De vez em vez, a sociedade brasileira tem se deparado com intensas e habituais alterações da política de proteção previdenciária em uma verdadeira rotina de mudanças parciais, segmentadas, com qualidade/efetividade questionadas, sobretudo pela construção de discursos reformadores quase que sempre na revelia dos desejos de melhorias em um sistema de acolhida social.
E no cenário vigente nada há o que se comemorar, afinal, diuturnamente a sociedade recebe notícias de que os problemas relacionados ao INSS, por exemplo, se agravam em demasia, deixando a classe trabalhadora e também os próprios beneficiários do sistema completamente desprotegidos e a margem da inserção social.
O que se vê, essencialmente, é um sistema falido, fragilizado e que caminha sob uma gestão de visível ineficiência, onde se prefere obstar acesso as prestações e dificultar e muito a sua contemplação.
Atualmente, o contexto do atendimento pelo INSS é um tanto quanto sofrível ao seu público-alvo, aliás, filiados, inscritos e contribuintes do sistema, em que para o percebimento de uma pensão por morte, por exemplo, se espera meses e meses1.
E os problemas não são unicamente esses, infelizmente.
Sequer a plataforma eletrônica largamente divulgada como a bola de cristal de solução para todos os males, ou seja, o MeuINSS se adaptou as novidades da EC 103/19 em plena vigência desde 13 de novembro último numa amostra clara de ineficiência orgânica da estrutura previdenciária2.
E mais, com o advento da substanciosa EC 103/19 o pacote de prestações previdenciárias restou duramente desfigurado, com a extinção de benefícios, além da supressão de requisitos e a criação de outros pressupostos, em sua grande maioria de difícil acesso. Exemplificando, a aposentadoria especial que a partir de agora exigirá a comprovação do requisito etário para sua contemplação, vale dizer, o trabalhador exposto a um período mínimo de 25 anos ao agente físico “ruído” deverá permanecer nesse agressivo ambiente de trabalho até a demonstração da idade mínima.
Oportuno também ressaltar as modificações relacionadas ao benefício da pensão por morte, dando explícito tratamento diferenciado entre segurado e dependente, aliás, inconstitucional e inexistente na Teoria Geral do Direito Previdenciário, além de desprezar a condição de filiado, inscrito e contribuinte em certo patamar contributivo pelo segurado instituidor. Ora, se recebe cem por cento do salário-de-contribuição do instituidor, contudo, somente parte desse valor, vale dizer, sessenta por cento será o patamar de percebimento da sua dependente conjugal, sem reversibilidade de cota e com cumulação de benefícios mitigada.
Tem-se aqui uma inversão da conhecida Regra da Contrapartida (195, § 5º CF/88)3, lida unicamente na perspectiva arrecadatória, unilateral e restritiva, sem contemplar proteção máxima no mesmo peso da existência da contribuição, em uma completa e invertida lógica do sistema que vorazmente arrecada sem influência no plano de proteção, ou em outras palavras, sem a contrapartida.
No recente e surpreendente plano normativo a comunidade jurídica se viu premiada com a Medida Provisória 905/19, criada com a retórica da geração de novos postos de trabalho com um peso tributário a menor, contudo, em uma guinada mirabolante preferiu o texto normativo adentrar na dimensão previdenciária e abolir o Serviço Social do pacote de prestações do RGPS, especialmente do artigo 18 da lei 8.213/91 e ainda modificar essencialmente bases do auxílio-acidente, reduzindo e muito, por exemplo, sua expressão econômica, podendo chegar a valores abaixo da metade do salário mínimo vigente.
Outra situação que surpreende no contexto da MP 905/19 está inserida em seu artigo 9º quando isenta o empregador da contribuição previdenciária patronal por ocasião da opção de contratação de sua modalidade, desconstruindo o discurso único de déficit fiscal que justificou a urgência reformadora do sistema previdenciário, um completo paradoxo de pretensões ante a contradição dos enunciados normativos.
Por fim, a recente onda normativa de mitigação da “competência previdenciária federal delegada”, viva no artigo 109 § 3º do Texto Maior e que a partir da regulamentação da lei 13.876/19, diploma criado para restrição de acesso ao Judiciário, implementou o parâmetro objetivo de 70 quilometros como critério de autorização de permanência ou não do exercício dessa relevante competência previdenciária pela Justiça Estadual.
Assim, inobstante gigantescas alterações no plano de acesso ao direito dos benefícios previdenciários, também o trajeto jurisdicional para sua busca restou duramente ferido e relativizado, afastando o jurisdicionado de um dos mais primorosos direitos constitucionais, republicanos e democráticos, do acesso à Justiça.
O que se espera, em verdade, é um aumento vertiginoso da judicialização previdenciária, aliás, existente em larga escala, contudo, é a única alternativa válida de assegurar direitos tão drasticamente feridos, tendo a atual política previdenciária inaptidão completa de gestão funcional, preferindo abdicar de ouvir os atores sociais, a comunidade especializada e as entidades civis, mas, de outro lado, prefere produzir desigualdades em um país de excluídos, com retóricas rasas e sem sinergia ao modelo constitucional escolhido por todos.
Em início de jornada, principiando o ano de 2020, a bem da verdade e na pauta previdenciária, pouco há o que comemorar.
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*Sérgio Henrique Salvador é mestre em Direito (FDSM). Pós-graduado pela EPD/SP e PUC/SP. Professor Universitário (graduação, pós-graduação, cursinhos preparatórios e de extensão). Escritor com mais de 10 livros publicados. Conselheiro da OAB/MG (23ª Subseção). Advogado em Minas Gerais. Membro da Rede Internacional de Excelência Jurídica.