Migalhas de Peso

A lei como estorvo ou limite

A Constituição garante um tratamento igual para todos, o que não admite parcialidade no julgamento das pessoas.

6/3/2020

Na faculdade de direito estudamos que a Constituição escrita existe para limitar a ação do Estado. E como os Poderes e instituições não têm alma própria, elas assumem a consciência e alma daqueles que atuam por eles e elas, que são os servidores públicos, categoria na qual se incluem juízes, promotores, procuradores do Estado.

A administração pública, inclusive a da justiça, é regida por princípios constitucionais que servem para delimitar os aplicadores das leis, obedecendo o princípio regente que é o da razoabilidade. Ele nem está escrito na Constituição Federal, só na Paulista, mas o Supremo Tribunal Federal o reconhece como norma escrita, tal sua relevância imperial.

O que tem acontecido na aplicação da lei é a ultrapassagem do limite, mas ultrapassagem do limite sem obediência à razoabilidade, que chega até a revogação dissimulada de texto expresso da Constituição. Essa prática de violar dissimuladamente a Constituição está sendo disseminada como método de interpretação pelo sistema de justiça, criando forte instabilidade institucional. 

Quando a Constituição brasileira e as leis começaram a ser tratadas como estorvo na área da distribuição da justiça? Escolhemos como termo de análise o ato-fato destacado pelo cientista político e professor Cláudio Gonçalves Costa, em artigo veiculado no jornal Valor Econômico, em 12 de fevereiro último, sob o título “Bolsonarismo e lava-jatismo”, no qual recorda parte da decisão do TRF-4 que, para não punir o atual ministro da Justiça, o desembargador-relator lançou, impunemente, como razão de decidir, no dia 22 de setembro de 2016, o absurdo jurídico-constitucional e legal que ecoa até o sem-fim:

É sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada operação Lava Jato, sob a direção do magistrado representado, constituem fato inédito (único, excepcional) no Direito brasileiro. Em tais condições, nele haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico destinado aos casos comuns”. Nessa representação relata-se a permissão de grampos em escritório de advocacia, divulgação de interceptações telefônicas, envolvendo o presidente da República e a ‘importação de provas da Suíça, sem autorização necessária’.

O caso inédito, capturado subjetivamente pelo desembargador-relator, não pode ser o da corrupção, dado que essa “divina senhora”, na história do país, é convocada para prestar seus serviços ajudando a golpear as nossas instituições democráticas. Não é inédita a corrupção, porque o Supremo Tribunal Federal já condenara pela primeira vez por corrupção, no processo do mensalão, políticos e empresários. Não é inédita a corrupção, uma vez que os tribunais já tinham condenado o juiz Lalau, alçado como “símbolo da corrupção no Brasil”, um magistrado como símbolo, junto com o empresário e senador Luiz Estevez. Não pode ser inédito qualquer fato relacionado à corrupção, porque em 1964 golpearam as instituições democráticas do País, dizendo-se tratar de ação revolucionária profilática de combate à corrupção. Ela é uma velha companheira das elites brasileiras, civis e militares.

A Constituição garante um tratamento igual para todos, o que não admite parcialidade no julgamento das pessoas. E, assim, se a imparcialidade não existe, é porque magistrado(a), como qualquer pessoa, tem seus traumas, seus preconceitos, sua ideologia, seus interesses, sua experiência de vida, sua ambição, seus clubes e escolas socialmente diferenciados, resultando que dessa realidade somente com esforço heroico, o magistrado se aproxima da imparcialidade, no julgamento de qualquer ação judicial.

Se a imparcialidade é um mito, como é, a decisão vitoriosa do TRF-4 define-se como um salvo-conduto para toda a sorte de disparate pessoal, para o qual a regra jurídica virou um estorvo e a justiça um simulacro. Essa desenfreada liberdade de agir e fazer o “Intercept” desventrou como pequeneza ética do juiz e de procuradores, por meio da Vaza Jato.

O desembargador tinha a objetividade do ato-fato, que por si só bastaria para uma condenação do magistrado. Tempo depois, com a eleição presidencial, aflorou para o “distinto público” o acerto das críticas destinadas ao santuário da Lava Jato, pelos excessos realizados até com arrogância midiática. Afinal, renegando a magistratura no exercício da qual ordenara a divulgação de diálogo presidencial, envolto pela discrição da intimidade invadida, aparece o oportunismo deslavado do Magistrado ambicioso. E o inédito do desembargador-relator se revela como criação da conveniência da solidariedade corporativa.

O fato realmente inédito é o magistrado cometer, em tese, um delito na operação chamada Lava Jato e não ser investigado, nem punido. Aliás, o então magistrado confessou a travessura ilícita, e pediu desculpas ao ministro Teori Zavascki, que as acatou. Tal pedido, por consequência, valeu como extinção de punibilidade antecipada, se crime apurado houvesse. Esse ato de aceitação de desculpas é o que é inédito. Agora, corre-se o risco de se assistir esse precedente ser invocado por qualquer acusado de crime, que pede desculpas à Justiça e recebe em troca a negativa, que certamente não irá inverter o decantado coro dos hipócritas “A justiça é para todos”, quando o ineditismo da decisão corporativa do TRF-4 induz, seguramente, a que “A justiça não é para todos”.

No caso do ex-magistrado, mesmo com o pedido de desculpas (pouco noticiado e pouco interpretado), deveria ter sido, no mínimo, investigado, se há delito em tese. Um exemplo que pode ser invocado é do magistrado aposentado, que cometeu delito durante seu tempo de atividade e se a investigação confirmar o delito e ele ser condenado, poderá até perder sua aposentadoria! Claro, se o julgamento fosse sem a benção da solidariedade corporativa.

Torcer a aplicação da lei é uma forma deslavada de corrupção. E como tal, a decisão que afronta princípios constitucionais, ela não transita em julgado, na lição do constitucionalista. Joaquim Gomes Canotilho, sobre “A vinculação do Poder Judiciário” em relação à efetividade dos direitos fundamentais da pessoa”1, preleciona:

A eficácia direta dos direitos fundamentais em relação ao “poder judicial”, traduzir-se-á geralmente no seguinte: (a) garantia da via judiciária para a defesa dos direitos fundamentais, evitar a não operatividade prática pelo sistema de declinação de competências; (b) dever de os tribunais observarem os direitos fundamentais contra ou sem lei, levantando oficiosamente, se for o caso, a questão da inconstitucionalidade dos atos normativos, por violação de direitos, liberdades e garantias; (c) proibição de os tribunais violarem, por meio do conteúdo, os direitos fundamentais. Nesta última hipótese, estaremos perante a questão da proteção dos direitos fundamentais contra sentenças judiciais. A proteção assegurada pela eficácia dos direitos fundamentais perante os poderes públicos inclui a proteção por intermédio dos tribunais e contra os tribunais. Os atos jurisdicionais dos tribunais não poderão ser considerados como atos definitivos de caso julgado, se deles resultar, de forma autónoma, a violação dos direitos fundamentais.

Essa lição do mestre português serve de paradigma para se avaliar o grau de violação ao direito fundamental consumada pela decisão do TRF-4, porque atropelou os princípios que protegem as vítimas da invasão ilegal de sua intimidade, seja essa invasão praticada por magistrado, ou não. Mas, inédita se por magistrado?

A decisão de arquivamento da representação confere à insegurança jurídica contribuição extraordinária, porque um exemplo inédito e decepcionante. Nesse caso, a lei é um estorvo.

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1 DIREITO CONSTITUCIONAL. Almedina, Coimbra, 4. ed. p.465.

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*Feres Sabino é advogado.

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