Migalhas de Peso

A Federação de papel – ou do máximo de publicismo com um mínimo de esforço

Hoje, no entanto, que o publicismo avança sobre si próprio para se devorar a si mesmo – no fundo, como já foi bem diagnosticado, trata-se de uma disputa de poder para ver quem, dentro do publicismo, é o mais publicista e pode mais –, invoca-se a lembrança perdida de garantias, e direitos, e ordem, e segurança, e lei etc.

17/3/2020

O Brasil é uma Federação. Mas o Brasil, na verdade, não é uma Federação. Será, no máximo, uma Federação na carta. A força centrípeta de Brasília, a nossa Versailles do arquiteto, arrasta tudo para si. E só o fato de o Brasil ser uma Federação que não é efetivamente uma Federação explica algumas anomalias, dentre elas a extravagante eficácia nacional de sentença em ação coletiva – uma construção de laboratório que virou jurisprudência. Se fôssemos uma Federação, bastaria lembrar desse fato elementar – de que Federação é essencialmente limitação de poder – para se ter impedido, na raiz, qualquer ulterior desenvolvimento a uma tese, como essa, antes de mais nada sem pé nem cabeça e que demonstra, mais uma vez, a faceta do nosso publicismo (ana)crônico. Esse tema, de fato, revela nosso pendor centralizador e segue o rastro da nossa tradição autoritária.

Numa Federação, ordens jurídicas autônomas coexistem, a federal e a estadual – a municipal é jabuticaba nossa. Porque a Federação é essencialmente isso: uma técnica política de limitação do poder; sua finalidade é a de fracionar a autoridade e, num certo sentido, dividir a soberania – o poder de fazer e, sobretudo, o de aplicar as leis. Busca-se, assim, conjugando as virtudes da União (segurança e força) com as dos Estados-membros (vida e realidade), ampliar o espaço de liberdade – do indivíduo. Na nossa Federação, se Federação fosse, o juiz estadual também interpreta e aplica o direito federal. O critério que distingue a jurisdição federal da estadual é apenas o pessoal – e não o da natureza da causa (CF, art 109); ou seja, a jurisdição é definida pelas entidades que figuram na lide, não pela matéria. Há, pois, e pode haver – e mais do que isso, deve haver – pluralidade de interpretações sobre o direito. Essa é, justamente, a lógica da Federação; essa é a racionalidade do sistema; essa, aliás, é a riqueza dessa sofisticada engrenagem: permitir que determinada questão comporte mais de uma visão – limitando o poder. A tarefa de harmonizar e uniformizar o sistema incumbe aos tribunais de cúpula (na via recursal e cada um nos limites de suas atribuições).

Só há, a rigor – ou, ao menos, só deveria haver –, jurisdição nacional na via abstrata, direta, concentrada, e objetiva de controle de constitucionalidade, quando o Supremo Tribunal Federal funciona como legislador negativo (CF, art. 102, I, “a”). Ou, ainda, na hipótese (extravagante, para dizer o menos) trazida pela emenda constitucional n. 45/2004 de súmula de efeitos vinculantes. Ou, por fim – fenômeno ainda mais recente, e igualmente controvertido do ponto de vista teórico-normativo –, quando a própria Constituição ou lei expressamente estabelecem, isto é, quando autorizam, a partir de um caso concreto, julgamentos abstratos para fins de se definir precedentes vinculantes, tal como se dá com a sistemática da repercussão geral (CF, art. 102, § 3º), dos repetitivos (CPC, arts. 1.036 e ss) e dos IACs (CPC, art. 947). Fora dessas hipóteses, o que há é julgamento de casos concretos, válidos para casos concretos e legitimados ou beneficiários concretos, no limite da jurisdição territorial do órgão prolator da sentença.

