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A figura do Juiz das Garantias e as novas exigências para a decretação da prisão preventiva – Avanços ou retrocessos?

A lei 13.964/19 criou a figura do “Juiz das Garantias”, que vai atuar na fase da investigação policial, sendo o responsável pelo “controle da legalidade” e a “salvaguarda dos direitos individuais” nessa etapa.

2/1/2020

Quando a imprensa começou a divulgar, há umas duas semanas atrás, que o congresso havia “desidratado” o chamado “Pacote Anticrime” do Ministro Sergio Moro, eu pensei que esse processo de desintegração da proposta legislativa que pretendia facilitar o combate à criminalidade no país, principalmente da criminalidade organizada, tivesse se resumido à exclusão de alguns institutos novos, propostos dentro do pacote legislativo, a exemplo da parte que pretendia ampliar o conceito de legítima defesa para integrantes das forças de segurança.

No entanto, ao examinar de maneira aligeirada alguns dos dispositivos da lei 13.964/19, na qual se transformou o projeto de lei do pacote anticrime (PL 10372/18), fiquei com a impressão de que os parlamentares atuaram para impedir o surgimento de novos “Sergios Moro” e a disseminação de novas operações policiais no modelo da “Lava Jato”. O papel da comissão especial criada pela Câmara dos Deputados para apreciar as propostas do Ministro da Justiça não se limitou à exclusão do texto de dispositivos considerados excessivos. Ao dar uma nova roupagem, e de inspiração completamente diferente, à iniciativa preconizada pelo Ministro da Justiça, o parlamento pode ter criado empecilhos para que a persecução criminal seja exercida de maneira célere e segura.

A lei 13.964/19 criou a figura do “Juiz das Garantias”, que vai atuar na fase da investigação policial, sendo o responsável pelo “controle da legalidade” e a “salvaguarda dos direitos individuais” nessa etapa (art. 3º.-B inserido no CPP). Ao Juiz das Garantias competirá, dentre outras funções, receber a comunicação da prisão ou auto da prisão em flagrante, decidir sobre requerimentos de prisão provisória ou outra medida cautelar, produção antecipada de provas, prorrogação do prazo do inquérito, interceptação telefônica e telemática, quebra de sigilo fiscal e bancário e busca e apreensão domiciliar, além de julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia (incs. I a XVIII do art. 3º.-B). Sua atividade cessa com o recebimento da denúncia ou queixa (art. 3º.-C inserido no CPP).

A criação da figura do “Juiz das Garantias”, embora o nome adotado possa induzir a que se esteja avançando no sentido de se criar um sistema de freios à potencialidade punitiva do Estado, é de duvidosa eficácia. Conquanto se justifique a sua criação como a ampliação, no sistema processual brasileiro, de um dos princípios basilares do garantismo penal – que é a separação entre a figura do julgador e a do acusador (princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação) -, o fato é que tal iniciativa surge em contraposição à ideia de atuação de um juiz proativo, na busca da autoria de fatos criminosos, que defere medidas de colheita da prova (ainda na fase do inquérito), em colaboração com a polícia e o órgão ministerial, tal como atuou o então juiz Sergio Moro nas investigações da operação Lava Jato.  Por outro lado, a nova lei também dificulta o recurso a um dos instrumentos mais utilizados pelo juiz e outros integrantes da operação Lava Jato, que foi a prisão preventiva de acusados da prática de crimes contra a Administração Pública. O juiz Sergio Moro se notabilizou pela defesa da tese de que a corrupção sistêmica, que produz elevados prejuízos ao patrimônio público, constitui situação que autoriza a segregação cautelar, para manutenção da “ordem pública”.  Para preservar a ordem pública, em um quadro de corrupção sistêmica e de reiteração delitiva, justifica-se a prisão preventiva, defendia o então juiz em suas decisões. Agora, com a nova lei, nem o juiz que vai realizar o julgamento de um caso pode ser o mesmo que, ainda na fase do inquérito, participa da colheita da prova, nem a existência de corrupção sistêmica será suficiente, por si só, para que um juiz decrete uma prisão preventiva. É que a nova lei também alterou a redação dos arts. 282, 311 e 312 do Código de Processo Penal, restringindo acentuadamente as situações de cabimento da prisão preventiva. 

