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A imparcialidade do julgador na figura do juiz das garantias fundamentais

A implementação do juiz da garantia fortalece o sistema acusatório constitucional, resolvendo vícios do sistema atual – com resquícios do juízo inquisitivo – trazendo assim um processo penal mais justo, isonômico, buscando a concretização da imparcialidade da figura do julgador autônomo e independente.

7/1/2020

No dia 24 de Dezembro de 2019, foi publicada a lei 13.964, oriunda do projeto de lei 882 de 2019, originário do Ministério da Justiça e Segurança Pública, conhecido como “pacote anticrime”, trazendo diversas modificações no nosso sistema legislativo penal, especialmente com a positivação do “Juiz das Garantias”, figura essa polêmica, gerando inúmeras criticas e divisões de opiniões no meio jurídico. 

Inicialmente, vale registrar que a figura do “Juiz das garantias” não é algo criado pelo Direito Brasileiro, muito menos algo pensado e estudado somente nos dias atuais.

Cabe destacar que a figura do juízo das garantais já foi aplicada em muitos ordenamentos jurídicos criminais, sobretudo em alguns países aqui da América do Sul, como o Chile, Paraguai e Colômbia. Registre-se ainda que tal modelo também foi aplicado em países da Europa, utilizado no ordenamento francês, alemão, espanhol e italiano.

No nosso sistema jurídico, a ideia do juiz das garantias já vinha sendo estudada no projeto do novo Código de Processo Penal (PLS -156/09), onde se discutia sua implementação na reforma processualista, trazendo consigo o tão buscado sistema acusatório.

Com efeito, desde o seu surgimento no referido projeto, muito se discutiu sobre sua viabilidade e validade no nosso ordenamento, principalmente sobre a sua compatibilidade constitucional.

Deste modo, a figura do juiz da garantia concretizada com a publicação da lei 13.96419, é nitidamente um avanço civilizatório na nossa democracia, pois trouxe inúmeras consequências e soluções ao nosso sistema penal que, ressalte-se, é retrógado, para não dizer ultrapassado, arcaico e com resquícios inquisitivos.

Vale registrar que o Direito Processual Penal é regido por sistemas - sistemas processuais - de modo que o processo penal, na sua estrutura, pode ser regido pelo sistema inquisitivo, acusatório e misto.

Em breves linhas, sabe-se que o princípio inquisitivo é caracterizado pela inexistência de contraditório e de ampla defesa, com concentração das funções de acusar, defender e julgar em uma figura única (juiz), de modo que em tal sistema, o réu é tratado como um mero objeto da persecução penal.

Por outro lado, o sistema acusatório caracteriza-se por estruturar um processo penal de forma tríplice, formando uma disputa entre duas partes - acusador e réu – sendo este último sujeito de direitos, com paridade de armas e observância aos ditames constitucionais do contraditório e da ampla defesa, trazendo consigo um terceiro imparcial, este representado na função do julgador, ou seja, na figura de um magistrado.

Por fim, o sistema misto afasta-se de um modelo puro, aproximando-se por vezes mais de um sistema inquisitivo e, por outras, de um sistema acusatório.

Conforme bem descreve o professor de Direito Processual Penal Rosmar Rodrigues de Alencar, “o sistema acusatório é o adotado no Brasil, de acordo com o modelo plasmado na Constituição Federal de 1988. Com efeito, ao estabelecer como função privativa do Ministério Público a promoção da ação penal (art. 129, I, CF/88), a Carta Magna deixou nítida a preferência por esse modelo que tem como características fundamentais a separação entre as funções de acusar, defender e julgar, conferidas a personagens distintos. Os princípios do contraditório, da ampla defesa e da publicidade regem todo o processo; o órgão julgador é dotado de imparcialidade; o sistema de apreciação das provas é o do livre convencimento motivado.

Sobre o tema, consoante frisado também pelo professor de Direito Processual Penal Pierre Souto Maior, “Reconhece-se, por óbvio, que muitas passagens do Código de Processo Penal admitem uma atividade judicial inquisitiva, no entanto, não a ponto de desfigurar de todo o sistema acusatório.

