Este artigo tem como objetivo esclarecer as significativas alterações trazidas pela nova lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica) no que concerne a desconsideração da personalidade, nos termos do novo artigo 50 do Código Civil Brasileiro.
O artigo 50 do Código Civil Brasileiro estabelece a regra geral da desconsideração da personalidade, ressaltando que na legislação brasileira existem leis especiais (ex. art. 28 da lei 8.078, de 11 de setembro de 1990), que devem ser aplicadas em determinados casos específicos.
A personalidade jurídica das pessoas jurídicas de direito privado (como sociedades limitadas e
Isso significa que, em regra (ex. nas sociedades limitadas e nas sociedades anônimas), após o registro do ato constitutivo, a sociedade torna-se um sujeito distinto de seus sócios, com patrimônio, direitos e obrigações próprios, assim, tornando-se um ente autônomo livre para contratar e independente para contrair obrigações perante terceiros.
Em determinadas situações, a personalidade jurídica pode ser desconsiderada, de forma que os sócios e administradores das sociedades possam vir a responder com seus bens particulares por obrigações contraídas pela sociedade.
Neste sentido, na regra geral (Código Civil Brasileiro - lei 10.406/02), indicada acima, a desconsideração da personalidade jurídica somente pode ser decretada caso sejam observados requisitos legais (teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica) e sendo observado o abuso da personalidade jurídica, não bastando que a sociedade não possua patrimônio suficiente (teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica) para cumprir suas obrigações para que seja decretada a desconsideração de sua personalidade, ressaltando que existem casos específicos previstos na legislação brasileira (ex. relações de consumo) nos quais a teoria menor é aplicada.
Adicionalmente, é válido mencionar que a eficácia da desconsideração da personalidade jurídica é relativa somente à relação jurídica objeto de decisão judicial e não a todas as relações jurídicas da sociedade em questão.
A desconsideração da personalidade jurídica não pode ser confundida com a extensão de responsabilidade na prática de determinados atos pelos administradores ou sócios. Exemplo disso é a prática de ato pelo administrador contrário ao objeto social da sociedade, conforme previsto na lei 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas. Nesses casos, não há desconsideração da personalidade jurídica em si, mas sim responsabilização de administradores ou sócios.
Outro exemplo disso, é a lei tributária que atribuiu reponsabilidade aos administradores e representantes das pessoas jurídicas por atos praticados com excesso de poderes ou violação de lei ou atos societários.
A antiga redação do artigo 50 do Código Civil Brasileiro estabelecia critérios vagos para a configuração da desconsideração da personalidade jurídica, que consistiam em “desvio de finalidade” ou “confusão patrimonial”, sem definir as hipóteses nas quais eram caracterizadas, resultando em insegurança jurídica para os empreendedores quanto ao resguardo de seus patrimônios pessoais.
Em razão da abrangência da redação legal anterior, a desconsideração da personalidade jurídica vinha sendo amplamente aplicada pelos tribunais, sendo que, por vezes, ultrapassava o objetivo de tal dispositivo e atingia bens do patrimônio dos sócios em casos nos quais o abuso da personalidade jurídica era questionável.
Uma das principais alterações feitas pela Lei da Liberdade Econômica foi definir os conceitos de “desvio de finalidade” e “confusão patrimonial”, atos que configurarão o abuso da personalidade jurídica e poderão resultar em sua desconsideração da personalidade jurídica.
Neste sentido, a nova lei trouxe avanço na segurança jurídica para os empreendedores e administradores em relação a proteção de seus bens particulares.
Entretanto, apesar de a definição trazer luz ao que deve ser considerado quando da análise dos institutos, existem pontos que restaram subjetivos e dependerão de análise concreta de doutrinadores e tribunais para esclarecimento, como no caso da definição do “cumprimento repetitivo de obrigações de sócios ou administradores” em caso de confusão patrimonial.
Deve ser considerado ainda, que, do ponto de vista dos credores, a delimitação do que pode ser definido como abuso da personalidade jurídica pode ser um fator limitante para o credor prejudicado que pretende buscar seus direitos em casos que anteriormente poderiam ser vistos como abuso.
