Nossa atenção ao fenômeno da violência doméstica contra a mulher está comprometida com os postulados da hermenêutica contemporânea, entre eles, a premissa de ordem dialética, a qual afirma que a “coisa mesma” ou a realidade como revelação, alteridade e constituição lança perguntas ao sujeito. Tal perspectiva coloca o mundo como ponto de partida do conhecimento. Há, segundo o poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926), uma melodia das coisas: “seja o canto de um candeeiro ou a voz de uma tempestade, seja o respirar da noite ou gemido do mar que o rodeia – sempre desperta por detrás de você uma vasta melodia, tecida por mil vozes, na qual só aqui e ali há espaço para fazer um solo. Saber quando é a sua vez – eis o segredo da solidão”. Ora, escutar o mundo e sua melodia consiste em cuidar do outro que nos interpela e nos constitui como sendo aquilo que somos, uma vez que nos tornamos radicalmente o modo como cuidamos do outro.
Realmente, ao escutarmos o mundo sobre o fenômeno da violência doméstica contra a mulher, se faz necessário enfrentar a seguinte melodia expressa pelo Atlas da Violência 2009, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que afirma um aumento de 30,7% no número de feminicídios no Brasil, entre 2007 e 2017, com cerca de 13 (treze) assassinatos por dia.
Em 2019 morreram 4.936 (quatro mil novecentas e trinta e seis) mulheres, vitimadas pela violência doméstica, o maior registro desde 2007. Impossível, em termos hermenêuticos, deixar de ouvir essa triste melodia, especialmente no âmbito da experiência jurídica pensada em atenção à concretude da ideia de justiça, como forma de cuidado do hipossuficiente dentro das relações sociais que este se faz presente, ou seja, primeiro o mundo se revela. Assim, no interior deste mundo a ciência do direito, que está atenta a esta terrível melodia, ampliou o conceito tradicional de violência para fins de concessão de medidas protetivas, a qual funciona como obstáculo essencial na luta contra o feminicídio.
A violência contra a mulher pode ser detectada em cinco situações a saber: 1-integridade física; 2- integridade psicológica; 3- imagem, honra e moral; 4- no âmbito patrimonial; 5- na dignidade sexual. Mesmo diante de uma maior cobertura jurídica acerca da situação da mulher no ambiente de afetividade doméstica os números da violência, ainda, são alarmantes. Isso indica que a construção dos mecanismos de proteção da mulher ainda precisa de aprimoramento e ampliação. Estamos longe do apogeu e dos aplausos que gratificam os vitoriosos. A triste música revela ainda que os métodos tradicionais do sistema penal clamam por mudanças que tenham o condão de reverter a presente situação.
No que toca a ampliação das técnicas de proteção, o principal nó reside na dificuldade orçamentária de aumentar os pontos de atendimento das vítimas de violência doméstica, no que se refere ao apoio jurídico. Na minha experiência como juiz de Direito Titular do 3º Juizado de Proteção da Mulher da Comarca de Belo Horizonte, constatei que as vítimas de violência doméstica que estavam assistidas pela Advocacia ou pela Defensoria Pública obtiveram um tratamento mais cuidadoso e humano no curso desta terrível experiência. Assim, dentro de uma postura hermenêutica de escuta do mundo, cabe-nos observar que toda faculdade de Direito tem um núcleo de prática jurídica que com uma certa reforma e treinamento pode passar a atender as vítimas de violência doméstica do bairro ou região, onde a instituição de ensino está situada.
Neste serviço ganha a faculdade e a sociedade, pois o papel da primeira é formar pessoas para a vida real e o da segunda é construir relações pacíficas entre os seres humanos (Mt 5,5: “Bem-aventurados os pacificadores, porque herdarão a terra”).
Portanto, a única certeza que a hermenêutica jurídica pode apresentar acerca do fenômeno da violência doméstica contra mulher reside na extrema necessidade de, ainda, pensarmos em novas técnicas de aprimoramento e ampliação da proteção, porque persiste à triste melodia do feminicídio neste mundo e neste tempo, impondo-nos o dever de cuidar do outro como forma de também cuidar de nós. Eis, o urgente trabalho reflexivo que deve nos dominar neste mês internacional da mulher, então, tempus fugit memento mori.
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*Richard Fernando da Silva é professor da Faculdade Batista de Minas Gerais e juiz de Direito.