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A era do compartilhamento – Novas (?) formas de ocupação e convívio

Toda essa comodidade dos tempos atuais é possível não só em razão dos avanços da tecnologia que conectou e aproximou mais as pessoas, mas também porque a sociedade se rearranjou. Trata-se de uma nova ordem mundial, uma nova forma de viver.

30/1/2020

A cada dia surgem novas formas de compartilhamento, as quais rapidamente são incorporadas ao nosso cotidiano. Quando nos damos conta já não lembramos como era viver sem elas alguns anos atrás.

Primeiro, foi a internet sem fio (wi-fi), depois, veio a locação de imóveis por temporadas curtas através dos aplicativos e sites (popularizada pelo famoso AIRBNB). Então, surgiram os serviços de transporte por aplicativo (uber, cabify, 99, etc), que hoje também oferecem a opção de compartilhar a corrida com mais passageiros. Em seguida, surgiu a plataforma de caronas que permite compartilhar os custos da viagem (blablacar). Sem falar nos patinetes e bicicletas de uso compartilhado que já se popularizaram nas grandes cidades.

Você já se deu conta de como o compartilhamento é um caminho sem volta? Seja por questões econômicas, ambientais, logísticas ou por praticidade. Alguns anos atrás, era impensável para muitos dividir por algumas horas o balcão de um bar ou restaurante com estranhos…que dirá compartilhar uma viagem no seu veículo.

Vamos pensar em uma simples ida ao dentista nos dias de hoje em uma grande cidade como São Paulo. Você usa uma patinete compartilhada do escritório até a estação de metrô e ao descer chama um uber até seu destino. Ao chegar no consultório, pede a senha do wi-fi à recepcionista. Enquanto aguarda ser chamado, você abre o spotify e escolhe uma playlist publicada por alguém que você nunca viu na vida. Então resolve entrar rapidamente nas suas redes sociais e compartilha um post aqui, uma foto ali. Checa seu whatsapp, lê e compartilha uma mensagem que recebeu em um grupo com outro grupo. Agora imagine essa mesma ida ao dentista há 20 anos….sem uber, sem wi-fi, sem redes sociais, sem spotify, apenas com uma revista de fofoca nas mãos ou uma Veja de duas semanas atrás.

Toda essa comodidade dos tempos atuais é possível não só em razão dos avanços da tecnologia que conectou e aproximou mais as pessoas, mas também porque a sociedade se rearranjou. Trata-se de uma nova ordem mundial, uma nova forma de viver. A economia colaborativa ou compartilhada se faz cada vez mais presente na vida das pessoas, principalmente das novas gerações.

Naturalmente esta nova ordem se dissemina em todas as áreas e não seria diferente com o direito imobiliário. De certo, você já foi a um coworking. Pode ser até que trabalhe em um. Mas já ouviu falar em cohousing, coliving, uliving, senior house, self storagecondohotel? A semelhança entre todos estes produtos é justamente o conceito de compartilhamento.

coworking nada mais é que um local de trabalho flexível e compartilhado, onde mesas ou estações de trabalho podem ser alugadas diariamente, semanalmente ou mensalmente. Alguns coworkings são verdadeiros hubs (polos) de diferentes organizações.

cohousing é um modelo de moradia em que as pessoas (não pertencentes à mesma família) planejam uma vida em conjunto a longo prazo, diferentemente das tão conhecidas “repúblicas” que são frequentadas por estudantes, em caráter temporário. Vem sendo muito utilizado em outros países por idosos que desejam preservar a qualidade de vida e manter o convívio social.

Já o coliving é um modelo de moradia que une pessoas com os mesmos valores, interesses e filosofia de vida. As pessoas que convivem neste modelo têm um sentimento de grupo e compartilham espaços comuns de convivência bem como atividades como refeições, limpeza, eventos. Você deve estar pensando que isto não é nenhuma novidade. Olhando para trás, vemos que o ser humano já viveu muito em comunidade em outros tempos, mas este tipo de convivência, após cair em desuso, agora volta a ser uma tendência urbana. Este modelo, assim como outrora, engloba um senso de comunidade, sustentabilidade e economia colaborativa.

uliving são prédios planejados e concebidos para receberem moradores, com áreas compartilhadas como: academia, lavanderia, espaço de convivência, cozinha comunitária, coworking, etc. Estes imóveis são pensados para oferecer toda a estrutura necessária e adequada a essa destinação, tal como vedação acústica. Inicialmente, tinha foco no público universitário, mas hoje em dia tem atraído profissionais autônomos na faixa dos 30 anos.