E quem fixa a competência e, portanto, a medida da jurisdição de uma demanda, a partir das normas de regência da matéria controvertida, é o juízo de primeiro grau. Tribunais de revisão e mesmo tribunais de cúpula – eis um aspecto relevante a ser assinalado – não fixam, notadamente na via recursal, os limites objetivos nem subjetivos de uma demanda; nem há, ali, na via recursal, alargamento de competência ou de jurisdição. Porque a jurisdição não cresce para cima, nem o poder de dizer o direito se amplia conforme vá galgando instâncias superiores. Porque jurisdição é poder; e todo o poder – como corolário republicano – deve ser limitado, e não ampliado, nem espargido, nem borrifado para todos os lados, ainda mais para um país inteiro, e muito menos a partir da visão originária de um julgador singular. Juiz também é servidor público; suas atribuições, portanto, estão delimitadas por lei; e os limites da sua atuação estão pautados pelo ato da sua investidura. Isso significa que o magistrado entra na posse de sua função por força da atribuição que lhe é conferida pela autoridade de um órgão competente previamente definida. Não faz, então, nenhum sentido que uma autoridade estadual confira poderes ao magistrado para agir – leia-se, interferir no mundo da vida e, portanto, na vida de pessoas, ao exercer suas funções – para além dos limites do Estado-membro para o qual prestou concurso e tomou posse, assim como não faz nenhum sentido que uma autoridade federal confira poderes a um magistrado federal para agir fora de sua região. Não há investidura para isso; não há, portanto, poderes para isso. Não pode, então, o magistrado, seja ele federal ou estadual, decidir como se a jurisdição – a sua – fosse única; como se ela fosse nacional; e como se ele fosse o juiz de um Estado Central. Seria muito poder; para além do que lhe foi conferido; para além do que foi investido; e para muito além dos seus muros.

Numa Constituição acadêmica, no entanto, como é a Constituição de 1988, não admira que prevaleçam academicismos no trato das coisas. E são eminentemente acadêmicas as razões que sustentam a tese da eficácia nacional. Invoca-se, v.g., a natureza dos direitos e interesses transindividuais envolvidos (difusos, coletivos e individuais homogêneos), e a partir daí tira-se a senha para excessos. Mas essas distinções teóricas em nada alteram a realidade de poder, que está na origem da questão, nem autorizam a que um juiz do Oiapoque julgue e decida por um juiz do Chuí. Tais distinções, com efeito, quando não inúteis, são confusas, e, por isso mesmo, embaralham a compreensão do assunto – dentro da mais genuína tradição hegeliana da nossa academia; afinal, como se diz, uma vez hegeliano, sempre hegeliano. Veja-se a hipótese dos direitos difusos (os verdadeiramente difusos). Se, por sua natureza, o bem da vida ostentar essa qualidade – sendo ele de todos, e de cada um, e, portanto, não sendo de ninguém especificamente –, basta que se resolva a situação uma vez, para um, e ela estará resolvida de uma vez por todas, para todos. Nem sequer haveria interesse em que a situação, uma vez resolvida, tornasse a ser julgada de novo. Aqui, com efeito, não é necessário recorrer senão à natureza das coisas. A resposta está na coisa, e não nos efeitos mágicos da sentença. Mas tais bens são exceção, e não a regra. Quanto aos demais direitos transindividuais, não há nada que legitime esse transbordamento decisório territorial. Nada, com efeito, tem o condão de afastar a lógica federativa; nada, enfim, tem o poder de transformar o juiz de um estado federal no juiz de um estado central. Nada recomenda, aliás, que o juiz de outro estado e seu tribunal não possam ter outra interpretação acerca de determinado tema coletivo. Nada justifica, também, que uma prova colhida no Chuí seja suficiente para amparar uma sentença com eficácia no Oiapoque. Isso, aliás, já deveria ser o suficiente para afastar a tese da eficácia nacional: a sentença, sendo fruto da cognição exercida nos limites objetivos e subjetivos do processo, jamais poderá ir além da instrução probatória conduzida no caso concreto. Não há como simplesmente se presumir que a realidade apurada em determinado estado federativo valha para o todo o país. Mas isso é o que mais tem acontecido na prática: numa ação civil pública proposta no Estado do Rio de Janeiro (processo 0048568-59.2011.8.19.0001), por exemplo, acerca de supostos descumprimentos ao Decreto SAC ocorridos na cidade do Rio de Janeiro, com material probatório restrito àquela localidade, o Superior Tribunal de Justiça atribuiu eficácia erga omnes nacional à sentença condenatória. E o mais grave: ratificou, com isso, um julgamento monocrático, realizado em grau de apelação, acerca de matéria eminente fática, sem pauta, sem revisor, e sem sustentação oral. Só por aí já se vê que o tema da eficácia nacional não comporta, nem pode comportar tratamento dogmático.

