Recentemente, temos visto um aumento exponencial de tensões entre nações soberanas no campo do comércio internacional, meio ambiente, segurança e segurança sanitária. O tema comporta as mais diversas abordagens, muitas delas subjetivas. De um lado, os governantes se apoiam na ultrapassada concepção de soberania nacional ilimitada. De outro, os órgãos multilaterais (ONU, OMS, OMC, OCDE, dentre outros) chamam a atenção para a necessidade de uma convivência harmônica entre as soberanias, sob a correta premissa de que as condutas (comissivas ou omissivas) dentro de um determinado território podem acarretar consequências prejudiciais a outras nações. Dentre alguns exemplos, podemos citar a intervenção das nações civilizadas no aumento dos desmatamentos na região amazônica em 2019; a guerra comercial tarifária entre EUA e China e a ausência de políticas de preservação da segurança sanitária no sul da China.
É fato que a soberania do Estado, no ponto de vista interno, é uma afirmação de poder superior a todos os demais. Sob o ângulo externo, é uma afirmação de independência, ante a inexistência de uma ordem jurídica dotada de maior grau de eficácia. Tecnicamente, podemos dizer que os Estados vivem em situação de anarquia. No entanto, o Estado é titular de competências que, precisamente porque existe uma ordem jurídica internacional, não são ilimitadas.
Muito embora a soberania seja um atributo do Estado que lhe permite dispor do seu poder de império para desenvolver as suas atividades (inclusive de forma coercitiva), esse poder encontra seus limites nas: (i) regras morais e políticas da justiça; (ii) na consciência jurídica e moral do povo; (iii) nos princípios gerais do direito e no próprio ordenamento jurídico, e (iv) na ponderação da natureza, objeto e fins das atividades Estatais.
A constatação de que condutas praticadas dentro de um determinado território possam acarretar consequências a outras nações (“Butterfy effect”) resultou na necessidade de criação de órgãos multilaterais, dotados de alguma capacidade de imposição desses limites aos seus membros e signatários dos acordos firmados no âmbito comunitário.
Após a I Guerra Mundial, foram celebradas convenções pelos organismos internacionais como a ONU, OMS, OMC e a OCDE, que contribuíram para o crescimento do fenômeno em virtude da revolucionária mudança de atitude pelos países que passaram a adotar os mecanismos sugeridos. Embora por vezes relutantes, a maioria dos Estados passaram a aceitar a limitação de sua soberania com objetivo de proteção de seus interesses de desenvolvimento econômico, bem como em troca de segurança, ainda que relativa.
A Carta das Nações Unidas foi um dos primeiros e mais importantes documentos firmados no âmbito multilateral. O artigo 1º estabelece o principal objetivo de buscar-se a cooperação internacional para solucionar os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural e humanitário, bem como para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais da pessoa humana. Essa constitui uma das primeiras noções de Desenvolvimento Econômico Sustentado.
É nesse contexto que são firmados os acordos multilaterais. Os princípios, diretrizes e regras contidos nesses acordos visam dar eficácia aos princípios ligados à justiça (não-discriminação, livre-concorrência, etc.) e àqueles ligados à segurança jurídica (boa-fé, proteção da confiança, etc.).
O Estado produz normas jurídicas em face de certas circunstâncias concretas, de modo que utilizará determinados meios para o atingimento de certos fins. Por força dos inúmeros valores e princípios que pairam sobre as mais diversas situações, é normal que haja conflitos, por exemplo, entre liberdade e segurança.
A situação sanitária na China é um exemplo clássico. Há décadas a OMC alerta que as condições sanitárias no sul da China é uma “bomba relógio”. Prova disso são as últimas epidemias mundiais, em sua maioria provenientes daquela região: as gripes de 1958 e 1968, a SARS em 2002 e, agora, o Covid-19. O Governo chinês, contudo, reluta na aplicação de medidas sanitárias tendo por fundamento a liberdade cultural e hábitos alimentares do povo chinês, especialmente naquela região.
É fundamental que a política interna seja balizada por um critério que melhor atenda a essa finalidade do desenvolvimento econômico sustentado preconizado nas declarações multilaterais. Supostos conflitos entre princípios como a liberdade e a segurança devem ser resolvidos pelo critério da proporcionalidade. A proporcionalidade exige a ponderação entre os valores tutelados, mediante a verificação da: (a) necessidade, (b) adequação e (c) pertinência da medida diante da finalidade do desenvolvimento econômico sustentado.
O artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça elegeu como fontes de interpretação das normas: (i) as convenções internacionais; (ii) os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas; (iii) as decisões judiciárias; (iv) a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, prevista ainda a aplicação da equidade. O princípio da proporcionalidade é aceito pelas nações civilizadas e exige que a intervenção estatal seja (i) pertinente ou adequada; (ii) necessária; e (iii) razoável (proporcionalidade em sentido estrito).
A razoabilidade (proporcionalidade em sentido estrito) no ordenamento jurídico está estritamente vinculada à noção de Justiça, motivo pelo qual sustenta o status de princípio geral implícito no texto constitucional, vinculado à interpretação do direito. A sua função é justamente limitar a produção de normas e a execução de atos eminentemente arbitrários, injustos ou irrazoáveis do Poder Público.
O Min. Luís Roberto Barroso, por exemplo, sustenta que “o princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça”. Enquanto a aplicação da proporcionalidade investiga a existência de uma relação de causalidade entre a norma e o fim almejado, a razoabilidade (“reasonable doubt” no Direito Norte-Americano) está atrelada à racionalidade da medida, mais especificamente (“Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional”. Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política. Revista dos Tribunais. 23 ed. 1998).
Daí porque na criação de direitos devem ser levados em conta os motivos (circunstância de fato), os fins e os meios. O Estado, na busca das suas finalidades, deve respeitar determinados limites, dentre os quais os princípios aceitos pelas nações civilizadas no âmbito internacional.
A interpretação deve partir das indagações: (i) Quais são os valores apropriados à disciplina de determinada realidade (congruência entre realidades social e os valores)?; (ii) Quais são os fins compatíveis com os valores prestigiados (congruência entre valores e fins)?; (iii) Quais são os propósitos concretamente factíveis (congruência entre os fins e a realidade social)?; (iv) Quais são os meios convenientes, eticamente admissíveis e eficazes, para a realização dos fins (congruência entre meios e fins)?
Uma vez estabelecida a finalidade e a prestação suficiente ao seu atingimento, qualquer imposição que ultrapasse o necessário será contrária à proporcionalidade na sua vertente de “proibição de excesso”.
Colocadas essas premissas, é razoável que os hábitos alimentares de uma determinada região possam se sobrepor à segurança e à saúde mundial e até mesmo a liberdade de ir e vir daqueles que se encontram em confinamento forçado? Parece-nos que a resposta negativa é óbvia. É certo que todas essas tristes consequência que estamos sofrendo acarretarão uma inequívoca conscientização de convivência harmônica das soberanias e um aumento da pressão sobre as Nações que se recusam a entender a limitação dos seus poderes internos perante uma nova ordem internacional.
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*Atualizado em 27/3/20.
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*Daniel Cardoso é advogado em São Paulo. Mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP.