen, quer nos parecer que uma norma com “força de lei” [vide caput do art. 62 da CF/88] não tem o condão de derrogar, ainda que por determinado lapso temporal, o texto constitucional vigente.
De mais a mais, se se considerar o direito à informação como um dos vetores do exercício da cidadania [vide art. 1º, inciso II, da CF/88], o que parece crível, também é de questionabilíssima constitucionalidade a edição de medida provisória que trate de matéria vedada pela alínea “a” do inciso I do § 1º do art. 62 da CF/88.
Como se não fosse o bastante, a situação em palco forceja uma aproximação com o estado de sítio onde se é possível, no curso de sua vigência e somente enquanto perdurar, a restrição “à prestação de informações e à liberdade de imprensa” [vide inciso III do art. 139 da CF/88].
Ainda que a gravidade da situação, até o presente momento, não tenha descambado para a autorização da decretação do estado de sítio, certo é que a edição da MP 928/20, no curso do estado de calamidade pública [vide Decreto Legislativo 6/20] e nos moldes em que confeccionada, flerta com o autoritarismo ao suprimir de maneira velada o exercício de direitos fundamentais quando não se é possível assim o fazer.
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1 O caput do art. 62 da CF/88 determina que as medidas provisórias contarão “com força de lei”.
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*Ademar José P. da Silva é advogado e sócio do escritório de advocacia Cyrineu & Silva Advogados.