Adicionalmente, para os credores também caberá o ônus da prova de que houve um desvio de finalidade da pessoa jurídica nas hipótese específicas previstas em lei, o que pode complicar a situação dos credores, pois as provas da ocorrência de um desvio que propositalmente visa lesar credores ou de prática de atos ilícitos pelos sócios ou administradores são de difícil obtenção e muitas vezes estão sob a posse dos sócios e administradores da sociedade devedora.
Outra relevante alteração feita foi que somente serão atingidos os bens particulares dos sócios e administradores que efetivamente se beneficiaram, direta ou indiretamente pelo abuso da personalidade jurídica.
No mesmo sentido do comentário anterior, verifica-se que a alteração é extremamente benéfica aos sócios e administradores das sociedades, pois traz uma proteção aos que não se beneficiaram do abuso da personalidade jurídica.
Por outro lado, do ponto de vista do credor prejudicado pelo abuso, caso o beneficiado não tenha recursos para cumprir com as obrigações resultantes da desconsideração, o credor não poderá ir atrás dos bens dos demais sócios ou administradores da sociedade em questão.
Importante mudança também ocorreu em relação a desconsideração da personalidade jurídica nos grupos econômicos.
Anteriormente, o entendimento dominante do Superior Tribunal de Justiça era que existia a possibilidade de desconsiderar a personalidade jurídica de empresa para responder por dívidas de outra empresa do mesmo grupo econômico, caso verificada confusão patrimonial na sociedade devedora.
A nova redação da lei afastou esse entendimento, exigindo que seja demonstrada presença de qualquer dos requisitos legais para ser caracterizado um abuso que gere a desconsideração de determinada sociedade, não sendo possível atingir as empresas do mesmo grupo econômico nas quais não houve caracterização de abuso da personalidade jurídica nos termos da lei.
Válido ressaltar que existem leis especiais que preveem responsabilidade entre empresas do mesmo grupo econômico, como por exemplo o artigo 2º, parágrafo 2º da CLT (decreto-lei 5.452).
Por fim, a Lei da Liberdade Econômica também trouxe a previsão de desconsideração da personalidade jurídica inversa, cuja previsão já constava do Código de Processo Civil (lei 13.105, de 16 de março de 2015).
A desconsideração da personalidade jurídica inversa tem como objetivo coibir que os devedores destinem todo o seu patrimônio para formação do capital social de sociedades constituídas meramente para fins patrimoniais com o objetivo de fazer uma blindagem para que os credores não consigam atingir seus bens pessoais.
A inclusão das regras específicas e claras na nova redação legal dificulta a comprovação pelo credor para desconsiderar a personalidade jurídica de uma sociedade cuja finalidade seria blindar o patrimônio do devedor. Ainda, no mesmo sentido acima comentado, pode ser complexa, considerando que o ônus de comprovar a destinação dos bens para a sociedade para fins de fraude caberá ao credor, que, normalmente, neste caso, é o hipossuficiente da relação.
Diante o exposto acima, pode-se concluir que a nova redação trazida pela Lei da Liberdade Econômica possui dois aspectos distintos quando analisados sob o ponto de vista do credor e do devedor.
Do ponto de vista dos sócios e administradores, existe uma evolução da redação quando a nova lei é analisada sobre a ótica da segurança jurídica de terem sido fixados critérios claros para que seja decretada a desconsideração da personalidade jurídica.
Por outro lado, do ponto de vista dos credores, a nova redação dificultou o atingimento dos bens particulares dos sócios e administradores, e, assim o adimplemento da obrigação da sociedade em face do credor, considerando que o credor será o responsável por comprovar que houve um abuso da personalidade apenas nas hipóteses listadas, que podem não abranger todas as possibilidades de abuso, bem como caberá ao credor prejudicado buscar provas específicas para demonstrar o abuso do desvio da personalidade jurídica.
Desta maneira, com a nova lei, verifica-se, de um lado, um benefício dos sócios e administradores, e, de outro, um potencial prejuízo para os credores.
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*Nádia Vieira é advogada associada do Madrona Advogados.
*Isabella Dal Fabbro é advogada associada do Madrona Advogados.