Invocam-se, ainda, de modo acalorado, razões de suposta pragmática judiciária: julgar uma vez só uma questão transindividual trabalha em favor da celeridade da Justiça; isso operaria, portanto, em prol da eficiência do Poder Judiciário. Esse argumento, a um só tempo, além de não proceder, é falso. Não procede, justamente, porque a própria prática o desmente. Não é incomum – antes, é frequente e corriqueiro – deparar-se no foro com a tramitação simultânea de várias ações coletivas sobre o mesmo objeto. De modo que, se bastaria uma, por que várias? Ou o que é mais inquietante: como admitir-se a coexistência de várias? O argumento é ainda falso porque nenhuma teoria jurídica tem o poder de criar poder. Até porque, no plano puramente teórico, com abstração dos fatos, e esvaziada a realidade da vida, tudo é generalizável e universalizável (o real é racional e o racional é real, como defendia Hegel, no seu idealismo extremado). Um Município, por exemplo, poderia editar a melhor norma sobre telecomunicações de que o mundo já teve conhecimento. Mas a questão, aqui, não é teórica, mas de poder: o Município não pode fazer isso. Só quem pode estabelecer normas gerais de telecomunicações é a União. É uma questão de poder, de competência. E o mesmo se dá com a jurisdição, que não é teoria metafísica, nem disputa retórica; jurisdição é poder; pertence à ordem da pragmática política, porque o ato de julgar é um ato de poder. E não se confere mais poder a alguém por razões acadêmicas de comodidade. Nem isso tem a ver com eficiência. A Justiça será célere e eficiente se funcionar dentro dos limites do poder; fora deles, não. A curva do poder – se pudéssemos imaginariamente configurar aqui um gráfico – deve ser estável; se houver alteração, ela deve se dar para baixo, em sentido minguante, e não para cima, em sentido ascendente.

O art. 16 da Lei de Ação Civil Pública (LACP), portanto, ao restringir a eficácia da sentença proferida em ações coletivas aos limites territoriais do órgão julgador, está em sintonia com o regime federativo da Constituição de 1988 e com a limitação de poderes que lhe é inerente. Aliás, a tese da eficácia erga onmes da sentença ganhou força nos tribunais, entre nós, a partir de dois equívocos. O primeiro, teórico: espremeram Liebman até transformarem suas ideias, já então desnaturadas, em referencial doutrinário. Só que, em sua trajetória de pensamento, Liebman, como bom visionário, apenas assentou o óbvio: “[a] eficácia da sentença, nos limites de seu objeto, não sofre nenhuma limitação subjetiva; vale em face de todos.”1 Mas valer em face de todos significa apenas, e antes de mais nada, que a sentença, enquanto ato oficial de autoridade, é oponível a toda e qualquer pessoa, sem nenhum tipo de restrição ou limitação territorial; e depois, que o legitimado detentor de título executivo, formado a partir dela, poderá executá-la em qualquer parte do território. O exemplo clássico disso é a sentença de divórcio: independentemente do estado em que o sujeito se divorciou, essa nova realidade deve valer para toda a Federação, sendo oponível a todos. O simples fato – e aqui reside a origem do sofisma – de a sentença valer em face de todos não faz com que ela aproveite a todos. A sua eficácia, como reconhece o próprio Liebman, está necessariamente restrita aos limites de seu objeto, ou seja, ela só poderá aproveitar aqueles que guardam pertinência subjetiva com o objeto litigioso. E é aí que entra a limitação prevista no art. 16 da LACP: como forma de manter coeso o pacto federativo, o legislador restringiu, expressamente, o alcance da eficácia subjetiva da sentença coletiva àqueles que residem nos limites territoriais do órgão julgador, isto é, aos limites do poder jurisdicional do juiz. E o simples fato de o legislador ter se utilizado do vocábulo coisa julgada em vez de eficácia subjetiva não altera essa conclusão. Afinal, não faria nenhum sentido que a sentença pudesse ter eficácia em todo território nacional, mas se tornasse indiscutível – em razão dos efeitos da coisa julgada – apenas nos limites territoriais de seu órgão prolator. Como ficaria a segurança jurídica? Como uma sentença poderia aproveitar a alguém que não se beneficiaria com a sua imutabilidade, típica da coisa julgada? Teríamos, então, dois tipos de beneficiários: aqueles que gozam de uma sentença imutável e aqueles que podem executar a sentença até que a questão seja novamente questionada em seu próprio estado da Federação? Uma sentença coletiva posterior em sentido contrário anularia, então, a condição de beneficiário? Ou – o que feriria ainda mais o bom senso – o réu poderia embargar de eventual execução individual de sentença coletiva proferida em outro estado da Federação para rediscutir todo o mérito da causa? Se não há coisa julgada, e o juiz de outro estado da Federação pode entender de forma distinta, esse tipo de embargos à execução deveria passar a ser admitido.