Senior housing, como já indica o nome, é voltado para os idosos. São apartamentos mobiliados com toda a estrutura necessária para este público, em específico. Oferecem assistência médica, hospitalar, religiosa.

Self Storage é a locação de frações de espaço de bem imóvel para armazenamento de bens móveis. Não há responsabilidade da locadora sob o que é depositado no espaço-box.

O condohotel se diferencia dos modelos anteriores, pois, neste caso, a pessoa é proprietária da unidade no empreendimento hoteleiro mas não pode fazer uso da mesma. Nos modelos anteriores todos fazem uso do espaço sem ter a propriedade. Por outro lado, não deixa de trazer o conceito de compartilhamento, já que o hotel possui vários coproprietários. Trata-se de uma forma de propriedade não convencional, com um caráter de investimento, ou seja, visa a rentabilidade. Pode-se dizer que é uma forma disruptiva de exercer o direito de propriedade.

Diante de todos estes novos modelos de espaços compartilhados, você deve estar se questionando se estas formas de ocupação não ferem o direito de propriedade, e como ficaria a relação dos locatários perante os demais condôminos?

A Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XXII, garante o direito de propriedade, e o artigo 1.228 do Código Civil de 2002 prevê, em seu parágrafo primeiro, que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais”. Por sua vez, o artigo 1.335, inciso II, do Código Civil, garante ao condômino o direito de “usar das partes comuns, conforme a sua destinação”.

Desta forma, a primeira preocupação do locador e do locatário deve ser a de respeitar a destinação do condomínio prevista na convenção condominial. Se o condomínio é exclusivamente residencial, não é possível a locação de uma unidade para coworking, por exemplo. Lembrando que a mudança da destinação de um condomínio depende da aprovação da unanimidade dos condôminos, ou seja, de 100% dos proprietários – o que não é uma tarefa fácil de conseguir.

Assim, antes de elaborar a convenção condominial, o advogado deve entender qual a destinação e o público alvo do empreendimento para evitar futuros problemas. Cabe tanto ao incorporador como ao advogado entenderem que estas novas formas de uso do imóvel já são uma realidade e que é impossível prever qual será a próxima inovação. Portanto, quanto menos engessada for a convenção melhor, já que qualquer alteração em sua redação prescinde da aprovação de um quórum de 2/3 dos condôminos.

Por outro lado, penso que o nosso papel como operadores do direito é o de buscar a segurança jurídica para todas as partes, da melhor forma possível, mas sem inviabilizar a exploração econômica do imóvel. Como muito bem colocado pelo advogado Jaques Bushatsky:

Se o modo de viver é novo, será que as regras estabelecidas também o são? As convenções devem prever também o estilo de vida do público que busca este tipo de empreendimento. Aquelas velhas convenções – preocupadas, por exemplo, com o silêncio a partir das 20 horas – já não servem: nesse horário esse novo público nem chegou do trabalho! São necessárias previsões que sirvam aos novos moradores, que orientem a utilização compartilhada de instalações e equipamentos que muitos jamais viram ou tiveram, e que acabaram de conquistar.” (Coliving: uma nova modalidade para morar, publicado em O Estado de São Paulo, 27/05/2018).

Vale lembrar que a nossa justiça é morosa, prova disso é que a discussão sobre a legalidade do AIRBNB ainda não está pacificada em nossos tribunais. Sendo assim, o incorporador, ao planejar um novo empreendimento, deve ter em mente a velocidade que os modelos de produtos no mercado imobiliário vêm surgindo para evitar uma futura discussão em juízo. O adquirente, por sua vez, antes de comprar um imóvel, deve verificar os limites estabelecidos na convenção condominial para usufruir de sua unidade tranquilamente.

Portanto o desafio que temos é tornar estas novas realidades compatíveis com a legislação existente, preservando-se o direito de propriedade sem desrespeitar o regramento do condomínio nem prejudicar o bem-estar dos demais condôminos.

Lembrando que “o passado é uma roupa que não nos serve mais”.

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*Juliana de Oliveira Mazzariol é advogada associada da Advocacia Hamilton de Oliveira.

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