Essa é uma discussão jurídica que se arrasta ao longo dos anos e sempre causa embates ferrenhos.
Geralmente, os que sustentam que delitos praticados na direção de veículo automotor são dolosos buscam supedâneo em afirmações de que o autor do fato dirigia alcoolizado, sem habilitação, participava de racha ou de que desrespeitou uma norma de trânsito, tal como, limite de velocidade ou local inadequado para conversão.
As condições acima citadas são daquelas que causam indignação em qualquer cidadão, pois evidenciam irresponsabilidade do agente, o que é condenado pelo senso comum.
Embora situações como essas realmente causem repulsa, não podem servir de anteparo para ofuscar a técnica, justificando interpretação à margem da legalidade.
É preciso adiantar que não pretendemos fazer juízo de valor acerca da legitimidade de decisão específica ou mesmo da atuação do Ministério Público em casos concretos, mas apenas revisitar o tema que parece nunca se sedimentar, muito embora as balizas conceituais sejam muito bem definidas.
O indistinto entendimento e insistente afirmação de que tais crimes são por regra dolosos, reflete a clara ideia de se a buscar a condenação máxima a qualquer custo, à revelia do justo emprego dos institutos do dolo eventual e da culpa consciente.
No ponto, lembramos do saudoso professor Guilherme José Ferreira da Silva que sempre alertava em suas cultas aulas ser falaciosa a afirmação de que uma linha tênue separa as figuras do dolo eventual da culpa consciente.
Em verdade, há uma diferença abissal entre os dois institutos.
No dolo eventual, o agente visualiza claramente a possibilidade de sua conduta produzir um resultado danoso extra, e tal não é suficiente para fazer-lhe desistir, de modo que persiste com seu plano egoístico, e pouco se importando com o que dele pode advir age aquiescendo com o resultado adicional (morte ou lesões corporais, via de regra).
Por seu turno, na culpa consciente, o sujeito age antevendo a probabilidade do resultado mais danoso, porém, munido da certeza de que as cautelas que adotará, ou mesmo suas habilidades pessoais, não permitirão que ocorra, ou seja, em sua consciência não admite que poderá causar a morte ou lesão corporal de outrem, daí porque não assume o risco.
Sendo evidente a diferença entre as duas figuras jurídicas, temos por certo que, na esmagadora maioria dos casos, o acidente de trânsito comporta enquadramento na culpa consciente, mesmo quando o agente está embriagado, por exemplo, haja vista que, normalmente o cidadão comum não trabalha ou aceita a ideia de se tornar um homicida.
Ao contrário, em geral as pessoas, ao menos os cidadãos de bem, que ainda acredito ser maioria, partem do pressuposto de que sua conduta, ainda que ilícita, não chegará ao ponto de atingir outrem de modo tão brutal.
Cumpre lembrar que considerando a expressa disposição legal o dolo eventual, enquanto elemento subjetivo do tipo penal, constitui figura excepcional em se tratando de delitos de trânsito.
Por meio da lei 13.546/17, o legislador cuidou de qualificar o homicídio e a lesão corporal culposos praticados na direção de veículo automotor sob a influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência, conforme se observa da leitura dos artigos 302, § 3º e 303, § 2º, ambos do Código de Trânsito Brasileiro.
Cumpre ainda relembrar que referida norma também criou a figura típica autônoma que abarca o popular racha, artigo 308, tendo destacado nos parágrafos de referido dispositivo que se desse sobrevier lesões graves ou morte, e das circunstâncias não se depreender com segurança o dolo, direto ou eventual, serão aplicadas penas maiores, ou seja, mais uma vez qualificou os tipos culposos.
Com efeito, antes das alterações acima citadas o Legislador já tinha criado causas de aumento de pena para o homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor, quando o agente não é habilitado, quando o crime ocorre em faixa de pedestre, etc., vide lei 12.971/14 que incluiu o parágrafo primeiro no artigo 302, do Código de Trânsito.
Ao nosso sentir, a criação de delitos culposos com penas mais severas, denota com clareza meridiana que o legislador não coaduna com a recalcitrante corrente que insiste em afirmar que delitos cometidos ao volante são geralmente dolosos.
Nesse diapasão, com todo o respeito aos que pensam em sentido oposto, entendemos que, via de regra, homicídio e lesões corporais praticadas na direção de veículo automotor são crimes culposos, e que somente é possível enquadrá-los como dolosos, quando satisfatoriamente comprovada a intenção deliberada ou o menosprezo pelo resultado extraordinário.
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*Paulo Braga é advogado e pós-graduado em Direito Público.