Todo esse raciocínio, como facilmente se vê, faz pouquíssimo sentido prático e ofende noções básicas de processo civil. Ele é pernicioso, também, porque o ordenamento não admite a propositura de ações coletivas passivas. Desse modo, se um contrato consumerista, celebrado em todo o território brasileiro, vier a ser declarado nulo por um juiz de Boa Vista/RR, essa conclusão – de acordo com a teoria da eficácia erga omnes – deverá valer para todos os consumidores que celebraram esse contrato, independentemente do estado da Federação em que residam. Do ponto de vista do consumidor, não haverá nenhum interesse em que nova ação coletiva seja proposta em outro estado da Federação, já que a questão foi decidida favoravelmente em âmbito nacional. Do ponto de vista do fornecedor, ele ficará refém do que restou decidido e não poderá, por exemplo, ajuizar uma ação coletiva passiva em outro estado da Federação para que, ao menos ali, o seu contrato seja considerado válido. Nessa hipótese conjectural (mas que a prática demonstra acontecer rotineiramente), um juiz de Boa Vista/RR terá exercido verdadeira jurisdição nacional, mesmo sem ter sido investido – ou seja, mesmo sem ter poder – para isso. Não haveria, então, possibilidade de formação de jurisprudência em matéria coletiva. Ou seja, levada até as últimas consequências essa lógica, um único juiz, passando pelo crivo do tribunal, já definiria a questão, de uma vez e para sempre, ao julgar uma demanda coletiva. Mas isso se situa nas antípodas da própria noção de jurisprudência, que se forma e se uniformiza nos tribunais de cúpula justamente a partir da existência da pluralidade e até da divergência de entendimentos entre os mais diversos tribunais do país. É até mesmo salutar para o projeto democrático brasileiro que haja divergência. As questões, ademais, levam seu tempo próprio de maturação. O que a teoria da eficácia erga omnes tem feito, portanto, a pretexto de facilitar a defesa do consumidor, é restringir a discussão judicial sobre temas relevantes. Aliás, a tese de que haveria um microssistema próprio do processo coletivo e de que, por isso, as normas do CDC acerca da extensão do dano deveriam ter primazia na interpretação da eficácia da sentença coletiva não passa de mais um academicismo rocambolesco. O CDC não tem qualquer ascendência ou primazia sobre a LACP, muito menos sobre a Constituição e o pacto federativo. Por outro lado, essa teoria tem servido, na prática forense, como um abrupto e deletério instrumento de intervenção discricionária – mormente pelo Poder Público – na atividade econômica. Nesse contexto, soa contraditório e até mesmo ingênuo falar-se hoje em liberdade econômica e segurança jurídica. Pois não é possível haver nada disso num ambiente econômico em que um juiz, com a chancela do tribunal, possa determinar uma solução ad hoc acerca de determinada questão com validade nacional instantânea a partir de uma simples disposição do querer. O equívoco teórico dessa construção é, portanto, autoevidente.

