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Os atletas “profissionais” de surfe e a atual legislação desportiva

Dentre as normas e leis que compõem o ordenamento jurídico desportivo brasileiro, destacarei neste texto a lei 9.615/98, mais conhecida como Lei Pelé, e a lei 12.395/11

26/12/2019

Ao longo desta reflexão, demonstrarei que a terminologia “atleta profissional de surfe”, utilizada para se referir àqueles atletas que competem o circuito mundial e os campeonatos nacionais da modalidade, não está correta quando analisada através da legislação nacional desportiva. A partir disso, pretendo chamar a atenção daqueles envolvidos com o esporte, para o projeto de lei que tramita no senado e que poderá mudar esse cenário, resultando uma enorme conquista para o surfe e demais modalidades do esporte. 

Dentre as normas e leis que compõem o ordenamento jurídico desportivo brasileiro, destacarei neste texto a lei 9.615/98, mais conhecida como Lei Pelé, que traz as normas gerais sobre o desporto, e a lei 12.395/11, que inovou a legislação trazendo o conceito de atleta profissional autônomo, acrescentando o artigo 28-A na Lei Pelé.

Ademais, para contextualizar o surfe na conjuntura desportiva atual, trarei um pouco da história e do formato das duas grandes organizações internacionais que regem o esporte, a ISA (International Surfing Association) e a WSL (World Surf League).

A ISA foi criada em 1964 com o intuito de integrar mundialmente o surfe amador, tendo como objetivo finalístico influenciar a inclusão do surfe nas Olimpíadas. Foi a pioneira na promoção do esporte entre os meios de comunicação. Atualmente, trabalha com governo de 103 países e é dela a responsabilidade do surfe adaptado (para portadores de necessidades especiais). É a única que negocia com o Comitê Olímpico Internacional (COI) sobre a modalidade nos Jogos Olímpicos.

Atualmente, a principal liga mundial de surfe é estruturada pela WSL, organização privada transnacional que é a responsável pela criação das regras, pela organização dos campeonatos e pelo pagamento das premiações dos atletas, sendo a primeira liga esportiva do mundo que adotou o critério de equidade de gênero na premiação. A WSL subdivide-se em WCT (World Championship Tour), mais conhecida como o Dream Tour, pois nele existe a combinação perfeita, entre os melhores surfistas e as melhores ondas do planeta; e o WQS (World Qualifying Series), mais conhecida como divisão de acesso para o WCT, com aproximadamente 64 etapas e 1.400 atletas, dos quais apenas os 10 primeiros se classificam.

No surfe há uma peculiaridade, um atleta da divisão de elite pode competir nas etapas da divisão de acesso, ou seja, seria como se um time de futebol da primeira divisão também competisse na segunda divisão.

Apenas a título de conhecimento, informo que neste ano o atleta Lucas Vicente foi o campeão pró-júnior e o Italo Ferreira, campeão mundial. Já no ano de 2018, os surfistas brasileiros

conquistaram quase todos os títulos internacionais, confirmando o apelido criado pela mídia internacional de “brazilian storm”. Os brasileiros ganharam 8 (oito) etapas das 11 (onze) do circuito mundial. E não parou por aí: Mateus Herdy foi campeão mundial pro júnior, Jesse Mendes venceu a Tríplice Coroa Havaiana e o Gabriel Medina, bi-campeão mundial.

O Brasil, que sempre foi considerado o país do futebol, hoje também já é conhecido como um país do surfe. A potência crescente na modalidade é representada por um número relevante de títulos conquistados pelos atletas brasileiros, só vem confirmar o fortalecimento do esporte no país. Ditas conquistas não vieram à toa, mas são resultado da profissionalização do esporte e da dedicação desses atletas, que muitas vezes abdicaram da infância para treinar.

Diante da alta competitividade na modalidade, é possível afirmar que estes surfistas são considerados  atletas de alto rendimento, já que, via de regra, têm suas vidas dedicadas à competição, passando a maior parte do tempo nos treinamentos dentro e fora do mar, com alimentação regrada, psicólogos e técnicos, tudo com intuito de melhorar o desempenho nas competições nacionais e internacionais, até conquistar o mundo. 

Deste ponto em diante, após alguns comentários sobre a organização do surfe, passo a analisar a lei 9.615/98, mais conhecida como Lei Pelé, que aborda normas gerais sobre o desporto. Do artigo 3º desta lei, extraímos que o desporto se divide em: desporto educacional; de participação; rendimento e formação. O primeiro diz respeito ao desporto praticado nas escolas; o segundo enquadra-se no desporto não-formal; o terceiro corresponde ao desporto profissionalizado; e o quarto trata da formação do indivíduo, com ênfase no aperfeiçoamento qualitativo e quantitativo da prática desportiva.