Além de duvidosa constitucionalidade, já que essa nova categoria funcional não está prevista na estrutura do Poder Judiciário desenhada na Constituição Federal (no art. 92 e seguintes), a figura do Juiz das Garantias pode resultar em prejuízos à jurisdição. A proibição expressa de que juízes tomem iniciativas na fase de investigação criminal (art. 3º.-A do CPP), que ficam reservadas exclusivamente ao Juiz das Garantias,  pode comprometer  a celeridade do processo penal.  O Juiz das Garantias que vai atuar na fase da investigação, sendo o responsável pelo “controle da legalidade” nessa etapa (art. 3º.-B do CPP),   vai realizar um trabalho processual desconexo do que vai ser iniciado na fase seguinte. 

Com efeito, a nova lei não apenas instituiu duas figuras judiciais no processo penal - uma controlando a atividade investigativa e realizando a colheita de provas cuja antecipação se exija no âmbito do inquérito policial, e outra realizando a posterior instrução e julgamento do processo -, mas também dois processos judiciais para propiciar a persecução de um mesmo delito ou ação criminosa.  Os autos do processo em que atua o Juiz das Garantias não serão os mesmos em que atuará o juiz julgador, na etapa seguinte (de instrução e julgamento). A lei 13.964/19 estabelece que “os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado” (art. 3º.-C, § 3º inserido no CPP). Portanto, de um modo geral a produção processual realizada na fase da investigação pelo Juiz das Garantias, que se encerra com o recebimento da denúncia ou queixa (art. 3º.-C), não será reaproveitada no processo a ser conduzido pelo juiz julgador. Só “provas irrepetíveis” e produzidas antecipadamente é que poderão integrar o processo na fase seguinte. A consequência é que muito do trabalho processual produzido numa fase anterior tem que ser repetido, não podendo ser aproveitado na seguinte.

Tudo isso está sendo instituído no processo penal brasileiro com a finalidade de se garantir maior isenção do juiz que vai realizar o julgamento, que não deve ser contaminado pelo trabalho do juiz que controla ou participa da atividade investigativa. Trata-se de uma lógica de difícil convencimento e ainda não testada na prática. O resultado, todavia, pode ser uma maior lentidão do processo penal, com aumento da possibilidade de extinção da punibilidade de crimes pela prescrição.  Fracionar o processo penal poderá ser contraproducente, na medida em que o juiz que participa de alguns atos ainda na fase investigativa, decidindo, p. ex., sobre requerimentos de interceptação telefônica e telemática, quebra de sigilo fiscal ou bancário, busca e apreensão e outras medidas, passa a conhecer previamente os detalhes do processo, facilitando as tarefas processuais seguintes, inclusive a de julgar. O juiz que já vem participando do processo encontra-se mais habilitado do que qualquer outro para prosseguir nele, até o julgamento final. A participação do juiz na adoção de algumas medidas cautelares, ainda na fase da investigação policial, não o torna parcial ou mais “punitivista”.

O Juiz das Garantias poderá não ser uma realidade imediata no processo penal brasileiro, pelo menos a curto prazo. Os tribunais terão dificuldades para implantá-lo num primeiro momento, não somente por conta dos custos para sua implementação e operacionalização. Não se sabe ainda se haverá necessidade de abertura de concurso para preencher mais cargos no Judiciário ou se apenas divisão de trabalho entre os atuais juízes. A lei 13.964/19 estabelece que “nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados” (art. 3º.-D, § únic., inserido no CPP).  Também prevê que “o juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal” (art. 3º.-E).  Ou seja, ainda demorará algum tempo até os tribunais se adaptarem à nova lei.

Já as restrições impostas à prisão preventiva passarão a valer imediatamente, com a entrada da lei em vigor no próximo dia 23 de janeiro (30 dias após sua publicação, art. 20). E esse é o ponto mais preocupante. Depois da entrada em vigor da lei 13.964/19 a decretação de prisão preventiva será um ato realmente excepcional e de grande esforço argumentativo para o juiz. 