Houve ainda outro equívoco determinante para que essa teoria ganhasse força, dessa vez de cunho mais pragmático: enxergou-se, no julgamento dos RESps 1.243.887/PR e 1.247.150/PR, ambos submetidos ao regime dos recursos repetitivos, um precedente com eficácia vinculante do Superior Tribunal de Justiça que supostamente teria aderido a ela. Mas o que aquela Corte fez, ali – ou, no limite, o que ela só poderia ter feito – nesses julgados, não foi concluir pelo afastamento dos limites territoriais dos efeitos da sentença previstos na LACP, mas, sim, definir, numa situação específica (relativa a expurgos inflacionários), que a liquidação e a execução individual da sentença coletiva proferida poderiam ser propostas no foro do domicílio de seus beneficiários, sem nenhuma restrição territorial, com o intuito de preservar a autoridade da coisa julgada já formada. E o STJ assim o fez porque a própria sentença discutida – que, repita-se, já havia transitado em julgado – previu expressamente que os seus efeitos alcançariam “todos os poupadores da instituição financeira do Estado do Paraná”, de modo que alterar essa conclusão, na fase de liquidação e execução de sentença, para passar a respeitar os limites territoriais previstos no art. 16 da LACP, culminaria, na prática, em vulneração da coisa julgada.

A rigor, portanto, o STJ não poderá ter firmado ali, propriamente, precedente com eficácia vinculante que afastasse os limites territoriais dos efeitos da sentença previstos na LACP. O que se deu foi uma decisão acerca do alcance da coisa julgada num caso específico. Mas isso foi o tanto que bastou para que o precedente passasse a ser invocado a torto e a direito pelos tribunais do país e pela academia para justificar a eficácia nacional das sentenças coletivas. Embora algumas vozes dissonantes na doutrina tenham apontado isso2, o fato é que o próprio STJ – que já havia proferido inúmeros julgados reconhecendo a legalidade do art. 16 da LACP (v.g., REsp 1114035/PR) – vem atribuindo, em julgados recentes, eficácia à sentença coletiva para além dos limites territoriais de seu órgão prolator. A discussão, de todo modo, é de inegável matriz constitucional e a última palavra caberá ao Supremo Tribunal Federal, que, no dia 27/2/20, reconheceu a repercussão geral do tema nos autos do Recurso Extraordinário 1.101.937/SP. É que a questão, na essência, e a modo de resumo, diz com federação-jurisdição: ela diz com os limites do poder jurisdicional. Afinal:

a) a Constituição da República, em seus arts. 2º, 18, e 21 a 24, consagra não apenas a separação de Poderes, mas, também, a divisão/limitação de poderes dentro dos Poderes; e a Federação é essa técnica política de limitação; ela molda o Legislativo (o legislador municipal não legislará sobre matéria estadual, e este, sobre federal, etc.), o Executivo (o administrador municipal não praticará atos de competência do administrador estadual, etc.), e também o Judiciário; no que tange à jurisdição, isso significa que, via de regra, nenhum magistrado, salvo hipóteses excepcionais, previstas em lei, detém jurisdição nacional (CF, art. 92, § 2º); antes, a jurisdição é firmada pelos limites da sua investidura (estadual ou regional);

b) essa discussão, inclusive, não é nova na Corte Suprema: em 1997, a constitucionalidade do art. 16 da LACP chegou a ser questionada, por meio da ADIn 1.576. Embora o mérito da ação não tenha sido julgado, o Ministro Marco Aurélio, ao indeferir, submetendo o tema ao Pleno, a liminar pleiteada, foi justamente no ponto da questão constitucional ao consignar: “O artigo 16 da lei 7.347, de 24 de julho de 1985, harmônico com o sistema Judiciário pátrio, jungia, mesmo na redação primitiva, a coisa julgada erga omnes da sentença civil à área de atuação do órgão que viesse a prolatá-la. A alusão à eficácia erga omnes sempre esteve ligada à ultrapassagem dos limites subjetivos da ação, tendo em conta até mesmo o interesse em jogo – difuso ou coletivo – não alcançando, portanto, situações concretas, quer sob o ângulo objetivo, quer subjetivo, notadas além das fronteiras fixadoras do juízo. Por isso, tenho a mudança de redação como pedagógica, a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do Juízo e, portanto, o respeito à competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Isso não implica esvaziamento da ação civil pública nem, tampouco, ingerência indevida do Poder Executivo no Judiciário”;

c) a competência – e, pois, a medida de jurisdição – para processar e julgar uma demanda é definida em primeiro grau, pelas leis de regência; na via recursal não há ampliação nem de competência nem de jurisdição; mesmo tribunais superiores – embora seus precedentes consubstanciem teor persuasivo, a ser aplicado a outros casos – só julgam, na via recursal, o caso concreto; o Ministro Noronha já assentou muito bem a esse respeito, ao julgar o RESp 1.114.035/PR, que “a circunstância de a causa ter chegado, pela via recursal, a esta instância superior não tem o condão de atribuir à sentença civil o pretendido alcance nacional”;