Ainda seguindo essa linha de raciocínio, o professor Rosmar Rodrigues de Alencar lembra também que embora o Código de Processo Penal brasileiro seja inspirado preponderantemente em princípios inquisitivos – conquanto existam dispositivos inseridos pelas sucessivas reformas que prestigiam o sistema acusatório –, a sua leitura deve ser feita à luz da Constituição, pelo que seu modelo de processo deve se adequar ao constitucional acusatório, corrigindo os excessos inquisitivos (interpretação conforme à Constituição).

Fato é que a reforma introduzida pela lei 13.964/19, além de positivar e adotar o sistema acusatório de forma expressa - o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação (art. 3º-A. do CPP) - resolveu inúmeras incompatibilidades existentes no nosso ordenamento processualista, citando como exemplo a possibilidade do arquivamento do inquérito policial realizado pelo próprio órgão do Ministério Público (art. 28 do CPP), a vedação de aplicação de medidas cautelares de ofício pelo magistrado (art. 282, § 2º, do CPP), a impossibilidade da decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz (art. 311 do CPP), e a implementação da figura do juiz das garantias (art. 3º-A. do CPP).

Sobre este último instrumento processual – tema central da nossa opinião - prescreve o novel art. 3º-B e seguintes do CPP, que “o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário”, competindo-lhe diversas atribuições pré-processuais, dentre outras, receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal e decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar. Lembrando que sua atividade chega ao seu término com o recebimento da denúncia ou queixa (art. 3º.-C inserido no CPP).

Neste ponto, possível asseverar que alguns poderes que foram conferidos ao juiz das garantias podem trazer dúvidas sobre a preservação dos poderes inquisitivos do magistrado. Sobre o tema, já advertiu o ilustre professor de Direito Penal Rogério Sanches, em uma das suas redes sociais que “No sistema acusatório, mesmo com o juiz das garantais, este não deve imiscuir-se na fase investigatória, senão quando necessária a sua intervenção, sempre provocada pelos órgãos que atuam nesta fase (investigação). O Juiz das Garantias não é um juiz investigador.”

Tem assim com a implementação do juízo das garantias uma cisão na persecução penal – dividindo-se esta em duas partes, a primeira com a figura do juiz que analisa a legalidade da fase investigatória e a segunda com o juiz que julga de fato o processo – asseverando através de tal instrumento a busca pelo sistema acusatório puro, definindo este julgador como o garantidor dos direitos fundamentais da persecução criminal, e acima de tudo, assegurar a clara observância da imparcialidade do magistrado.

Aliás, sobre o viés da imparcialidade do julgador na resposta da tutela jurisdicional, fato é que a implementação do juiz das garantias visa justamente resolver o problema da contaminação do magistrado na fase investigativa, trazendo assim um processo penal mais imparcial, com observância a diversos princípios constitucionais, tais como o juiz natural e a paridade das armas.

Nessa esteira, um dos exemplos mais práticos sobre a não observância da imparcialidade do julgador na persecução penal é justamente no momento da decretação da prisão preventiva pelo juiz na fase investigativa, mesmo que realizada esta através de requerimento do Ministério Público e Autoridade Policial.

Como sabemos, para se decretar uma prisão cautelar, um dos fundamentos desta medida é o fumus commissi delicti, que é a existência de crime e indícios suficientes de autoria, de modo que nesta etapa é preciso do julgador – que deveria ser imparcial - uma postura acusatória sobre existência do crime (opinio delicti), pois a própria lei o obriga a ter essa postura de acusador.

Entretanto, fato é que nesta fase pré-processual, por muitas vezes, acaba que o magistrado já antecipa a culpa do investigado em sua decisão interlocutória, parecendo por muitas vezes uma decisão condenatória sumária – misturando indícios de autoria e materialidade, com a certeza de autoria e materialidade - e o pior, sem sequer existir uma ação penal, restando ao réu tão somente duas alternativas: Buscar vias próprias processuais, com o manejo da exceção de suspeição do juiz, para viabilizar a parcialidade do magistrado, retirando-o da condução dos autos (tarefa bastante difícil ao réu) ou esperar o julgamento do feito e confiar na “imparcialidade” do julgador que já opinou sobre a existência do crime e sua autoria.