Para maior esclarecimento, e de forma objetiva, pontuo que o desporto educacional tem por finalidade o desenvolvimento integral do indivíduo e sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer. O desporto de participação tem por finalidade contribuir para o desenvolvimento do desportista já formado pelo desporto educacional, visando a integração social, a saúde e educação. O desporto de rendimento tem por finalidade a obtenção de resultados e integração de pessoas e comunidades ao redor do mundo. Já o desporto de formação é uma combinação das três modalidades. 

Das quatro manifestações expostas acima, de uma forma superficial poderíamos concluir que a atividade desempenhada pelos atletas de surfe que participam das competições da WSL seria uma espécie de desporto de rendimento, uma vez que tem por finalidade a obtenção de resultados e a integração de pessoas em âmbito mundial.

O desporto de rendimento subdivide-se em modo profissional e não profissional, sendo a categoria não profissional identificada pela liberdade de prática, ou seja, sem regras de uma organização, pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio (art. 3º, § 1º, II da lei 9.615/98). Já nos termos do inciso I, do § 1º do artigo 3ª da lei, temos que o desporto de rendimento praticado de modo profissional é aquele caracterizado pela remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva.

Assim, é importante registrar que não existe modalidade amadora e profissional, o que existe é atleta amador e profissional, haja vista que uma modalidade esportiva poderia ser qualificada como profissional ou não profissional, dependendo de quem praticasse a atividade.

Nesta esteira não poderíamos de deixar de avaliar o que é ventilado no parágrafo único do art. 26, que conceitua “competição profissional” como sendo aquela promovida para obter renda e disputada por atletas profissionais, cuja remuneração decorra de contrato de trabalho desportivo. Diante dos termos da lei, o atleta de surfe não se enquadraria como um atleta de rendimento profissional, visto que muitas vezes não detém nem um contrato de patrocínio, quiçá um contrato formal de trabalho.

Verificamos que o atleta de surfe também não se enquadraria na modalidade não profissional, uma vez que não há liberdade de prática: para participar dos eventos da WSL os atletas precisam pagar a filiação, aderir ao seguro de vida, respeitar o código de regras, a política antidoping,  além de estarem submetidos à sanções pecuniárias, ou até a pena máxima de exclusão da Liga, na hipótese de má comportamento.

Logo, um atleta com pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade, mas que não tenha seu contrato formal de trabalho, com remuneração pactuada, não poderá ser considerado um atleta profissional e nesta toada, as competições “profissionais” também perdem seu caráter e prestígio, haja vista que os atletas não são profissionais nos termos da lei.

Diversos atletas de surfe que foram filiados a Confederações e passaram a vida participando do Circuito Mundial de Surfe, pela atual legislação esportiva brasileira não seriam considerados atletas profissionais, justamente por não terem contrato formal de trabalho desportivo celebrado com um clube. Assim, parece-me precária a Lei que vincula o profissionalismo do atleta com a celebração de contrato com clubes, considerando que muitas modalidades, principalmente as individuais, não têm qualquer relação com esses entes, diferentemente do futebol, vôlei e basquete.

Estamos diante de uma situação nebulosa e, neste sentido, é oportuno destacar algumas considerações, como a do Desembargador Guilherme Augusto Caputo Bastos, nos seguintes termos: “se o conceito de desporto profissional pudesse ser firmado com base no senso comum, isento de quaisquer interpretações legislativas, sua compreensão estaria imediatamente relacionada a uma atividade originalmente recreativa praticada por determinados indivíduos em troca de remuneração1” e Valed Perry, que ressalvou: “E chegamos à ‘prática desportiva profissional’ cujas prescrições deixam evidenciado que a lei só cogitava do futebol.2

Atualmente, tramita no senado o projeto de lei 68/17, que dispõe de alterações significativas na lei geral do esporte. Neste momento, daremos destaque aos termos do parágrafo único do artigo 69, que preceitua: “Considera-se como atleta profissional o praticante de esporte de alto nível que se dedique à atividade esportiva de forma remunerada e permanente e que tenha nesta atividade sua principal fonte de renda por meio do trabalho, independentemente da forma como receba sua remuneração”. 

Este novo artigo, de uma forma simples e objetiva, traz um conceito muito mais real de quem seria o atleta profissional, não centralizando tal conceito apenas naqueles que tem relações clubísticas, ou que detém de um contrato formal de trabalho.

Por fim, caso seja aprovado este projeto de lei, e o artigo mencionado seja sedimentado, creio de forma muito esperançosa que com essa nova roupagem para o conceito de atleta profissional, teremos mudanças significativas em todo cenário desportivo, resultando numa enorme inclusão de profissionais que hoje estão desamparados pela lei.

_____________

1 Bastos, Guilherme Augusto Caputo. Direito Desportivo. 2ª Edição Revisada, Brasília, 2018

2 PERRY, Valed. Crônica de uma certa Lei do Desporto. Ed. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 1999

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*Tarcísio Miranda Bresciani é advogado no escritório Bresciani & Almeida Sociedade de Advogados

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