d) as exceções, isto é, as hipóteses de jurisdição nacional, estão previstas na Constituição Federal ou no Código de Processo Civil, e dizem, basicamente, ou com julgamentos de jurisdição constitucional concentrada, ou, mais recentemente, com repetitivos ou IACs, em que são veiculadas teses de direito vinculantes; ali, sim, há eficácia erga omnes nacional (CPC, art. 927);

e) tanto é assim, que o CPC/15, ao elencar o rol de provimentos com eficácia erga omnes nacional, não incluiu decisões proferidas em ações coletivas;

f) de modo que, quando o CDC fala em eficácia erga omnes da sentença coletiva (art. 103), isso não elide o fato de que sua jurisdição não é e nem pode ser nacional, mas geograficamente limitada; é o que dispõe o art. 16 da LACP;

g) não há conflito, portanto, entre CDC e LACP, nem, muito menos, ascendência ou primazia daquele em relação a esta (nem muito menos do CDC sobre a Constituição); um complementa o outro (na forma, aliás, dos arts. 117 do CDC e 21 da LACP), numa convivência harmônica com a Constituição e ao pacto federativo, aplicado à jurisdição, porque a eficácia subjetiva da sentença (a sua força para gerar título executivo) está jungida a esta.

Já faz tempo, seja como for, que essa teoria foi engendrada. E não ocorreu a ninguém, ou a muito poucos, quando ela nasceu, a agressão nela embutida às liberdades republicanas. Na verdade, pareceu, de fato, a todos, uma teoria muito engenhosa e muito útil. Ninguém se espantou, enfim, com (mais) essa erupção nociva de publicismo. Hoje, no entanto, que o publicismo avança sobre si próprio para se devorar a si mesmo – no fundo, como já foi bem diagnosticado, trata-se de uma disputa de poder para ver quem, dentro do publicismo, é o mais publicista e pode mais –, invoca-se a lembrança perdida de garantias, e direitos, e ordem, e segurança, e lei etc. Está na moda falar disso, do chamado garantismo. Mas não viram o que se passava e o que crescia, diariamente, diante dos olhos de todos. Não viram que o autor coletivo adentrava seu gabinete, ligava seu computador, abria o cardápio e já sabia de antemão o que iria escolher: uma ideia qualquer sobre temas midiáticos, um pedido bem aberto, uma multa diária (bem alta, para um fundo sem fundo), danos morais coletivos (sempre para esse fundo sem fundo) e, para arrematar, uma extensão nacional – assim o pleito, comoditatis causa, ficava completo com um máximo de eficácia e um mínimo de esforço. Se é assim, ou se assim efetivamente vier a prevalecer – falta o Supremo Tribunal Federal dizer definitivamente sobre isso –, então uma teoria terá alterado a Constituição. Nesse contexto, e a partir daí, será mais honesto dizer que o Brasil não é uma Federação, mas um Estado Central; ou que o Brasil, de fato, é uma Federação de papel. Garantismo, no entanto, é a proteção da liberdade contra o poder. Pois “o problema fundamental da política (...) é a perigosa acumulação de poder que o Estado representa”, denunciava Karl Popper (“A sociedade aberta e seus inimigos”). A democracia e mais precisamente a crítica e a vigilância da opinião pública são os meios de exercer esse controle. Porque numa democracia os poderes dos governantes têm de ter limites. E, entre nós, essa vigilância e essa crítica precisam ser redobradas, que a Constituição, senhoras e senhores, é do tamanho do Brasil.

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1 LIEBMAN, Enrico Tullio, Eficácia e Autoridade da Sentença e outros escritos sobre a coisa julgada, Forense, RJ, 1984, pág. 170.

2 WALD, Arnoldo e MENDES, Gilmar Ferreira, Mandado de Segurança, MEIRELLES, Hely Lopes, SP: Malheiros, 2008, p. 247.

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*Bruno Di Marino é sócio advogado do escritório Basilio Advogados.

*Daniel Guerra é advogado associado do escritório Basilio Advogados.

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