Pouco precisa se dizer a respeito da pandemia que tem assolado o mundo, bem como sobre os efeitos nocivos à saúde e à economia global do novo coronavírus. Apesar de haver muita desinformação, fato é que os principais veículos de comunicação estão cumprindo, de forma bastante digna e comprometida, a missão constitucional de informar os cidadãos.
Em que pese a notória gravidade da pandemia e das prováveis dificuldades que nós, brasileiros, enfrentaremos na nossa saúde pública, muitos são os exemplos de descumprimento e, por incrível que pareça, até de deboche (vide um episódio ocorrido na cidade de Itapira, no interior de São Paulo, envolvendo um casal recém chegado da Europa) das medidas implementadas pelo Poder Público. Sobre tais condutas, importante se fazer alguns esclarecimentos.
O CP prevê diversos crimes, sendo que a ordem de disposição dos delitos ao longo do Código obedece à uma organização topográfica por tema. Dentro dessa organização, o Estatuto Repressor apresenta um capítulo inteiro “Dos Crimes Contra A Saúde Pública”. Entre esses, está o artigo 268, cuja redação se reproduz:
Infração de medida sanitária preventiva
Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
O verbo nuclear do crime é “infringir”, que transmite uma ideia de desobediência, violação ou transgressão. Como se vê, trata-se de conduta que pode abarcar diversas ações humanas, que demandarão a livre discricionariedade dos Delegados de Polícia e dos Magistrados para aferição sobre se determinada ação se amolda ou não ao referido tipo penal (isto é, ao verbo núcleo “infringir”).
Em tempos de pandemia e de bombardeio de informações sobre o vírus disseminado, não é difícil imaginar que as mencionadas autoridades teriam uma predisposição natural à compreensão de que ações como frequentar bares, restaurantes, não observar distância mínima entre pessoas, organizar e/ou participar de aglomerações, incentivar o trabalho sem adaptar a empresa com medidas de prevenção básicas etc., seriam entendidas como um crime contra a saúde pública.
Lembrando que diversos Estados da Federação já estão em regime de quarentena oficial e outros passarão a viver o mesmo nos próximos dias (como o Estado de São Paulo, por exemplo, que é o maior concentrador de casos da covid-19).
Há, ainda, um outro delito previsto no CP que, tendo como premissa o atual momento de medos e incertezas, pode ganhar espaço. Trato do artigo 132, que está inserido no capítulo dos crimes “Da Periclitação da Vida e da Saúde”, cuja redação é a seguinte:
Perigo para a vida ou saúde de outrem
Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
Fazendo uma análise sobre as possibilidades de sua aplicação às situações concretas, referido delito possui uma margem de incidência ainda maior do que o crime visto anteriormente, uma vez que inúmeras são as ações que podem se adequar ao verbo nuclear “expor” e aos elementos subsequentes “a vida ou a saúde”.
Trata-se de delito raramente verificado no dia a dia da Justiça Criminal. Entretanto, e como já dito, neste período de pandemia possivelmente as autoridades terão uma natural predisposição para incriminar a pessoa que praticar ações que não correspondam aos objetivos das medidas públicas de prevenção já adotadas pelo Poder Público (visando, acima de tudo, o “achatamento da curva”).
Aos mais resistentes: fiquem em casa. Se não para prevenção na luta contra a covid-19 e preservação da saúde pública, que seja para prevenção da própria liberdade individual e integridade psicológica das garras de um outro vírus perigoso, o Direito Penal, que, como poucas vezes visto em nossa história democrática, está sedento para dar exemplo à sociedade.
_________________________________________
*Rafael Valentini é advogado criminalista, sócio do Fachini, Valentini e Ferraris Advogados