Em primeiro lugar, a nova lei retira a possibilidade de o juiz decretar a prisão preventiva de ofício, isto é, por sua própria iniciativa. A antiga redação do art. 311 do CPP admitia a “prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”. A nova redação eliminou a expressão “de ofício, se no curso da ação penal”, deixando permanecer somente a prisão preventiva “a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.” Além disso, a lei 13.964/19 criou o requisito adicional da situação de “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. Antes, a prisão preventiva poderia ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, desde que existente prova do crime e indício suficiente de autoria. Agora, é necessário que esteja presente o “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado” (nova redação do art. 312 do CPP). Ainda, o § 2º. acrescentado ao art. 311 exige que, na fundamentação da decisão que decreta a prisão preventiva, o juiz deve apontar o “receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada” (exigência repetida no § 1º. do art. 315).   

Com a exigência desses requisitos adicionais pela nova lei, dificilmente os juízes terão como justificar a prisão preventiva de investigados por crimes de corrupção ou praticados contra a Administração Pública. Em regra esses crimes somente são descobertos após longas e demoradas investigações, muitas vezes quando os investigados já têm deixado a função pública que os permitiu violar o dever funcional e causar dano ao erário.  A exigência de que uma prisão preventiva somente seja decretada em face de “fatos novos ou contemporâneos” e que a liberdade do investigado gere uma situação de “perigo” para a sociedade certamente vai dificultar seu uso nos processos em que sejam investigados crimes de corrupção.      

Corruptos e agentes públicos que se valem da função para assaltar os cofres públicos talvez nunca mais tenham que enfrentar a cadeia. Com a decisão do Supremo Tribunal Federal tomada no começo de novembro deste ano, impedindo a prisão de condenados em segunda instância (exigindo, para tanto, o trânsito em julgado da sentença condenatória), imaginou-se que os juízes, então, passariam a usar o expediente da prisão preventiva com mais frequência, para compensar o impedimento da execução provisória da pena.  Todavia, a edição da lei 13.964/19, com severas restrições para o uso da prisão preventiva, torna a segregação cautelar expediente ainda mais excepcional. Como os processos criminais se eternizam, podendo levar décadas para serem concluídos, com decisão final transitada em julgado, os agentes públicos corruptos não enfrentarão cadeia porque não podem mais cumprir pena antecipadamente.  Por outro lado, dificilmente terão que enfrentar prisão na forma de medida cautelar, porque a liberdade deles não gera uma situação de “perigo” social ou porque seus crimes só são descobertos tempos depois de praticados.

A prisão cautelar doravante será medida de dificílima utilização não somente em relação a crimes de corrupção, mas para reprimir toda e qualquer infração penal.  A lei 13.964/19 ainda criou outras exigências para sua utilização, pois agora o juiz não somente terá que justificar a necessidade da segregação preventiva, mas também esclarecer que não cabe, no caso em que está atuando, sua substituição por outras medidas cautelares de natureza diversa (nova redação do § 6º. do art. 282 do CPP). Outras exigências de fundamentação para a decisão que decreta a prisão preventiva ainda foram criadas nos incisos do § 2º. acrescentado ao art. 315 do Código de Processo Penal. Com a entrada em vigor da nova lei, não será considerado fundamentado o decreto judicial de prisão preventiva que:  a) limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; b) empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; c) invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; d) não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; e) limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; e f) deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Todas essas novas exigências e restrições à utilização da medida cautelar de prisão preventiva foram adotadas sem ser feita qualquer distinção em relação à natureza dos crimes. Independentemente da gravidade do crime, os requisitos para a prisão preventiva são sempre os mesmos.

Tudo o que não precisávamos nessa quadra histórica em que o país está vivendo, era de mais garantias processuais para os investigados ou processados criminalmente. Já temos uma Constituição “garantista”, que assegura os princípios do contraditório e da ampla defesa. Os magistrados já atuam de forma a controlar a legalidade do procedimento inquisitivo e salvaguardar os direitos e garantias fundamentais. O que estávamos necessitando era de uma maior efetividade para o direito penal e processual brasileiros, de forma a combater a crescente violência que assola a nossa sociedade e de frear a corrupção dos agentes públicos.  Embora o instituto do Juiz das Garantias e as novas exigências para prisão preventiva tenham concepção teórica respeitável, a sua instituição nesse momento parece ser inoportuna e pode provocar efeitos práticos indesejados.

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*Demócrito Reinaldo Filho é desembargador do TJ/PE.

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