A possibilidade de se rejeitar uma denúncia já recebida após a apresentação da resposta à acusação sempre foi tema que suscitou grandes discussões tanto na doutrina quanto na jurisprudência.
A posição mais conservadora sustenta que a rejeição da denúncia após o recebimento da exordial acusatória seria incabível por conta da ocorrência da chamada preclusão pro judicato. No instante processual oportuno, o juízo entendeu por receber a denúncia e permitir que ele reveja essa decisão atentaria contra a segurança jurídica.
Outro argumento muito frequente entre os adeptos dessa corrente é o de que a rejeição tardia da denúncia violaria o princípio do devido processo legal, já que a lei, em nenhum momento, concede ao magistrado a possibilidade de se retratar da decisão que recebeu a exordial acusatória.
Quanto aos que defendem a possibilidade da revisão da decisão de recebimento da denúncia, posição essa que hoje é majoritária1, argumentam que inexiste preclusão pro judicato e um juiz, quando pratica um ato eivado de defeito, não só pode como deve refazê-lo, em respeito ao sistema de invalidades processuais2.
Ademais, por se tratar da matéria de ordem pública – condição da ação e pressupostos processuais - as hipóteses de rejeição da denúncia poderiam ser reconhecidas em qualquer fase do processo.
Assim, para essa corrente, a defesa poderia tratar em sede de resposta à acusação, não só das hipóteses de absolvição sumária, elencadas no art. 397 do CPP, mas também das questões atinentes à rejeição da denúncia, previstas no art. 395 do CPP.
Com a vigência do pacote anticrime e a instituição da figura do juiz das garantias, o debate acerca da possibilidade da rejeição tardia da denúncia certamente voltará à tona com bastante intensidade e a corrente que vem até então se sagrando vencedora terá que enfrentar novos argumentos para manter esse status.
O art. 3°-B, inciso XIV do CPP, criado pela reforma, promoveu uma relevante alteração: agora quem possui a competência para decidir sobre o recebimento da denúncia é o juiz das garantias. Contudo, a apreciação das teses levantadas em sede de resposta à acusação continua a ser de competência do juiz de instrução.
Posta essas informações, o problema já começa a se desenhar. Tanto o juiz das garantias quanto o juiz de instrução são órgãos de mesma hierarquia; ambos, em regra, constituem juízos distintos; o CPP conferiu ao juiz das garantias a competência para decidir sobre o recebimento da denúncia. Pode um juízo rever decisão proferida por outro de igual hierarquia?
Se entendermos que, após a vigência do pacote anticrime, ainda é facultado ao magistrado à possibilidade de rever a decisão de recebimento de denúncia após apresentação da resposta à acusação, estaríamos alçando o juiz de instrução à condição de instância revisora das decisões proferidas pelo juiz das garantias.
Consagraríamos a possibilidade de um juiz revogar decisão prolatada por distinto magistrado de mesma hierarquia, por exemplo, apenas por interpretar conceitos legais e doutrinários de maneira diversa da qual o outro juiz interpreta.
Todavia, se compreendermos que a rejeição tardia da denúncia não é mais aceita pelo ordenamento jurídico, estaríamos impondo uma séria limitação ao direito de defesa, que acarretaria em severos danos aos fundamentais princípios do contraditório e da ampla defesa.
Isso porque o recebimento da denúncia é ato judicial que, em regra, é proferido antes da existência de qualquer concessão de oportunidade de manifestação à defesa, que só terá voz para apresentar suas objeções sobre a matéria em sede de resposta à acusação.
Em que pese o exposto debate principiológico, a resposta para o problema se encontra em outro dispositivo legal, também fabricado pelo pacote anticrime. O art. 3°-C, §2° do CPP é claro ao afirmar que "as decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias.".
Embora o legislador, atecnicamente, trate sobre a obrigatoriedade do magistrado de instrução reapreciar, no prazo de 10 dias, a necessidade das medidas cautelares em curso, no mesmo parágrafo que regula o fato de que as decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz de instrução, não há porque não entender que esse texto abarca também as decisões de recebimento de denúncia.
No mencionado dispositivo, não existe qualquer alusão, tanto em seu caput, quanto no parágrafo transcrito, de que o legislador estava se referindo apenas as decisões que versem sobre medidas cautelares ao citar que as decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz de instrução e julgamento.
Portanto, se o juiz de instrução não está atado às decisões proferidas pelo juiz das garantias, evidente que ele pode decidir sobre matéria já apreciada por esse juízo de modo diverso.
E não há que se falar também em qualquer espécie de violação aos princípios do devido processo legal e do juiz natural pelo fato do CPP ter outorgado o juiz das garantias como o competente para deliberar sobre o recebimento da denúncia. Isso porque a lei, expressamente, concede ao juiz de instrução o poder de decidir de forma distinta da qual decidiu o juiz das garantias.
Além disso, invocar a garantia do juiz natural para fundamentar a impossibilidade da rejeição tardia da denúncia é argumento que carece de sentido. Primeiro porque, como já mencionado, a lei, de maneira prévia, fixa a premissa de que o juiz de instrução não se encontra vinculado às decisões proferidas pelo juiz das garantias. Segundo porque o princípio do juiz natural tem como principal razão de ser assegurar um julgador imparcial3, funcionando como um fator de limitação dos poderes persecutórios estatais. Permitir que o juiz de instrução prolate decisão distinta da do juiz das garantias em nada prejudica a imparcialidade de ambos os juízos.
Esperamos e seja essa a posição que prevaleça nos tribunais superiores frente aos iminentes debates que surgirão. Afinal, vedar que magistrados revejam uma decisão que recebe denúncia após apresentação da resposta à acusação além de ser um entendimento, sob o prisma dogmático, incorreto, também é, sob o ponto de vista utilitarista, extremamente contraproducente, já que o judiciário, que se encontra assoberbado de trabalho, terá que gastar o seu valioso tempo se ocupando de processos natimortos, realizando audiências de instrução e julgamento e prolatando sentenças absolutamente desnecessárias, pois incapazes de alterar o proveito final do processo, que já estará sacramentado por vícios preexistentes.
1 Vide HC 294.518/TO, AgRg no REsp 1.218.030/PR, HC 478542 RJ, todos do STJ.
2 LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p.735.
3 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2014, p.33
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LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2014.
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*Lorenzo Moreira Alves é bacharel em direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e pós-graduando em direito penal econômico pela PUC-Minas.