Sobre o tema, bem adverte também o professor Pierre Souto Maior, ao afirmar que “Ora, para que o juiz venha a decretar uma prisão preventiva, ainda em sede de investigação, deve cogitar qual crime teria sido cometido, a fim de verificar a admissibilidade da prisão preventiva (art. 313 do CPP). Formula o juiz, portanto, em momento absolutamente impróprio, uma verdadeira opinio delicti. Também deve o juiz verificar a existência de prova da materialidade delitiva e indícios de sua autoria (art. 311 do CPP), cogitando até mesmo dos requisitos necessários para o oferecimento da denúncia, quando sequer foi exercida a ação penal. O juiz ainda precisaria verificar um dos fundamentos previstos no art. 312 do CPP. Tudo isso, o juiz deveria fazer mediante atuação ex officio, numa clara violação à imparcialidade que deve ostentar no processo.”

Dessa forma, resta plenamente impossível manter-se intacta a isenção do julgador que, antes de uma ação penal, já emite sua opinião sobre a existência do crime e autoria para se decretar uma media constritiva, realizando em verdade um pré-julgamento da causa, sobretudo quando se irroga de autoridade ímpar, absolutista, acima da própria Justiça, conduzindo o processo ao seu livre arbítrio, bradando sua independência funcional. (STF - HC: 95518 PR)

Assim, fato é que a implementação do juiz das garantias só vem a reforçar o sistema acusatório, na medida em que essa nova sistemática evita a figura ativa do juiz na fase investigativa, segregando aquele que controla a legalidade daquele magistrado que instrui e julga o fato que a ele é elevado, bem como evita a chamada “Síndrome de Dom Casmurro” (juiz que, dotado de poderes investigatórios, primeiro decide e depois sai à procura de material probatório para alicerçar e justificar sua decisão), reforçando assim a imparcialidade do julgador.

Nas palavras da doutrina do professor Aury Lopes Jr: “Atribuir poderes instrutórios a um juiz – em qualquer fase – é um grave erro, que acarreta a destruição completa do processo penal democrático”

Neste ponto, ao que tudo indica, o nosso sistema acusatório tão desrespeitado está de fato começando a ser garantido, de modo que a viabilidade prática da aplicação do sistema do juiz das garantais será um desafio que certamente o Estado, através do Poder Judiciário irá superar.

Nesse contexto, concluímos assim que a implementação do juiz da garantia fortalece o sistema acusatório constitucional, resolvendo vícios do sistema atual – com resquícios do juízo inquisitivo – trazendo assim um processo penal mais justo, isonômico, buscando a concretização da imparcialidade da figura do julgador autônomo e independente, fazendo jus as garantias fundamentais dos sujeitos do processo, em especial do investigado, acarretando assim um grande avanço no nosso ordenamento jurídico penal.

Por fim, concluímos nossa opinião com as palavras do ilustre professor Aury Lopes Junior, “Cabe dizer que a mentalidade inquisitória deve se opor ao cumprimento da Reforma. Antecipamos que a dificuldade logística não se sustenta. O argumento de que o juiz das garantias não é viável porque temos muitas comarcas com apenas um juiz é pueril. Na verdade, brota de bocas ingênuas, que ignoram as soluções (simples, inclusive) ou de gente que manipula o argumento, pois no fundo quer apenas manter hígida estrutura inquisitória, a aglutinação de poderes e o justicialismo (obvio que o juiz das garantias é uma tragédia para um juiz justiceiro...).”

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Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar/Curso de direito processo penal – 11. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.)

Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim/ FRAGMENTOS JURISPRUDENCIAIS DE UM PROCESSO INQUISITIVO.

Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 16ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

STF - HC: 95518 PR, Relator: Min. EROS GRAU, Data de Julgamento: 28/05/2013, Segunda Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-054 DIVULG 18-03-2014 PUBLIC 19-03-2014

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*Vamário Soares Wanderley de Souza é advogado, especialista em Tribunais Superiores, escritor, recentemente aprovado no Concurso da Magistratura do Estado do Piauí.

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