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Internação compulsória por coronavírus é legítima e constitucional

A pandemia do novo coronavírus é uma situação em que o Estado pode lançar mão desses instrumentos legais que existem e podem ser usados para impor o interesse público sobre o particular.

20/3/2020

O Direito Administrativo do século 21 continua alicerçado na base do poder de polícia e das infrações e sanções. Isso quer dizer que, quando necessário e respeitados os elementos do devido processo legal, nossa legislação abarca internações compulsórias, fechamentos de estabelecimentos, vedações de algumas atividades, proibições de reuniões públicas e de aglomerações.

A pandemia do novo coronavírus é uma situação em que o Estado pode lançar mão desses instrumentos legais que existem e podem ser usados para impor o interesse público sobre o particular. A legislação está à disposição para ser usada junto com medidas como as campanhas de orientação e esclarecimento à população e de incentivo à adoção do comportamento mais adequado pelos indivíduos e empresas.

Esses esclarecimentos são fundamentais porque, na história do Brasil, a ignorância sempre foi inimiga da saúde pública. A historiadora Adriana Goulart, por exemplo, observou o seguinte sobre a epidemia da gripe espanhola, em 1918: “Enquanto, na Europa, a espanhola se disseminava, no Rio de Janeiro, capital da República, as notícias sobre o mal reinante eram ignoradas ou tratadas com descaso e em tom pilhérico, até mesmo em tom de pseudocientificidade, ilustrando um estranho sentimento de imunidade face à doença”.

Adriana cita como exemplo um artigo veiculado pela revista “A Careta”, que circulou na primeira metade do século 20. Segue um trecho do texto em questão: “Esta moléstia é uma criação dos alemães que a espalham pelo mundo inteiro, por intermédio de seus submarinos, (...) nossos oficiais, marinheiros e médicos de nossa esquadra, que partiram há um mês, passam pelos hospitais do front, apanhando no meio do caminho e sendo vitimados pela traiçoeira criação bacteriológica dos alemães, porque em nossa opinião a misteriosa moléstia foi fabricada na Alemanha, carregada de virulência pelos sabichões teutônicos, engarrafada e depois distribuída pelos submarinos que se encarregam de espalhar as garrafas perto das costas dos países aliados, de maneira que, levadas pelas ondas para as praias, as garrafas apanhadas por gente inocente espalhem o terrível morbus por todo o universo, desta maneira obrigando os neutros a permanecerem neutros”.

Para a historiadora, o artigo “denunciava, por um lado, a total desinformação e o desconhecimento da sociedade sobre o problema que a ameaçava. E, por outro, escondia o medo da população, que via nas medidas sanitárias um pretexto para a revitalização daquelas consideradas coercitivas. Tal ordem de medidas, muitas críticas rendeu à figura do sanitarista Oswaldo Cruz, em sua gestão na Diretoria Geral de Saúde Pública, durante o governo de Rodrigues Alves (1902-1906), instaurando uma tirania sanitária que deu origem a grandes tensões sociais e desencadeou a conhecida Revolta da Vacina”.

O atual contexto histórico, marcado pela pandemia do novo coronavírus, é muito diferente daquele da gripe espanhola em termos de acesso à informação e ao conhecimento. Paradoxalmente, no entanto, é marcado por uma onda de fake news e desinformações gigantescas.

O coronavírus afeta a China, pelo menos, desde dezembro de 2019. Os governos do mundo todo não atentaram para o fenômeno de forma correta, deixando de buscar informações e abstendo-se de adotar medidas preventivas eficazes. Por incrível que pareça, as populações ficaram desinformadas. Muitos gestores subestimaram o problema. Por ignorância de gestores e das populações, o vírus se alastrou de modo assustador, com efeitos devastadores.

Uma das medidas mais eficazes é, na verdade, o respeito a um dos princípios básicos do direito administrativo brasileiro: o da supremacia do interesse público sobre o particular, que foi muito bem trabalhado e idealizado por Celso Antônio Bandeira de Mello. Esse é um dos princípios estruturantes do direito administrativo contemporâneo, que se compatibiliza com os direitos fundamentais e resguarda a essência do sistema administrativista desde suas origens.

Não se pode confundir a supremacia do interesse público sobre o particular com a ideia de um interesse público arbitrário ou com o esmagamento de direitos humanos ou fundamentais, muito menos com o desprezo pelo Estado Democrático de Direito. Ao contrário, a defesa do interesse público primário é cada vez mais necessária no Estado brasileiro e no direito administrativo, não obstante em âmbito contratual haja tendência de paridade entre as partes. O próprio devido processo legal e a aproximação do direito administrativo sancionador ao direito penal decorre da supremacia do interesse público sobre o particular, em certa medida.

As providências adotadas pelo governo são lastreadas não na aderência dos destinatários, mas sobretudo em normativas que se fundamentam no interesse público. Por certo, diálogo e orientação serão sempre fundamentais para que a sociedade perceba seus direitos e deveres e adote comportamentos espontâneos positivos. Mas o fechamento de escolas, as proibições de eventos públicos, ou de funcionamentos de bares e restaurantes ou de circulações de pessoas em determinados locais ou horários, tudo isso depende de determinações compulsórias do Estado.

Um dos desafios deste momento é impedir o maior fluxo de pessoas nos espaços públicos e privados. Para tanto se faz necessário o uso do poder de polícia, independentemente das orientações, recomendações e educação.

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*Fábio Medina Osório é advogado do escritório Medina Osório Advogados, ex ministro da AGU.

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